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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (E)
O homem concretado (2)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas. É desse período esta série de matérias especiais, que terminou de ser publicada em 10 de dezembro de 1984 no jornal santista A Tribuna:
 


O espaço destinado a cada pessoa é gradativamente reduzido,
gerando uma série interminável de conflitos

O homem concretado (final)

Texto: Lane Valiengo
Fotos: Araquém Alcântara

Sem o espaço que necessitamos para viver, nos tornamos presas fáceis. Como instrumentos de dominação utilizadas por um Sistema maior, as cidades diminuíram o espaço disponível a cada pessoa, criando o homem concretado. É exatamente por esta razão que a urbanização segue um processo caótico, sem qualquer disciplina ou um ordenamento voltado para facilitar a vida.

Nada acontece por acaso: a aparência opressiva do acúmulo exagerado de grandes construções, a concentração de pessoas em uma mesma área, saturando-a e criando mil conflitos, têm sempre raízes políticas profundas. Tira-se do homem as condições básicas para que ele viva normalmente, criando todo tipo possível de conflito. Ele viverá permanentemente em sobressalto, em tensão, angustiado. E sem forças e consciência para levar adiante as lutas em defesa dos seus interesses, dos seus direitos. A desordem tem lógica, o traçado irregular das cidades e suas características desumanas não surgiram espontaneamente: sua função é exatamente atrapalhar a vida de cada um de nós.

Cubatão, o maior exemplo de cidade desumana, não foi fruto do acaso: foi resultado da necessidade de se buscar o desenvolvimento a qualquer custo. Mesmo que para tanto se sacrifique a população, se envenenem crianças e mulheres grávidas, mesmo que os homens morram mais cedo.

A história da ocupação e urbanização de Santos (mostrada anteriormente) demonstra que não é de hoje que o homem é submetido a esquemas de dominação, que lhe tiram a liberdade e, em vez de uma vida mais tranqüila, só lhe impõem sacrifícios e mais sacrifícios. O universo passa a ser um apartamento ou apenas um quarto. E nossos corações passam a envelhecer muito mais rápido.

Sem identidade própria, fazendo apenas o que nos mandam - ou sugerem, sutilmente -, nos transformamos em autênticos homens concretados, de sentimentos tão duros quanto as pedras. Passamos a nos defender até das sombras. E na escuridão que passamos a viver, não percebemos que os inimigos são outros.

Pois a cidade, a nossa cidade, só mudará e deixará de oprimir os seus moradores no momento em que decidirmos o que queremos, o que é melhor para a comunidade. Na hora em que quebrarmos as algemas que o meio urbano prende em cada braço. E quando olharmos com carinho e consciência para a cidade que existe dentro de cada um.

E quando aprendermos a reivindicar todo o espaço que precisamos para viver, antes que nos tornemos todos simples homens concretados.

A AMEAÇA DO ADENSAMENTO

Nem tudo está perdido: apesar do rápido aumento populacional e da urbanização acelerada por que passou a Baixada Santista, existem todas as condições favoráveis a um planejamento que impeça a queda crescente da qualidade de vida.

O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil-Seção Santos, João Fernando Pires Meyer, observa que as taxas de crescimento têm caído sistematicamente, principalmente em função da saturação: 2,7% ao ano, em média, na década de 60; 2,1% na década de 70 e, provavelmente, os anos 80 registrarão cerca de 1,8%. Meyer define a situação: "Não há mais terras a conquistar. O que está ocorrendo é um fenômeno de adensamento".

O adensamento, caracterizado pela construção de prédios, ocupando o espaço onde antes existiam casas, deveria ser disciplinado, controlado. Os índices de ocupação do Plano Diretor Físico (antes da aprovação do atual Código de Emergência, observa o arquiteto) foram determinados em função de uma população estimada de 3 milhões 900 mil habitantes, que seria o limite de saturação. O que, em tese, significa que seria possível continuar derrubando as casas e construindo prédios até que se atingisse essa população. Segundo projeção feita pelo Cepam, em agosto de 83, no ano de 2020 a população fixa de Santos estará em torno de 868 mil, e a flutuante aproximadamente 100 mil. Ou seja, em pleno futuro tecnológico, estariam esgotadas apenas 1/4 das possibilidades levantadas pelo Plano Diretor Físico.

"Temos uma folga muito grande para planejar, para decidir quais as zonas que se pretende adensar, quais as áreas a serem preservadas". Meyer cita outros dados interessantes. O Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - o esquecido PDDI - descobriu em 1976 que a área de lotes desocupados em Santos representava 38% do total de lotes existentes. O que significa que, utilizando estes lotes, havia condições para abrigar cerca de 430 mil pessoas. Ou ainda, recolocar toda a população atual, com densidades de médias baixas. "Poderíamos absorver todo o acréscimo de população sem derrubar nada, até o ano 2015, apenas construindo prédios de no máximo três andares, tipo sobrados. Ou seja, bastaria impedir que as áreas em que já existe grande concentração de pessoas recebessem novos moradores e, ao mesmo tempo, passar a ocupar os lotes que não são utilizados.

Esses lotes, segundo o arquiteto, localizam-se na Zona Noroeste (38%); Zona Leste interior - da linha férrea até os morros (14%); Zona Leste - da praia até a linha férrea (7%); morros (35%, só levando em conta os locais aptos para loteamentos, deixando de lado os pontos perigosos); área portuária (3%) e Centro (2%).

Conseqüências - E se o adensamento, a verticalização desenfreada, não forem controlados?

As conseqüências, para Meyer, serão desastrosas: "Se você for espalhar a construção de prédios altos por toda a ilha, haverá a deterioração do microclima, com o aumento da umidade, o surgimento do bolor e a proliferação de bactérias dentro dos apartamentos; a escuridão, com menor incidência do sol - e existem apartamentos que nunca receberão um único raio de sol, apesar de estarem na faixa da praia -; a ventilação será prejudicada, acumulando ar viciado e criando desconforto; e, ainda, haverá a extinção paulatina da vegetação, por causa da falta do sol e das elevadas taxas de ocupação dos terrenos".

Isso tudo, acrescenta ele, leva a um aumento da temperatura média das cidades, fato já constatado e comprovado. Mas ainda existem outros efeitos: a deterioração dos equipamentos públicos (praças, áreas verdes, play-grounds etc.), que já são insuficientes e que, com o adensamento, serão utilizados por muito mais gente; e as conseqüências para a infra-estrutura da Cidade, que entrará em colapso ou registrará uma absoluta elevação da demanda de encargos públicos. E isso inclui transportes, sistemas de água, energia e esgoto etc.

Meyer relaciona a taxa de ocupação dos lotes com as deficiências crônicas das redes de drenagem e esgoto, apenas lembrando que estes serviços foram dimensionados para atender a uma determinada população; à medida que o número de pessoas é bem maior do que aquele que foi dimensionado inicialmente, ocorre a insuficiência. "Todos sabemos que, com qualquer chuvinha, as ruas de Santos ficam totalmente alagadas".

Por fim, o arquiteto cita outra conseqüência da concentração exagerada de pessoas morando numa mesma área: a valorização artificial da terra: "O preço está em função direta da capacidade de uso que o lote tem. Se é permitido ter uma área construída cada vez maior, o preço sobe. Mas, sendo artificial, prejudica toda a população, provocando, além da deterioração dos serviços públicos, aumento de aluguéis, por exemplo".

O adensamento precisa ser controlado

AS DISTORÇÕES DA BAIXADA

A questão urbana é determinada pelo equilíbrio entre a produção do campo e a das cidades. Nos últimos anos houve um acelerado processo de migração dos campos em direção às cidades, exatamente por causa do aumento de produtividade destas, que conseguem gerar muito mais riquezas. "A cidade é o que é em função das estruturas que o campo adquiriu", diz João Fernando Pires Meyer, do IAB.

A partir deste ponto inicial, ele conceitua: "A cidade é o suporte material das funções humanas, como trabalho, circulação, educação, moradia, alimentação, asseio, manutenção e recuperação da saúde, diversão e comunicação em geral e, principalmente, a socialização. A cidade é a expressão dessas funções. Para saber os efeitos que o meio urbano exerce sobre o homem, é preciso verificar qual o desempenho dessas funções, hoje".

Agora ele entra especificamente no caso de Santos e da região: "Não tem havido um crescimento econômico na Baixada Santista que acompanhe o crescimento da população. A geração de empregos tem sido insuficiente, o que leva ao aumento das atividades marginalizadas e pouco produtivas, que se soma a problemas estruturais mais antigos, ou seja, a má distribuição do produto gerado por aquelas funções no conjunto da sociedade.

À medida que grande parcela da população pouco se beneficia da produtividade, mesmo participando ativamente da produção, surge uma grande massa com recursos mínimos, causando um considerável impacto sobre a Cidade. "O pouco que essa população consegue auferir, em termos de salário, vai primeiro para a alimentação, que consome a maior parte do orçamento doméstico; em segundo lugar, para o transporte; só depois é que a pessoa vai brigar pela questão da moradia", diz Meyer.

Acrescenta que a população carente, como alternativa, invade áreas públicas, mangues e morros. E surgem os cortiços e os porões. "Isso já é uma agressão ao meio-ambiente: por falta de opção, essa população destrói os morros, os mangues". Um detalhe: Meyer afirma que os cortiços existem em todos os bairros, mesmo na orla das praias, só que são pouco visíveis, estão bem disfarçados.

Morando em condições precárias, essa população sofre um impacto em termos de qualidade de vida. Multiplicam-se as áreas congestionadas, os conflitos sociais e os desvios psicológicos, além de doenças, por causa da excessiva umidade. E, nos cubículos ocupados normalmente por dezenas de pessoas, não há sol e a ventilação é insuficiente.

"Isso tudo tem reflexos também para quem não vive nessas condições, formam-se pontos de cultura de doenças variadas, que são transmitidas para o conjunto da comunidade. E isso é o mínimo".

A SOCIALIZAÇÃO FRUSTRADA

A urbanização é um fenômeno que deveria levar à socialização, na medida em que concentra pessoas em um mesmo lugar. Mas o engenheiro e vereador Alcindo Gonçalves destaca a contradição: ao contrário do que seria lógico esperar, a urbanização passou a provocar o isolamento crescente, com reflexos gritantes sobre as relações sociais.

Alcindo lembra que Santos perdeu as características de cidade interiorana, desaparecendo o convívio e o lazer que aconteciam nas ruas. "O que significa morar em prédios?", ele pergunta. "Um isolamento muito grande. O condomínio, em vez de um espaço de convivência, passou a ser uma ilha. E o pior: a nossa formação cultural faz com que as pessoas sintam orgulho em viver sós".

Os efeitos disso tudo: solidão, agressividade e um alto nível de frustração. Com a superpopulação - como acontece com Santos hoje -, a vida passa a girar exclusivamente em torno do local de moradia. E, é claro, da televisão. A privacidade diminui e o indivíduo passa a perder a noção de seu espaço físico.

Mas ainda é possível gostar de morar em Santos. Só que, segundo Alcindo, a verticalização desenfreada (prédios e mais prédios) pode levar à destruição do espaço que as pessoas precisam para desenvolver seus relacionamentos sociais. "É o fenômeno do emparedamento: o lugar em que se vive passa a ser o único refúgio. Surgem então os grupos sem face, as pessoas perdem sua face, sua vontade, sonhos, aspirações". Por isso, destaca, é difícil traçar um perfil do santista, tentar identificar a "alma santista": a descaracterização é muito grande, estamos todos vulneráveis à repetição de modelos, à anulação.

A Cidade está esgotada e a renovação urbana é praticamente inevitável. Pessoalmente, porém, Alcindo diz que não conseguiria viver fora do meio urbano. "Não é que a urbanização contenha em si o germe do mal. Mas é preciso fazer com que as pessoas se sintam parte da Cidade e a Cidade parte delas. Fazer com que essas questões passem a ser vitais para a vida de cada um".

Quanto à utopia de tornar a Cidade um local ideal para se viver, o vereador pergunta e responde: "O Nirvana é a cidade? Não: o Nirvana é você".

O poder público tem a obrigação, comenta Alcindo, de interferir na urbanização, principalmente planejando e disciplinando. E, também, incentivando a animação urbana nos bairros.

O isolamento é cada vez maior

A PREOCUPAÇÃO ECOLÓGICA

A ocupação do espaço urbano também é uma questão ecológica. É o que demonstra o Centro de Estudos Ecológicos de Santos (Cesec), no seguinte texto:

"Os homens criam raízes, como as árvores. Sem essas raízes, que os ligam à terra, à cidade, à casa onde moram, eles se sentem perdidos. E é essa ligação profunda que os levam a brigar pelo espaço, pelo ambiente, pela qualidade de vida. O que acontece nas cidades atualmente? Quase não há ligação entre elas e seus moradores. As pessoas estão sempre de passagem, não conhecem seus vizinhos, espremem-se em apartamentos, têm suas vidas controladas pelo síndico".

"Não conhecem seus vizinhos e não sabem quem plantou a árvore que cresce na rua, em frente, ou quem a arrancou. Correm, lutam pela vida, têm bronquite. Resmungam da poluição, da falta de saneamento, do barulho infernal, do espaço reduzido para suas crianças, das ruas cheias de valas, de larvas".

"Mas resmungam sozinhos, enquanto os predadores do espaço têm, a uni-los os interesses econômicos. Por isso os movimentos ecológicos, além de se preocuparem com o pouco que resta de natureza intocada, preocupam-se também com as cidades e seus habitantes. Com a poluição das mentes, com a saúde pública, com os movimentos populares, por tanto tempo rechaçados, e que representam justamente a integração do homem com o seu meio, com sua gente".

"A ecologia urbana deve inspirar-se nesse sentimento de harmonia homem-espaço, que a sociedade moderna teima em fazer morrer. Para defender seu espaço, o homem precisa amá-lo; para amá-lo, precisa conhecê-lo, senti-lo, considerar-se seu dono e seu protetor".

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