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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 422 a 450):
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SEGUNDA PARTE - INDEPENDÊNCIA OU MORTE!

Capítulo I - Após o Fico (cont.)

[...]

Descrição da viagem e chegada de José Bonifácio ao Rio

Quando chegou a S. Paulo o emissário carioca, trazendo a carta de d. Pedro para a Junta, já não se encontrava mais nesta província o velho José Bonifácio. É sabido que o deputado escolhido pela Junta, para fazer parte da delegação que tinha de ir à presença do príncipe para rogar-lhe que ficasse no Brasil, fora Martim Francisco. Mas, na sessão de 3 de janeiro, convocada extraordinariamente, ele, alegando "Ponderosos motivos que expôs" [1], pediu escusa da Comissão, sendo nomeado José Bonifácio para substituí-lo.

A ata não diz que espécie de motivos ponderosos foram os alegados por Martim pra pedir dispensa do importante encargo. Dizem alguns cronistas que se tratava de impedimento por moléstia, mas se assim fosse, não haveria razão alguma para que da referida ata não contasse tal motivo, como se fizera em casos idênticos. O que nos quer parecer é que houve sugestão da gente do Rio para que José Bonifácio fosse até lá, pois é óbvio que o príncipe não deixaria de manifestar a todos os políticos que o procuravam, a confiança que depositava no ilustre santista e admiração que votava aos seus talentos e virtudes, confiança e admiração que ele sempre revelou, mesmo antes da chegada de José Bonifácio, quer em carta ao pai, quer na prática de atos muito significativos, como se verá.

VARNHAGEN, que era meticuloso na pesquisa de pormenores, informa-nos, como já vimos, que, acompanhado de Pedro Dias, viera a S. Paulo, enviado pelos patriotas fluminenses, João Evangelista de Farias Sayão Lobato, mais tarde senador do Império [2]; e MELLO MORAES noticia, no seu Brasil Histórico [3], que o mesmo Lobato fazia parte de uma deputação que do Rio fora a Santos para acompanhar José Bonifácio até lá. Isto nos faz acreditar que essa embaixada política, chegando a S. Paulo, quando, conforme ponderamos, as deliberações do Governo Provisório, relativas à ordem de regresso dada ao príncipe pelas Cortes, já estavam definitivamente tomadas - alvitrou, por mais conveniente ao êxito da causa, a ida do velho Conselheiro em lugar de seu irmão, o que foi naturalmente aceito sem discrepância por todos os membros da Junta e mais pessoas de consideração social no meio paulista.

Não se sabe ao certo o dia exato em que se embarcou José Bonifácio para a Corte, mas a verdade é que, desde o dia 2 de janeiro, deixou ele de comparecer às sessões da Junta. Teria, talvez, descido logo a Santos, ponto prefixado para seu embarque, não só para prover sobre embarcação segura em que seguir, como para dar outras providências, já de caráter público, já de natureza estritamente doméstica e privada.

A verdade, contudo, é que a nossa deputação, composta, como dissemos, de José Bonifácio e do coronel António Leite Pereira da Gama Lobo, pelo governo; do marechal José Arouche de Toledo Rendon, pela Câmara; e do padre Alexandre Gomes de Azevedo, pelo clero, tomou passagens num barco a vapor que, do porto de Santos, a conduziu até a baia de Sepetiba, fazendo parte da comitiva o desembargador Sayão Lobato [4].

O último, ao chegar à Vila de São Sebastião, separou-se de seus companheiros, por não poder suportar as inconveniências de alguns indivíduos mal intencionados que iam a bordo [5].

No dia 17 fundeou o navio em Sepetiba, onde a princesa Leopoldina, que, desde 11, se encontrava em Santa Cruz, por causa do levante da tropa portuguesa da guarnição carioca, mandara pôr três cavalos seus e um piquete de dois soldados, comandados por um cabo, à disposição dos deputados, para os conduzirem até o Rio, prevenindo-a, porém, logo que os mesmos chegassem.

A deputação, em vista das corteses disposições reveladas pela bondosa princesa, resolveu seguir para Santa Cruz a fim de lhe prestar as devidas homenagens, o que fez em carro de posta que havia transportado até Sepetiba um particular.

Em meio do trajeto apareceu-lhe, a cavalo, a princesa, que vinha a seu encontro e que, "com sumo contentamento", conversou com os ilustres viajantes, entretendo com José Bonifácio animada palestra em francês. "Falou-lhes que teria muito prazer em que vissem os seus brasileirinhos (eram seus augustos filhos, e nossos adoráveis patrícios), além dos quais tinha um terceiro no ventre e que o entregaria aos cuidados dos honrados paulistas" [6].

Pelas 10 horas da noite chegou a Sepetiba o marechal Arouche, o qual, provavelmente, acompanhara o desembargador Sayão Lobato, quando este, ao aportarem em São Sebastião, desembarcou do vapor, tendo os dois viajantes, naturalmente, prosseguido a viagem nalguma canoa de voga e daí o fato de chegarem uns depois dos outros.

O incidente, ocorrido naquele porto ao Norte do nosso litoral, explica por que razão MELLO MORAES [7] nos informa que "José Bonifácio veio por Santos, correndo a costa em canoa de voga até Itaguahy". É que parte da deputação e comitiva continuou a bordo do vapor e outra parte seguiu em canoa. Com o correr dos anos, os fatos se apagaram da memória pública; daí dizerem alguns historiadores que a deputação viajou em barco de vapor e outros que foi ela transportada em canoa de voga, quando o que se deu, de fato, foi, a certa altura, uma separação em dois grupos, tomando cada qual o meio de transporte que mais lhe aprouve no momento.

Às 9 horas da noite seguinte, ainda em trajes de viagem, dirigiram-se os deputados paulistas para São Cristóvão, sendo, por uma porta particular, introduzidos, de ordem expressa do príncipe, no aposento em que se achava ele. D. Pedro, logo depois de trocadas as primeiras impressões, comunicou a José Bonifácio que o nomeara para ministro do Reino por decreto de antevéspera. O velho sábio, depois de opor mil objeções ao ato de Sua Alteza, e de se recusar a servi-lo em tal posto, acabou por submeter-se em vista da insistência de suas solicitações.

Os negócios da Província de S. Paulo, que já começavam a tomar aspecto desagradável para a causa nacional patrocinada pelos Andradas, não teriam sido estranhos à sua recusa em aceitar a pasta do Reino. Convinha-lhe voltar à sua terra para, com sua autoridade e prestígio, conter os elementos reacionários que se preparavam para perturbar o congraçamento havido em 23 de junho e alterar a paz pública de que tanto se carecia naquela quadra de renovação.

Os pormenores que acabamos de dar, em relação à viagem e à chegada de José Bonifácio e seus colegas de deputação ao Rio, são fielmente colhidos do extrato de uma carta escrita por aqueles deputados, em data de 21 de janeiro, ao governo de S. Paulo, dando-lhe conta minuciosa de tudo quanto havia ocorrido, desde sua partida de Santos até a recepção com que os honrou o príncipe.

Esse extrato foi feito, em vista da carta original, pelo comendador Manuel da Cunha de Azeredo Coutinho de Sousa Chichorro, secretário geral do Expediente do Governo Provisório, e por ele enviado à Câmara da Capital, em cujo livro de Registro Geral encontramo-lo devidamente copiado. O dr. ANTÓNIO DE TOLEDO PIZA publicou-o no volume X da Revista do Instituto Histórico de S. Paulo, pág. 178; verificando, porém, ao que parece, que o importante documento afasta-se da tradição mantida pelos diversos historiadores em pontos essenciais, afirma Chichorro, ao fazer o resumo, "truncou desastradamente a carta"; e ROCHA POMBO acrescenta [8] que o dito resumo não foi feito "com escrúpulo nem fidelidade ao original".

Não existindo mais o original da referida carta, nem cópias integrais dela, mas unicamente o extrato malsinado, achamos arbitrária a conclusão a que chegaram os ilustres historiógrafos. Como - sem o original ou uma cópia íntegra e fiel que lhes permitisse o indispensável cotejo - podem asseverar, o primeiro, que Chichorro truncou desastradamente a carta, e o segundo, que o extrato não foi feito com escrúpulo e fidelidade?

É esse o único documento escrito que chegou até nós a respeito dos fatos que narramos, e o autenticam as assinaturas de José Bonifácio, do marechal Arouche e do coronel Gama Lobo, que o subscreveram. Resumido (certamente por ser longo demais ou por conter quiçá matéria reservada), pelo secretário Chichorro, que assinou por extenso o seu resumo, foi remetido à Câmara Municipal a 4 de fevereiro, dentro de um ofício do Governo Provisório, assinado pelo respectivo presidente Oeynhausen, por Martim Francisco e por Oliveira Pinto [9].

Não é crível que estes membros da Administração não tivessem ouvido a leitura do extrato, antes de mandá-lo à Edilidade. Seja como for, a verdade é que não há meio algum de se verificar hoje se Chichorro truncou ou resumiu infielmente a carta dos três deputados e que é uma afirmação gratuita, pois que sem base documental, supô-la eivada de falhas ou inexatidões. Para nós esse extrato é um documento perfeito e absolutamente digno de crédito, pelo menos enquanto não aparecer a carta original ou alguma cópia integral autenticada.

Esclarece-nos ele, de modo terminante, que parte da deputação foi a bordo de um pequeno vapor daqueles tempos remotos; e outra, ao longo da costa, em canoa de voga; e prova que, ao contrário da asseveração de MELLO MORAES [10], ela chegou ao Rio, não a 16, mas a 18, por terra, tendo desembarcado em Sepetiba a 17.

O mesmo MELLO MORAES [11], que OLIVEIRA LIMA repete [12], afirma que dona Leopoldina conversou com José Bonifácio em alemão, quando o extrato da carta nos diz que foi em francês, não sendo fácil de acreditar-se que um funcionário inteligente e experiente como Chichorro se equivocasse a ponto de confundir um idioma com outro.

O que se passou no encontro entre a princesa e o sábio naturalista diz-nos MELLO MORAES ter ouvido a Vasconcellos de Drummond, que o colhera da própria boca de dona Leopoldina. Mas o período referente à língua em que ambos se exprimiram acha-se destacado de tal forma do sentido geral dos outros, que não se sabe se esse pormenor foi também fornecido por ela àquele dedicado amigo de José Bonifácio. De qualquer maneira, continuamos a preferir a versão do extrato de Chichorro - documento oficial - aos informes verbais de Vasconcellos de Drummond que, tantos anos depois e quase septuagenário, não se recordaria com precisão de todos os detalhes ligados aos acontecimentos em que tomara parte, aliás importante e decisiva.

MELLO MORAES acrescenta que, na Fazenda de Santa Clara, a nossa futura primeira imperatriz apresentara ao Patriarca seus filhinhos, dizendo-lhe: "São vossos patrícios e eu peço que tenhais por eles um amor paternal". Ora, do extrato de Chichorro se depreende que os viajantes, tendo encontrado em caminho de Santa Cruz a princesa, não foram até a Fazenda, voltando para Sepetiba.

Tanto assim é que a augusta senhora, "depois de retirar-se para Santa Cruz, tornou a voltar a trote, e a galope", declarando que "muito estimaria que os senhores deputados vissem os seus brasileirinhos, além dos quais tinha um terceiro no ventre [13] e que o entregaria ao cuidado dos honrados paulistas" [14].

Eles não estiveram, pis, no Palácio da Fazenda, a princesa não apresentou a José Bonifácio os amados filhinhos, tendo-se limitado a dizer, no meio do caminho, que estimaria muito que os deputados os vissem e que entregaria aos cuidados dos paulistas o que se achava ainda em gestação.

Assim também a versão de que José Bonifácio viera por ela ao conhecimento de sua escolha para ministro, não é confirmada pelo extrato, porquanto o que nele se lê textualmente é o seguinte: "... partiram para a cidade, e pelas 9 horas da noite [15], com os mesmos vestidos de viagem... foram falar em São Cristóvão a S. A. Real... Sabendo então o exmo. senhor José Bonifácio de Andrada e Silva, de sua nomeação a secretário de Estado dos Negócios do Interior e Estrangeiros, resistiu quanto pode ao amável príncipe, que assim o distinguia, e só aceitou na firme certeza de poder promover a felicidade deste Reino" [16].

Era preciso que Chichorro fosse, ou singularmente desidioso no cumprimento de seus deveres profissionais, ou dotado de estupidez elevada ao cubo, para que alterasse tão profundamente, e em tantas passagens importantes, a carta da deputação paulista ao Governo de que era secretário geral - hipótese inadmissível porque foi ele conservado durante longo temo nas suas funções e provido noutras. Nem era possível, repetimo-lo, que o governo encampasse com sua responsabilidade esse extrato crivado de tantas e tão graves inexatidões.

Reorganização do ministério, com a entrada de José Bonifácio

Era tamanha a confiança que o príncipe depositava no apoio e na lealdade dos paulistas, que nem sequer esperou pela chegada da deputação mineira, para reorganizar o ministério, dando-lhe nova orientação e coesão maior. Ele sabia que Minas tinha com S. Paulo um pacto político que os levava a operar sempre de acordo, mas que de S. Paulo é que partia o impulso, a iniciativa, a palavra de ordem e de comando a que os patriotas mineiros obedeciam sem hesitação.

Na pasta da Marinha conservou d. Pedro a Manuel António Farinha, depois conde de Sousel, oficial-general da Armada, e que se impusera à confiança do regente por ter sido quem referendou a ordem, mandando que as tropas de Avilez se passassem para Niterói.

Em substituição do general Caula e Francisco Vieira, ocupantes, respectivamente, das pastas do Reino e da Guerra, das quais d. Pedro os demitiu por "serem medrosos e não convirem ao serviço da Nação nas atuais circunstâncias" [17], foram nomeados, para a vaga do primeiro, o ajudante-general Joaquim de Oliveira Álvares, e para a do segundo, o conselheiro José Bonifácio.

A pasta da Fazenda, vaga com a saída do conde da Lousan, que desde o dia do Fico pedira sua demissão, por não concordar com a resolução do príncipe, passou a ser ocupada por Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o governador pernambucano deposto e preso pelos revolucionários de 1817, e mais tarde marquês da Praia Grande.

Dos membros do novo gabinete só era brasileiro o ministro do Reino, como se vê; mas bastou somente a sua entrada no governo para "dar-lhe mais unidade, o que foi de grande conseqüência para a marcha que seguiram os negócios" - observa, num raro intervalo de justiça, o implacável detrator do Andrada insigne [18].

E prossegue: "O seu grande saber, o seu gênio intrépido, o seu caráter pertinaz, que quase chegava a raiar em defeito, contribuíram a fixar a volubilidade do príncipe. E o conhecimento especial, que a estada de tantos anos em Portugal lhe dera desse país, dos seus recursos, do forte e fraco do seus habitantes, e especialmente dos que dirigiam a política em 1821 e 1822, a este respeito principalmente, nenhum outro brasileiro de então lhe levava a palma".

Não pôde VARNHAGEN, não obstante sua irredutível antipatia por José Bonifácio, e cujas causas já apontamos, negar-lhe a primazia que lhe coube nessa fase decisiva do movimento emancipador. Mas, logo em seguida, trata de amesquinhar o egrégio compatriota, salientando, ou exagerando alguns dos defeitos peculiares ao caráter pessoal do novo ministro.

O que é verdade é que José Bonifácio foi, inegavelmente, "o homem providencial que se apresentara para assumir francamente a direção daquele grande movimento" - segundo comenta com sumo critério ROCHA POMBO [19].

É sabido que os fenômenos de ordem objetiva, ou físicos, ou sociais, são regidos por leis invariáveis, cuja fatalidade comporta entretanto a oportuna intervenção das vontades capazes. Quando os dirigentes das sociedades humanas resistem à franca atuação e desenvolvimento dessas leis, em vez de facilitarem seu livre curso e expansão - as revoluções políticas explodem com todo o seu horrível cortejo de perturbadoras conseqüências.

A José Bonifácio coube dirigir o admirável movimento, que visava desmembrar em duas pátrias a monstruosa extensão territorial da velha Lusitânia. Era a verificação de uma lei sociológica positiva - a do desmembramento das grandes nacionalidades em nacionalidades menores. Ele, embora não tivesse dados sistemáticos para resolver o problema, abordou-o empiricamente com a sua inata capacidade de sábio e de estadista.

Desde três anos antes que prevenira a metrópole, no seu famoso discurso de despedida da Academia Lisbonense, que a filha emancipada, com assento em território fadado à construção de um grande império, precisava de pôr casa. Chegara a ocasião de levar ao terreno da realidade o pensamento que formulara no campo das hipóteses. AO passo que os homens públicos reinóis opunham-se inutilmente ao cumprimento integral de semelhante lei - o previdente Andrada preparava-lhe o álveo por onde pudesse ela escoar-se em liberdade; e por esse motivo coube-lhe a vitória final na luta enérgica que sustentou contra aqueles.

Novas de Pernambuco. Partida de um emissário

Tratou o ilustre paulista de inteirar-se pormenorizadamente da situação geral do País, não só em relação à sua capital, como à Bahia e Pernambuco, que eram então os mais importantes centros políticos do Norte. Poucos dias antes de sua chegada, a 13, recebera o príncipe desagradáveis notícias do Recife, onde, apesar da expulsão do governador Luís do Rego, o espírito reinol, apoiado num batalhão luso que ali permanecia, e na ação violenta do comandante das Armas, José Maria de Moura, campeava soberbo, exacerbando o ânimo dos nacionais.

Tais notícias diziam que novas forças vindas de Portugal tinham desembarcado lá e tinham sido recebidas fraternalmente pela população. Os pernambucanos, à testa de cujo governo se achava Gervásio Pires Ferreira, que fora ministro da Fazenda do malogrado Governo Republicano de 1871, parece que ainda se achavam mal esclarecidos ou talvez mesmo enganados quanto aos verdadeiros intuitos dos patriotas fluminenses e receavam que a regência de d. Pedro degenerasse em franco despotismo. Esta hesitação provinha sobretudo da atitude expectante ou dúbia assumida pelo Governo Provisório em face dos acontecimentos.

Gervásio Pires Pereira, seu presidente, depois dos horríveis padecimentos morais e não pequenos sofrimentos físicos por que passara, como um dos principais fatores da insurreição de 1817, tornara-se demasiado prudente em matéria de revoluções políticas [20].

Achava, por isso, que Pernambuco, sem de todo desobedecer à Regência do Rio, devia manter-se obediente ao governo de Lisboa [21]. E assim se explica porque as recém-chegadas tropas portuguesas foram recebidas com as maiores demonstrações de júbilo, tanto oficial como popular. Mister se fazia orientar a respeito o povo da província, desfazendo-lhe as hesitações, dissipando-lhe as dúvidas, desenganando-o da ilusão em que permanecia, por falta de verídicas informações.

É então que alguns ativos membros do Clube da Resistência resolvem, numa reunião efetuada na mesma noite de 13, em casa de José Mariano de Azeredo Coutinho, à Rua do Cano, hoje 7 de Setembro [22], após o espetáculo havido no Teatro de São João, onde primeiro tinham circulado as notícias vindas de Pernambuco, que partisse para essa província António de Menezes Vasconcellos de Drummond, escolhido, por votação da assembléia, para, depois de atentamente sondar o espírito público, expor os fins da coligação política formada entre S. Paulo, Minas e Rio.

Estava o jovem emissário pronto para seguir seu destino, quando José Bonifácio, de quem, apesar da desproporção de idade entre ambos, se tornaria o amigo mais dedicado e mais venerador - chegou à Corte, como chefe da delegação paulista junto ao príncipe. Elevado imediatamente ao posto de ministro, assumindo desde logo, resolutamente, a direção geral do movimento que se iniciava, era natural que quisesse conferenciar com Drummond sobre o objeto de sua importante missão, o que de fato aconteceu.

A 1º de fevereiro zarpou da Guanabara o brigue francês Pérola, com destino ao Havre, levando a seu bordo o jovem independencista que, por precaução e para desviar a atenção dos interessados sobre a razão de sua viagem ao Norte, munira-se de um passaporte para a França, e de um despacho-circular do encarregado de Negócios da Inglaterra, sir Chamberlain, dirigido a todos os cônsules e aos comandantes dos navios de guerra de seu país, recomendando o portador à sua proteção e pedindo-lhes que lhe dispensassem todo o auxílio de que viesse a carecer [23].

As despesas com a importante excursão foram totalmente custeadas por Luís de Drummond [24], e não correram por conta do próprio excursionista, como enganadoramente assevera MELLO MORAES [25]. A 14 dava fundo no porto do Recife o citado brigue, e Vasconcellos de Drummond desembarcava, pretextando achar-se doente e impossibilitado de seguir para diante [26].

A população, já cansada com a longa hesitação expectante da Junta Provisória, começara a tomar uma atitude mais clara e decidida, e tinha de tal modo atuado, por intermédio das câmaras municipais, sobre o espírito da referida Junta, que ela se viu forçada a ordenar o embarque das tropas portuguesas (Batalhão dos Algarves) para Lisboa, o que se realizara a 31 de janeiro [27], acompanhando-as o governador das Armas, sob protesto [28].

Entrou logo em ação ao pé dos pernambucanos o emissário dos políticos fluminenses. Não foi, porém, fácil a sua tarefa, devido principalmente aos obstáculos que até a última hora lhe criou o presidente Gervásio.

A 1º de junho, finalmente, viu coroados de pleno êxito seus infatigáveis esforços. O povo e a Câmara, reunidos nos Paços desta, aclamaram uma comissão composta de Basílio Quaresma Torreão, como procurador do mesmo povo; do dr. António José Coelho, como representante do clero; do 2º tenente Venceslau José Soares, por parte do Batalhão de Artilharia; do capitão Joaquim José da Silva Santiago, pelo 1º Batalhão de Caçadores; do alferes José Francisco Vaz de Pinho e Carapeba, pelo 2º de Caçadores; e do alferes Manuel António Henriques Tota, pelo esquadrão de Cavalaria de Linha [29].

Era seu formal intuito promover a imediata submissão da província à Regência do Rio. De sua deliberação foram dar conhecimento à Junta, que se achava reunida sob a presidência do padre Manuel Ignácio de Carvalho, por se achar ausente Gervásio, o qual, todavia, não tardou a comparecer assumindo suas funções [30].

Discutia-se acaloradamente de lado a lado, quando, "compelido por um movimento repentino do coronel José de Barros Falcão" [31], penetrou no recinto Vasconcellos de Drummond, e, tomando a palavra, declarou que não havia necessidade de explicações nem discussões: que o povo de Pernambuco, irmanado com o do Rio, pensava e queria como este, ao que o governo provincial devia prontamente anuir.

Depois de breve debate, aquiesceu-se à vontade do povo, lavrou-se uma ata, que os presentes assinaram; e, no dia seguinte, reunidos nos Paços do Conselho, prestaram juramento de fidelidade e obediência às Cortes, ao Rei e "ao príncipe real, o sr. d. Pedro de Alcântara, regente constitucional do Brasil" [32], o governo provisório, o governador das Armas José Correia de Mello, o Senado da Câmara, os tribunais, a tropa e o povo.

Da leitura da ata relativa à sessão do dia 1º, vê-se que o governo cedeu à imposição da força armada, que se pronunciou abertamente pelo órgão dos militares que faziam parte da aludida comissão promotora do reconhecimento do príncipe.

De Pernambuco, onde concluíra com felicidade sua arriscada incumbência, partiu Drummond secretamente para a Bahia, a serviço da causa que abraçara com o ardor de seu patriotismo e o destemor de sua mocidade. Falaremos depois dos diligentes passos que deu naquela província em favor da Independência. Por ora, devemos voltar ao Rio e às medidas postas em prática por José Bonifácio, para assegurar, no meio da paz, a transformação política do País.

Audiência do príncipe à deputação paulista. Discurso de José Bonifácio

No dia 26 de janeiro fora ele recebido, à testa da deputação paulista, em audiência especial concedida pelo regente que a marcara de propósito, para esse dia, por ser o primeiro aniversário da instalação das Cortes Portuguesas, "dir-se-ia que com fina ironia", comenta um ilustre escritor [33].

Pelas 11 horas e meia da manhã, reuniram-se em casa do ministro os membros da deputação e todos os paulistas que se achavam na Corte, chegando pouco depois a Câmara e vários magistrados. Ao meio dia formou-se o préstito que, do Largo de São Francisco de Paula, encaminhou-se pela Rua do Ouvidor em direção ao Paço da cidade. As ruas achavam-se apinhadas de povo, por entre o qual um piquete de cavalaria, à frente, abria caminho, seguindo-se, a pé, a deputação e todos os funcionários que a acompanhavam.

O Paço estava festivamente ornamentado, e o seu pessoal, quer civil como militar, trajava a rigor [34]. Antes de entregar as representações da vereança e do bispo de S. Paulo, leu José Bonifácio um notável discurso, ratificando os conceitos do célebre ofício de 24 de dezembro do ano anterior, no qual o governo provisório pedira ao príncipe para não retirar-se do Brasil.

Nesse documento, que reproduzimos integralmente em nota, examinava o orador, demoradamente, a letra e o espírito dos decretos de 29 de setembro de 1821, demonstrando que foram eles votados no evidente propósito e não disfarçada intenção de reduzir de novo o Brasil à sua antiga condição colonial, o que era inadmissível ante o seu incontestável progresso e cultura social sempre crescente.

As representações da Câmara e do clero paulista. Fala de José Bonifácio a 26 de janeiro

Abordou, com grande habilidade, os motivos por que não podia o príncipe, voluntariamente, dar cumprimento à ordem das Cortes para o seu regresso. "Que motivos ponderosos - perguntava - deveriam conduzi-lo a Portugal? O amor da Pátria? Para um príncipe todos os seus Estados são Pátria; de mais, este amor, bem ou mal entendido, pelo torrão em que nascemos, também deve falar ao coração de seus Augustos Filhos, nossos compatriotas, que em tão críticas circunstâncias não devem abandonar o seu Brasil. SEria porventura o desejo de tornar a abraçar seu Augusto Pai? Os abraços e carinhos de seus filhos, e de uma terna e virtuosa esposa, indenizá-lo-ia dos abraços paternais; e sendo para os paulistas indubitável que Sua Majestade fora forçado a chamá-lo para Portugal, desobedecer a tais ordens é um verdadeiro ato de obediência filial. Seria acaso a felicidade e seus súditos da Europa? Quem mais dela precisa que os habitantes do seu Brasil? Seriam os interesses futuros de sua Augusta Família? Estes mesmos requerem, imperiosamente, que V. A. R. conserve para a Sereníssima Casa de Bragança o vasto, fértil e grandioso Reino do Brasil".

Depois do argumento, a ameaça; depois da súplica, o rugido. E assim prossegue, mudando de tom: "...se, porém, V. A. R., apesar de tudo, estivesse, como já não cremos, pelos deslumbrados e anti-constitucionais decretos de 29 de setembro, além de perder para o mundo, o que não era possível, a dignidade de homem livre e de príncipe, teria também de responder, perante o Tribunal da Divindade, pelos rios de sangue que iriam ensopar, pela sua ausência, nossos campos e montanhas; porque, quebrados de uma vez os prestígios da ignorância e da escravidão antiga, os honrados portugueses do Brasil, e mormente os paulistas, e todos os seus filhos e netos, que habitam a populosa e rica província de Minas Gerais, o Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso, escudados na justiça da causa, e seguros da sua união, força e riqueza, quais tigres esfaimados, tomariam vingança crua da perfídia desse punhado de inimigos da ordem e da justiça, que, vendidos à política oculta de gabinetes estrangeiros, e alucinando as Cortes, pretenderam fazer a sua e a nossa infelicidade".

E energicamente perora: "Digne-se, pois, V. A. R., acolhendo benigno as súplicas de seus fiéis paulistas, declarar francamente à face do Universo, que não lhe é lícito obedecer aos decretos últimos, para a felicidade, não só do Reino do Brasil, mas de todo o Reino Unido; que vai logo castigas os rebeldes e perturbadores da ordem e do sossego público; que para reunir todas as províncias deste Reino em um centro comum de união e de interesse recíproco, convocará uma Junta de Procuradores Gerais, ou representantes, legalmente nomeados pelos eleitores de paróquia, juntos em cada comarca, para que nesta Corte, e perante V. A. R., aconselhem e advoguem a causa das suas respectivas províncias; podendo ser revogados seus poderes, e nomeados outros, se se não comportarem conforme as vistas e desejos das mesmas províncias; e parece-nos, Augusto Senhor, que bastará, por enquanto, que as províncias grandes do Brasil enviem dois deputados e as pequenas um.

"Deste modo, além dos representantes nas Cortes Gerais, que advoguem e defendam os direitos da Nação em geral, haverá no Rio de Janeiro uma deputação brasílica, que aconselhe e faça tomar aquelas medidas urgentes e necessárias, a bem do Brasil, e de cada uma de suas províncias, que não podem esperar por decisões longínquas e demoradas. Então, nós, mensageiros de tão feliz notícia, iremos derramar o prazer e o júbilo nos corações dos nossos honrados e leais patrícios" [35].

Procedeu-se depois à leitura da representação da Câmara Municipal, datada de 31 de dezembro e assinada pelo dr. José da Costa Carvalho, ouvidor interino da comarca; pelo presidente da dita Câmara, José de Almeida Ramos, juiz de fora pela lei; pelos vereadores António de Siqueira e Moraes, António da Silva Prado e António Cardoso Nogueira; pelo procurador Amaro José de Moraes, escrivão João Nepomuceno de Almeida, bispo d. Matheus, arcediago e vigário geral do bispado, Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade; Chantre da Sé, António Joaquim Pereira de Abreu e mais 256 pessoas de alta posição no clero, na militança, no funcionalismo e no comércio.

Nesse documento, salienta-se que o "generoso Brasil, que tão francamente se prestou a fazer causa comum com Portugal, vendo iludida a sua boa fé e ultrajado o seu decoro nacional, reconhece hoje seu erro, e à vista de procedimentos nunca esperados, parece jazer amadornado; podendo apenas acreditar em tão absurdas disposições a seu respeito. Os paulistas, porém, não podendo por mais tempo disfarçar seu justíssimo ressentimento, são os primeiros que ousam levantar sua voz e protestar contra atos inconstitucionais, com que se pretende iludir e escravizar um povo livre, cujo crime é haver dado demasiado crédito a vãs promessas e doces palavras".

E depois de entrarem em bem elaboradas considerações sobre os últimos decretos e os fatos mais recentes, terminavam declarando que os paulistas estavam na firme resolução de "preferir a morte à escravidão, de não pouparem sacrifícios até esgotarem a última pinga de seu sangue para sustentarem seus direitos" [36].

A representação do bispo d. Matheus, em nome do Cabido da Sé e do clero da diocese, é mais lacônica. Diz que "pensam muito mal as Cortes, se julgam querer reduzir o Reino do Brasil a uma província cativa de Lisboa, para elas dominarem com um poder despótico e servil". Suplica a S. A. que não se afaste do Reino do Brasil "onde todos os brasileiros estimam, amam e reverenciam a V. A. R., sobretudo os honrados paulistas"; e acrescenta: "... todos eles, sobretudo eu e o meu clero estamos prontos a dar a vida por V. A. R. e pela Real Família... Se V. A. R. seguir o que pretendem as Cortes, há de se arrepender e sem remédio". Este documento é datado de 1º de janeiro de 1822 [37].

A simples leitura dessas representações revela o ardor patriótico que lavrava nos corações brasileiros, e notadamente nos destemidos paulistas, que se mostravam dispostos aos mais penosos sacrifícios e duras provações para que a causa da liberdade política da Pátria triunfasse dos seus opositores, empenhados em recolonizá-la.

A linguagem, embora guindada, ao sabor da época, era expressiva, clara e singela, demonstrando franqueza, coragem e sinceridade. Um ideal superior, não contaminado por interesses privados ou excessivas ambições de mando, animava entusiasticamente os patriotas de todas as classes e de todas as idades. Nas reuniões deliberativas o provecto ancião ombreava-se com o ardoroso adolescente; o militar sentava-se ao lado do civil; o sacerdote católico fraternizava com o pedreiro livre (N.E.: pedreiro livre = maçon). Só se tinha em vista a organização da Pátria, a defesa de sua liberdade ameaçada, as imensas possibilidades de seu grandioso futuro.

O belo sexo, por suas venerandas matronas e sedutoras senhoritas, incitava, com seus conselhos e com seus sorrisos, os intrépidos varões a não desanimarem na tarefa em que se tinham empenhado com tamanha resolução e tanta fé. O ambiente era propício à adoção de medidas mais enérgicas do que as que tinham sido postas em prática até então. Compreendeu-o muito bem José Bonifácio, a cujo espírito atilado não escaparam, por certo, os inconvenientes e perigos da permanência da Divisão Portuguesa no outro lado da baía. De repente, supondo desprevenido o governo e confiante a população da Capital, poderia o general Avilez, não conformado com a atitude do príncipe, tentar uma investida que poderia ser de graves conseqüências.

Além disso, o povo carioca não dormia sossegado, pensando naquela constante ameaça postada ali tão próxima dele. Qualquer tiro isolado que acaso ecoava das bandas do mar, no silêncio das noites, punha em sobressalto os habitantes, que temiam sobretudo pela sorte das respectivas famílias. Qualquer inesperado movimento de tropas produzia pânico entre os comerciantes da Praça, paralisando as transações, o que acarretava não pequenos prejuízos para todo o mundo.

Entendeu, por isso, o governo, que era chegada a ocasião de determinar o pronto embarque de Avilez e seus soldados, de regresso para Portugal, não lhe faltando, como se vê, fundamentado pretexto que justificasse plenamente sua nova deliberação.

Ordem de embarque à Divisão Portuguesa. Protesto e relutância da oficialidade

Pelo acordo estabelecido entre aquele general e o príncipe, a Divisão deveria ficar aquartelada na Praia Grande de Niterói, até que viessem da Europa as forças que deviam rendê-la [38].

Percebeu José Bonifácio que essa estipulação expunha aos maiores riscos a nossa causa, porque, combinados os que aqui se achavam, com os que não demorariam a chegar, poderiam pronunciar-se de modo a colocar o governo em sérios embaraços, visto como, embora fosse mais numerosa que as tropas da Divisão, a força brasileira que guarnecia a Capital ainda não dispunha da disciplina e da técnica indispensável para entrar me luta armada com elementos que a esse respeito lhe eram incontestavelmente superiores.

O embarque da Divisão era, pois, negócio urgente, para que seus indisciplinados e arrogantes batalhões não recrescessem de audácia com o reforço que lhes traria a expedição prestes a fundear na Guanabara. Como preliminar, expediram-se ordens para serem postas em rigoroso sítio as ditas forças. Mandaram-se para a Praia Grande e São Gonçalo, sob o comando-chefe do general Xavier Curado, dois regimentos de Milícia, um a pé e outro montado; um Batalhão de Caçadores, um de Granadeiros, dois Esquadrões de Cavalaria e quatro peças de artilharia, para cortarem toda e qualquer comunicação de Avilez com o interior da província.

Para o lado do mar, guarneceram-se melhor as fortalezas mais próximas de Niterói e preparou-se uma pequena esquadra, sob o comando do chefe de divisão Rodrigo António Delamare, composta da fragata União, da corveta Liberal, da barca a vapor que conduzira de Santos a Sepetiba os deputados paulistas, e que era a única então existente no Brasil; e de três lanchas canhoneiras [39].

Delamare

Imagem publicada com o texto

Enérgica proclamação do príncipe

A 30 de janeiro, concluídos esses preparativos, o ministro da Guerra ordenou por portaria ao brigadeiro Carretti para que fizesse a Divisão embarcar nos dias 4 e 5, nos navios que se achavam prontos para recebê-la. Insurgiu-se a oficialidade contra a superior determinação, por entendê-la contrária à sua honra [40], e representou em tal sentido ao regente, que lhe respondeu pela enérgica proclamação do dia 1º.

"Porventura - pergunta-lhe - o soldado perdeu jamais a sua honra e dignidade, quando obedece aos seus superiores e ao seu príncipe? Pretendeis vós iludir-me por mais tempo com expressões humildes na aparência, mas criminosas na realidade, e diminuir assim a atrocidade da vossa resolução de resistirdes pela força às ordens do vosso príncipe?"

E termina desta forma: "Oficiais e soldados portugueses! Ainda é tempo... Eu vos mando por esta derradeira vez que cumprais à risca o que vos ordenei, porque estou firme e inabalável em fazer respeitar minha real autoridade por todos os meios que a Justiça, a honra e a salvação do Reino Unido me prescrevem. Tal é a minha última resolução... Decidi" [41].

No dia seguinte [42], e não no mesmo dia como pretende VARNHAGEN [43], foram publicados dois editais do Intendente Geral de Polícia, o desembargador de Agravos da Casa da Suplicação, doutor João Ignácio da Cunha, em execução às ordens de Sua Alteza, expedidas pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, da qual era José Bonifácio o titular.

No primeiro, proibia inteiramente, até segunda ordem, a comunicação por mar, "desta Cidade ou de qualquer outra parte, para os sítios da Praia Grande, Armação, S. Domingos e imediações". Qualquer embarcação que procedesse em desacordo com o edital seria posta a pique pelas canhoneiras, lanchas e escaleres de ronda, e os respectivos donos devidamente responsabilizados e processados.

No segundo, prevendo-se a hipótese de um ataque por terra, contra as forças aquarteladas em Niterói, determinava-se "aos moradores da banda de além que, para seu bem e utilidade geral, nas presentes críticas circunstâncias", se recolhessem desde logo à Capital ou se internassem 6 léguas para o interior do País, "pondo em segurança todos os seus haveres, gados e víveres, o que se espera dos mesmos moradores, não só por obediência às reais ordens, como também em sinal de patriotismo e zelo a bem da causa pública" [44].

Diante da enérgica proclamação do dia 1º, e das não menos enérgicas providências adotadas pelos editais do dia seguinte, entenderam-se os oficiais com o regente, a quem declararam que tinham conseguido persuadir os soldados de que deviam embarcar-se, desde que se pusesse à sua disposição maior número de transportes e se lhes pagassem todos os soldos atrasados e mais três meses adiantadamente - o que lhes foi prometido.

Embarque das tropas

Começaram a embarcar a 5 [45] e não a 7, como quer VARNHAGEN [46], a fim de levantarem ferro a 12. Parece que a promessa não foi cumprida, porquanto até o dia 8 - novo prazo que lhes fora concedido [47] - não tinha sido iniciado o embarque. A 9, pela manhã, passou-se d. Pedro para bordo da fragata União [48], e não a 8, como diz ROCHA POMBO [49]; e por volta do meio dia mandou à terra o capitão-tenente José de Lemos Vianna [50] intimar a Divisão para embarcar-se ao amanhecer do dia seguinte; e que se assim não o fizesse, não lhe daria quartel, e reputa-la-ia inimiga.

Compareceram a bordo todos os comandantes, que lhe fizeram representações inconvenientes, pelo que d. Pedro, em vista de tanta soberba, respondeu-lhes seca e decididamente: "Já ordenei, e se não executarem amanhã, começo-lhes a fazer fogo" [51].

Desiludidos de poderem continuar ludibriando o príncipe, desceram à terra e ao amanhecer de 10, "fazendo neles maior efeito o medo, que a honra que eles dizem ter" [52], principiaram a embarcar, achando-se todos a bordo às 3 e 1/2 da tarde, "mansos como uns cordeiros" [53], visto como, desde as primeiras horas do dia, estavam de fogos acesos todos os navios do bloqueio e d. Pedro tinha pernoitado na União [54].

A ameaça não era fanfarrice: cumpria-lhes, portanto, obedecer. A 15 zarpou a frota, que se compunha dos navios Constituição, São José Americano, Três Corações, Despique, Duarte Pacheco, Indústria e Verdadeiros Amigos (de nacionalidade sarda, o último), e que foi comboiada até um pouco adiante do Cabo de Santo Agostinho pelas corvetas Liberal e Maria da Glória [55].

Dois deles arribaram à Bahia e aí desembarcaram, a 27 de março, 381 soldados, que foram reforçar as tropas do general Madeira - informa o BARÃO DO RIO BRANCO, que, aliás, reduz a 7 as 8 embarcações relacionadas por OLIVEIRA LIMA [56].

Da tropa em regresso tinham ficado no Rio, com as competentes baixas que lhes mandara dar o príncipe, sem formalidade militar alguma, cerca de 500 soldados, que preferiram engajar-se no Exército do Brasil [57].

Chegado a Lisboa, enviou o general Avilez às Cortes uma comunicação sobre a retirada das tropas de seu comando, na qual se inocentava de quaisquer culpas e falava do Brasil com grande insolência e despeito.

Estávamos ainda por aqui na infância da civilização, e não podíamos compreender nem estimar a transformação moderna do regime; que a implantação do constitucionalismo em nosso meio fora obra da Divisão Auxiliadora; e para não atacar o regente, imputa a seus conselheiros a responsabilidade dos desatinos que se praticaram contra sua Força.

Ao mesmo tempo recebia o ministro da Guerra de Portugal, Cândido José Xavier da Silva, um ofício do ministro da Guerra do Brasil, o tenente-general Joaquim de Oliveira Álvares, cuja narrativa era completamente diversa da de Avilez, pois que o responsabilizava e à Divisão Auxiliadora pela desordem que tinham querido implantar na capital do País.

Defenderam o general Avilez perante as Cortes os deputados Borges Carneiro e Barreto Feio, tendo o primeiro estigmatizado os partidários de d. Pedro com o epíteto de "depravados e ladrões que roubaram sempre a Nação" [58].

Respondeu-lhe António Carlos em defesa dos injuriados, mas não pôde prosseguir na sua veemente oração, que foi interrompida por protestos do recinto e ameaças e insultos do populacho que se apinhava agitado nas galerias. Restabelecido com dificuldade o silêncio, continuou então a falar o impetuoso orador paulista, já agora indiferente aos gritos da plebe, enfurecida por terem sido vencidos os soldados do Exército Português por simples forças de Milícia, compostas de "frades armados, clérigos e populares" [59].

***

[...]


NOTAS:

[1] Actas do Govêrno Provisório, pág. 105.

[2] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 127. Este autor dá apenas como simples consta a viagem da deputação paulista em navio a vapor.

[3] Tomo 2º, pág. 264, col. 2ª.

[4] MELLO MORAES - Brasil Histórico, tomo 2º, pág. 264, col. 2ª.

[5] Carta da deputação paulista ao Governo Provisório de S. Paulo, datada do Rio em 21 de janeiro de 1822 (no Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, anos de 1820 a 1822, pág. 319).

[6] Carta da deputação paulista ao Governo Provisório de S. Paulo, datada do Rio em 21 de janeiro de 1822 (no Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, anos de 1820 a 1822, pág. 320).

[7] Hist. das Constituições, vol. 1º, pág. 1123, col. 2ª.

[8] Hist. do Brasil, vol. 7º, pág. 638, nota 2.

[9] Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, anos de 1820-1822, pág. 318.

[10] Brasil Histórico, 1º vol., pág. 264, 2ª col.; Hist. das Constituições, 1º vol., pág. 113, 2ª col.

[11] Hist. das Const., vol., pág. e col. cits.

[12] O Movimento da Independência, pág. 178.

[13] Dona Januária, nascida a 11 de março de 1822, e jurada princesa a 31 de maio de 1836. Casou-se a 28 de abril de 1844 com o príncipe conde de Áquila, irmão do então rei de Nápoles, partindo para a Europa, com licença do imperador seu irmão, a 24 de outubro do mesmo ano. Perdeu ela os seus direitos constitucionais à Coroa, no dia 6 de maio de 1845, no qual a Assembléia Geral Legislativa reconheceu como legítimo sucessor do trono o príncipe d. Affonso, nascido a 23 de fevereiro do referido ano, e filho do então imperador d. Pedro II e sua esposa dona Teresa Christina (ABREU LIMA - Synopsis, pág. 330).

[14] Carta, citada acima, da deputação paulista ao Governo Provisório da Província (No Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, 1820-1822, pág. 320).

[15] Idem, ibidem, pág. cit.

[16] Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, 1820-1822, pág. 321.

[17] Carta de d. Pedro a d. João VI, a 23 de janeiro de 1822 (Edição da Rev. do Inst. Hist. do Ceará, pág. 165).

[18] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 139.

[19] Obr. cit., vol. 7, pág. 639.

[20] Este abastado negociante, preso após o malogro do movimento de 6 de março, querendo fugir a declarações perante a alçada do terrível desembargador Bernardo Teixeira, emudeceu propositadamente na cadeia da Relação da Bahia, e nunca vacilou no seu heróico propósito, apesar do duro tratamento a que o submeteram para obrigá-lo a falar. De tal forma contraíra o hábito de não falar que, mudo saiu da prisão, mudo se achava quando foi eleito presidente do Governo Provisório Constitucional de sua província e mudo se conservou ainda nas primeiras sessões que presidiu, escrevendo numa lousa tudo quanto tinha a dizer (VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 15).

[21] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 16.

[22] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 16. MELLO MORAES (História das Constituições, vol. 1º, pág. 115, col. 1ª), diz erradamente que a citada reunião se realizara à Rua do Conde, hoje do Conde d'Eu, em casa de Luís de Menezes Vasconcellos de Drummond, irmão do emissário escolhido. Ninguém melhor do que este para informar a respeito, por ter sido um dos presentes.

[23] MELLO MORAES - Hist. das Cons., vol. 1º, pág. 115, col. 2ª.

[24] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 17.

[25] Obr. cit., pág. cit. col. 2ª.

[26] ROCHA POMBO - Hist. do Brasil, vol. 7º, pág. 650.

[27] ABREU LIMA - Synópsis, pág. 329. PEREIRA DA SILVA (obr. cit., 1ª ed., pág. 266) data de 30 esse embarque.

[28] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. cit., pág. 650 e nota nº 1.

[29] MELLO MORAES - Obr. cit., vol. 1º, pág. 351, col. 1ª.

[30] VARNHAGEN - Hist. da Indep., pág. 408.

[31] VASCONCELLOS DE DRUMMOND - Obr. cit., pág. 20.

[32] MELLO MORAES - Obr. cit., vol. cit., pág. cit., col. 2ª.

[33] OLIVEIRA LIMA - Obr. cit., pág. 179.

[34] MELLO MORAES - Obr. cit., vol. 1º, pág. 116, 1ª col.

[35] Esta representação, ou fala, que estava assinada por todos os deputados, é que alguns malévolos historiadores e adversários de José Bonifácio confundem propositalmente com o ofício da Junta de S. Paulo, enviado a 24 de dezembro de 1821 e recebido pelo príncipe a 1º de janeiro de 1822, e isto com o fim de provarem que o apelo dos paulistas só chegou ao Rio depois do Fico, o que é inverdadeiro, segundo já demonstramos irrefutavelmente.

A representação de 26 de janeiro não é mais que a reprodução ampliada e mais cuidadosa dos conceitos formulados no ofício de 24 de dezembro. Ei-la, na íntegra: "SENHOR - O Governo, Câmara, clero e povo de S. Paulo, que aqui nos enviam como seus deputados, de cujos sentimentos, e firme resolução, temos a honra de ser o órgão perante V. A. R., impacientes de continuar a sofrer tantos velhos abusos, e o acrescimento de outros novos introduzidos pela imperícia, pela má-fé e pelo crime, aplaudiram com entusiasmo as primeiras tentativas e os nobres esforços de seus irmãos da Europa, a bem da regeneração política do vasto império lusitano; mitigaram porém o seu ardor e confiança, logo que refletiram com madureza e sangue frio no manifesto das Cortes às nações estrangeiras, em que, deplorando-se o estado de miséria e de pobreza em que se achava Portugal, indicava-se rebuçadamente, como medida necessária, o restabelecimento do antigo comércio exclusivo colonial, origem fecunda das desgraças, e do longo abatimento em que jazera o Reino do Brasil.

"Examinaram depois as Bases da Constituição da Monarquia Portuguesa, e as aprovaram e juraram como princípios incontestáveis de Direito Público universal; mas o projeto da nova Constituição Política, então ainda não debatido e convertido em lei, projeto em muita parte mal pensado e injusto, em que se pretendia condenar astuciosamente o Brasil a ser outra vez colônia, e a representar o papel de abjeto escravo, cuja administração era confiada a tutores egoístas e avarentos, só responsáveis às Cortes, e ao governo de Lisboa, entranhou no fundo de sua alma novas dúvidas, e lhes excitou novos temores e desconfianças.

"Enfim apareceram, na Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro de 11 de dezembro passado, os dois decretos de 29 de setembro; então rasgou-se de todo o véu, e apareceu a terrível realidade. O governo, câmara e povo de S. Paulo estremeceram de horror, e arderam de raiva. Moderado porém o maior ímpeto da sua indignação, e havendo reassumido a razão os seus direitos, os homens sensatos procederam a analisar friamente o primeiro decreto provisório, que organiza a forma e atribuições dos governos provinciais do Brasil, começando pelo exame da genuína inteligência destas duas palavras - decreto provisório -, e acharam que só podia ser uma determinação temporária, exigida pela lei imperiosa da necessidade.

"Aplicando pois a urgência de um tal decreto às circunstâncias atuais das diferentes províncias do Reino do Brasil, reconheceram-no, à primeira vista, inteiramente supérfluo, por estarem quase todas regidas por governos que o povo legalmente havia criado, usando dos direitos inalienáveis que lhes competem como homens e como cidadãos livres. O uso destes direitos só podia modificar-se pela publicação de uma Constituição, fruto da sabedoria e vontade geral dos representantes de todas as províncias portuguesas, reunidos em Cortes.

"Fundadas nestes direitos imprescritíveis e inalienáveis, legitimaram as Cortes de Lisboa, pelo seu decreto de 18 de abril do ano passado, os governos provisórios criados nas diversas províncias do Brasil, e declararam Beneméritos da Pátria os que premeditaram, desenvolveram e executaram a regeneração política da Nação.

"E como agora ousa o decreto de 29 de setembro anular a doutrina estabelecida no decreto de 18 de abril: Se o novo decreto era talvez necessário para alguma das províncias do Brasil, que estivesse em desordem e anarquia, só a esta poderia ser aplicado, e por ela aceitado.

"Os cidadãos sensatos e livres da minha província passaram depois a examinar se um tal decreto era justo e conforme com as Bases da Constituição, por eles aprovadas e juradas: e o resultado deste exame foi o pleno conhecimento da sua clara e manifesta anti-constitucionalidade, porque, se estas mesmas Bases, bem que princípio de Direito Público universal, não podiam obrigar os brasileiros, enquanto pelos seus legítimos deputados as não adotassem e jurassem; muito menos os podiam obrigar regras e determinações de Direito Público particular, sem o exame e aprovação de seus representantes.

"Consideraram finalmente o referido decreto pelo lado da sua utilidade; e viram o que todo o português sem espírito de prevenção e de partido, e só com a mira no bem da ordem, da união e felicidade geral de toda a Nação Portuguesa, devia necessariamente ver, isto é, a desmembração do Reino do Brasil em porções desatadas, e rivais, sem nexo, e sem centro comum de força e unidade; viram um governador das Armas sujeito e responsável só ao governo de Lisboa, com todas as atribuições despóticas dos antigos capitães-generais, e somente privado deste nome; viram governos provinciais, a quem aparentemente se dava toda a jurisdição na parte civil, econômica, administrativa e policial, mas destituídos verdadeiramente de instrumentos, que os podiam habilitar, para o efetivo desempenho de suas obrigações; viram Juntas de Fazenda regidas ainda agora pelas absurdas leis antigas das suas criações, cujos defeitos já estavam manifestos pela experiência de longos anos, e seus membros, coletiva e individualmente, responsáveis somente às Cortes e governo de Lisboa; viram magistrados independentes e anárquicos pela falta de um Tribunal Supremo de Justiça, que conheça e julgue seus crimes e prevaricações, e os povos, depois de acostumados por treze anos a recursos mais prontos reduzidos hoje, pela extinção premeditada de todos os tribunais do Rio de Janeiro, a irem, como vis colonos, sofrer as delongas e trapaças dos de Lisboa, defraudados, por um rasgo de pena, de uma autoridade benéfica e tutelar, que suspenda seus ais, e enxugue suas lágrimas, despachando e punindo sem demora; viram, em uma palavra, quatro forças entre si independentes, de cuja luta e oposição infalível e necessária devem seguir-se desordens, roubos, anarquia e guerra civil; pois que o governo de Lisboa, e as Cortes, a duas mil léguas de distância, nunca jamais poderiam reprimi-las e obviá-las.

"Viram finalmente o acréscimo de despesas inúteis, e o caruncho do velho despotismo cariando por toda a circunferência a nova árvore constitucional até seu âmago. Que horríveis calamidades, pois, nos pressagiava e prometia uma tão absurda forma de governo! A que deploráveis destinos não estava condenado o belo, rico e vasto Império do Brasil!

"Passou-se depois ao exame do segundo decreto da mesma data, pelo qual V. A. R., único pai comum que nos restava, devia ser arrancado do seio da Grande Família Brasileira, a fim de viajar incógnito (como assoalhavam), pela Espanha, França e Inglaterra.

"No primeiro decreto, vimos lavrada a sentença da anarquia e escravidão do Brasil; no segundo vemos a execução da terrível sentença, vemos a perfídia com que o Brasil é atraiçoado, e por fim a desonra e ignomínia com que V. A. R. é tratado: no primeiro vimos espoliado o Brasil da categoria de Reino; no segundo vemo-lo reduzido ao mísero estado de orfandade. Roubou-se pelo primeiro decreto a V. A. R. a lugar-tenência, que seu Augusto Pai lhe havia conferido; no segundo se diz que a residência de V. A. R. é desnecessária nesta Corte, e até indecorosa! Roubou-se-lhe o governo deste Reino, que lhe era devido, e deste roubo impolítico, e contrário aos mais caros interesses do Brasil, e até de Portugal, deduziram a necessidade do seu regresso. Que artifício miserável e grosseiro! Quão curtos em adivinhar o futuro são os autores de tão desvairada política! Como se iludem os deslumbrados, que adquiriram nas Cortes uma pequena maioria de votos, se esperam levar ao cabo seus projetos!

"Quando Portugal, em 1580, ou vendido pela traição de alguns de seus maus filhos, ou conquistado pelas armas espanholas, dobrou, malgrado seu, a honrada cerviz ao jugo do novo Nero do Sul; Felippe II, entrando em sua nova conquista, teve todavia a prudência, ou a política, de ratificar as Capitulações, que havia de antemão enviado aos governadores do Reino, depois da morte do Cardeal-Rei, sendo uma delas que o vice-rei de Portugal seria português, salvo se ele nomeasse para este lugar um príncipe de sangue real; e para contentar ainda mais os portugueses, prometeu o mesmo Felippe II residir em Portugal o mais largo tempo que fosse possível.

"Portugal, conquistado e vergado sob o peso de duros ferros, conserva contudo um governo central, de que dependem todas as suas províncias; e o Brasil, livre, e só criminoso talvez por haver singelamente, e sem reserva, associado seu destino aos destinos de seus irmãos da Europa, vê-se agora despedaçado em porções desatadas, e privado de um centro comum de força e de unidade, sem se esperarem, nem serem ouvidos os seus deputados; porque a estes, quando chegarem, só se deixa por escárnio a pueril tarefa de aprovarem, ou não, a extinção das Ordenanças!

"Quando em 1807 o augusto pai de V. A. R. se retirou para o Brasil, deixou em Lisboa uma regência; e os europeus ainda não contentes com este governo central, pediram a Sua Majestade que ao menos lhes enviasse a V. A. R. para chefe daquela regência.

"A traição e a perfídia roubaram-nos o primeiro, e o decreto das Cortes quer ainda roubar-nos o segundo: recusam  os de Portugal a seus irmãos do Brasil a posse de um bem, cuja perda não podiam suportar. Que egoísmo inaudito, que comportamento! Sua má política chega a tanto, que não temem sacrificar a maior parte da Nação, e toda a Augusta Família de Bragança, aos casos prováveis de se renovarem as tristes circunstâncias de 1807.

"O pequeno Reino da Irlanda, apenas separado da Grã-Bretanha por um estreito braço de mar, conserva todavia um governo geral com todas as atribuições do Poder Executivo; o mesmo acontece ao diminuto Reino de Hanover, governado atualmente por um irmão de Jorge IV; e o mesmo vemos nos reinos da Boêmia e da Hungria, cujo monarca é o augusto sogro de V. A. R.

"Como, pois, pode vir à cabeça de alguém pretender que o vasto e riquíssimo reino do Brasil fique sem um representante do Poder Executivo, e sem uma mola central de energia e direção geral? Que absurdos em política, e que falta de generosidade!

"Enfim, terminou o povo de S. Paulo o exame do 2º decreto, com a análise dos motivos, com que se pretende justificar a retirada de V. A. R., e estremeceu de horror com a só idéia de que talvez tivesse de ver o príncipe hereditário da Coroa, e regente deste reino, a única esperança da Sereníssima Casa de Bragança, viajando incógnito por uma circunscrita parte da Europa, como uma criança rodeada de aios e de espias; porém ele está capacitado, Augusto Senhor, que a necessidade da sua suposta viagem é um grosseiro estratagema, com que se pretende coonestar o medo que se lhe tem, e a violência que se lhe faz.

"Quando este País foi esbulhado do benéfico fundador do Império Brasileiro, o senhor d. João VI, nosso rei constitucional, os menos perspicazes em política viram no seu regresso para Portugal o complemento dos projetos, que alguns facciosos tinham de antemão secretamente urdido, para o conservarem debaixo do jugo, e melhor o escravizarem; e desde então previram a prisão honesta, que o guardava; hoje que V. A. R. é chamado, com o frívolo pretexto de viajar para instruir-se, crêem o governo, a câmara, o clero e o povo de S. Paulo que igual destino aguardava a V. A. R., pois os conjurados que abusaram da boa fé do Soberano Congresso, nunca lhe podiam tributar o menor amor e respeito.

"À vista, pois, da série de males e desgraças, que ameaçam o bem geral do Brasil, a Constituição futura da Monarquia, e a mesma independência e prosperidade do resto do Reino Unido: o governo, câmara, clero e povo de S. Paulo, em nome de todos os paulistas, em nome de todos os brasileiros, que ainda conservam algum brio e honra, em nome de todos os verdadeiros portugueses de ambos os mundos, vêm rogar, pela presente deputação, a V. A. R. suspenda a execução de tão arbitrários e anti-constitucionais decretos; deste modo desvanecerá projetos, com que pretendem alguns facciosos arruinar a obra da nossa comum felicidade, e santa Constituição, por que todos suspiramos.

"Sim, Augusto Senhor, que motivos ponderosos deveriam conduzi-lo a Portugal? O amor da Pátria? Para um príncipe todos os seus Estados são Pátria; de mais, este amor, bem ou  mal entendido, pelo torrão em que nascemos, também deve falar ao coração de seus Augustos Filhos, nossos compatriotas, que em tão críticas circunstâncias não devem abandonar o seu Brasil.

"Seria porventura o desejo de tornar abraça seu Augusto Pai? Os abraços e carinhos de seus filhos, e de uma terna e virtuosa esposa, indenizá-lo-ão dos abraços paternais; e sendo para os paulistas indubitável que sua majestade fora forçado a chamá-lo para Portugal, desobedecer a tais ordens é um verdadeiro ato de obediência filial. Seria acaso a felicidade de seus súditos da Europa? Quem mais dela precisa que os habitantes do seu Brasil? Seriam os interesses futuros de sua Augusta Família? Esses mesmos requerem imperiosamente que V. A. R. conserve, para a Sereníssima Casa de Bragança, o vasto, fértil e grandioso Reino do Brasil.

"Eis o que lhe aconselha a razão, o dever e a política: se porém V. A. R., apesar de tudo, estivesse, como já não cremos, pelos deslumbrados e anti-constitucionais decretos de 29 de setembro, além de perder para o mundo, o que não era possível, a dignidade de homem livre e de príncipe, teria também de responder perante o Tribunal da Divindade pelos rios de sangue que iriam ensopar, pela sua ausência, nossos campos e montanhas; porque, quebrados de uma vez os prestígios da ignorância e da escravidão antiga, os honrados portugueses do Brasil, e mormente os paulistas, e todos os seus filhos e netos, que habitam a populosa e rica Província de Minas Gerais, o Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso, escudados na justiça da causa, e seguros na sua união, força e riqueza, quais tigres esfaimados, tomariam vingança crua da perfídia desse punhado de inimigos da ordem e da justiça, que, vendidos à política oculta de gabinetes estrangeiros, e alucinando as Cortes, pretendera, fazer a sua e a nossa infelicidade, e essa vingança faria época na História do Universo.

"Mas nós declaramos perante os homens, e perante Deus, como solene juramento, que não queremos, nem desejamos separar-nos de nossos caros irmãos de Portugal; queremos ser irmãos, e irmãos inteiros, e não seus escravos; e esperamos que o Soberano Congresso, desprezando projetos insensatos e desorganizadores, e pensando seriamente no que convém a toda a Nação Portuguesa, ponha as coisas no pé da justiça e da igualdade, e queira para nós os que os portugueses da Europa queriam para si. Então, removidas todas as causas de desconfianças e descontentamento, reinará outra vez a paz e a concórdia fraternal entre o Brasil e Portugal.

"Seja pois V. A. R. o Anjo Tutelar de ambos os mundos: arrede com a sua sabedoria, força, decisão e franqueza, desprezando todos os remédios paliativos (que não curam, mas matam o enfermo) arrede, digo, para sempre o quadro fúnebre das iminentes calamidades, que ameaçam o vasto Império Lusitano; confie-se corajosamente no amor, ternura e fidelidade dos portugueses do Brasil, e mormente dos seus briosos paulistas, que, pelo nosso órgão, oferecem seus corações para abrigo de V. A. R., seus corpos para escudo, e seus fortes braços para sua defesa, que por nós finalmente juram verter a última gota de seu sangue, e sacrificar todos os seus bens para não verem arrancado do Brasil o seu príncipe idolatrado, em quem têm posto todas as esperanças da sua verdadeira felicidade, e da sua honra e brio nacional.

"Digne-se pois V. A. R., acolhendo benigno as súplicas de seus fiéis paulistas, declarar francamente à face do Universo, que não lhe é lícito obedecer aos decretos últimos, para a felicidade, não só do Reino do Brasil, mas de todo o Reino Unido; que vai logo castigar os rebeldes, e perturbadores da ordem e do sossego público; que para reunir todas as províncias deste Reino em um centro comum de união e de interesses recíprocos, convocará uma Junta de Procuradores, ou Representantes, legalmente nomeados pelos eleitores de paróquia, juntos em cada comarca; para que nesta Corte, e perante V. A. R., aconselhem e advoguem a causa das suas respectivas províncias; podendo ser revogados seus poderes, e nomeados outros, se se não comportarem conforme as vistas e desejos das mesmas províncias; e parece-nos, Augusto Senhor, que bastará, por ora, que as províncias grandes do Brasil enviem dois deputados, e as pequenas um. Deste modo, além dos representantes nas Cortes Gerais, que advoguem e defendam os direitos da Nação em geral, haverá no Rio de Janeiro uma deputação brasílica, que aconselhe e faça tomar aquelas medidas urgentes e necessárias, a bem do Brasil, e de cada uma de suas províncias, que não podem esperar por decisões longínquas e demoradas.

"Então nós, mensageiros de tão feliz notícia, iremos derramar o prazer, e o júbilo nos corações desassossegados dos nossos honrados e leais patrícios. Numen faveto! O céu nos há de ajudar! - José Bonifácio de Andrada e Silva. - António Leite Pereira da Gama Lobo, deputados pelo Governo. - José Arouche de Toledo Rendon, deputado pela Câmara. - Padre Alexandre Gomes de Azevedo, deputado pelo Clero".

[36] Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, 1820-1822, págs. 291 a 302.

[37] ASSIS CINTRA - D. Pedro I e o Grito da Independência, págs. 171 a 173.

[38] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 7º, pág. 632, nota 4.

[39] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 141. ROCHA POMBO (obr. cit., vol. cit., pág. 634), explicando as razões por que o príncipe determinara expulsar as tropas, diz que estas, logo que ficaram prontas as embarcações para transportá-las, começaram a adiar o dia da partida, porque o intuito de Avilez era ficar ali até chegarem as forças que vinham rendê-lo. Ora, conforme o próprio autor afirma noutro lugar, o acordo fora mesmo esse - o de se esperarem as novas tropas. Nos navios que as trouxessem, regressariam provavelmente as de Avilez. Este general, portanto, não andou inventando pretextos, como se afigura ao ilustre historiador, para demorar a data da partida, limitando-se a ficar dentro das combinações aceitas, que o governo, movido por justa razão, desprezou em dado momento.

[40] Carta de d. Pedro a d. João, de 2 de fevereiro de 1822 (Edição do Inst. Hist. do Ceará, pág. 7). Na ed. E. EGAS há um lapso tipográfico na mesma carta (pág. 74): "o que eu lhe sofri, como ontem, eu lhe perdôo". É homem e não ontem.

[41] Cartas de D. Pedro a D. João (Ed. E. Egas, pág. 74)

[42] Idem, pág. 75.

[43] Obr. cit., pág. 142.

[44] Cartas de D. Pedro a D. João (Ed. E. EGAS, pág. 75).

[45] Idem, pág. 73.

[46] Obr. cit., pág. 142.

[47] Carta de d. Pedro a D. João, de 12 de fevereiro (Ed. E. Egas, pág. 77).

[48] Idem, ibidem.

[49] Obr. cit., vol. 7º, pág. 635.

[50] VARNHAGEN - Obr. cit., pág. 142.

[51] Carta de d. Pedro a d. João, a 12 de fevereiro (Ed. E. Egas, pág. 77).

[52] Idem, ibidem.

[53] Idem, ibidem.

[54] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. 7º, pág. 635.

[55] OLIVEIRA LIMA - O Movimento da Independência, pág. 173.

[56] Ephemérides Brasileiras, pág. 96. Dos dois navios São José e Americano, faz RIO BRANCO um só denominado São José Americano, de maneira que o número de embarcações passa realmente de 8 a 7, como quer o autor.

[57] ROCHA POMBO - Obr. cit., vol. cit., pág. 635, nota 2.

[58] GOMES DE CARVALHO - Obr. cit., pág. 260.

[59] Idem, ibidem, pág. 259.

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