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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
Clique na imagem para ir à página principal desta sérieJosé Bonifácio (5)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, em seu capítulo III (José Bonifácio), com grafia atualizada (páginas 393 a 406):
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Fac-símile do frontispício da primeira e única edição
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Seus dotes oratórios

José Bonifácio não possuía dotes oratórios, mal poderia trasladar em arrojos da tribuna a fortaleza varonil do seu espírito - diz-nos textualmente em seu magistral estudo crítico LATINO COELHO [87]; mas de sua opinião discordamos radical e respeitosamente. É certo que o eminente Andrada não freqüentou com sucesso a tribuna pública; desse fato, porém, se não pode chegar à conclusão inexorável de que lhe faltassem os necessários dotes oratórios.

Ao contrário, do exame pormenorizado de sua carreira literária, verifica-se que ele possuía no mais alto grau as aptidões teóricas que constituem o opulento cabedal dos verdadeiros gênios. O cérebro humano concebe tudo quanto quer; é só na esfera da atividade prática que as funções se especializam e subdividem porque nós não podemos fazer tudo quanto concebemos.

Porque era ele infenso à tribuna

José Bonifácio, dominado, na sua adolescência, pelas sugestões do berço natalício e pela convivência universitária com os estudantes de Coimbra, foi poeta no início de sua vida mental; sua permanência na Europa, no alvoroçado período em que o pensamento ocidental se transformava e a ciência fundava-se prodigiosamente em sólidas bases positivas - tornou-o cientista e pensador; transferindo-se para o Brasil, e auscultando de perto as pulsações da alma popular que anelava pela emancipação política da Colônia - fez-se estadista; e foi o único estadista realmente digno desse nome que o Brasil teve até hoje, porque foi o único, repetimo-lo, que apanhou todos os aspectos fundamentais do problema brasileiro, dando-lhes solução racional, glória de que se não pode ufanar depois dele nenhum dos homens que têm estado à testa de nossa direção política.

A sua multipotente capacidade enciclopédica talhava-o para triunfar decisivamente em todos os ramos do saber teórico. Espírito afeito a pensar maduramente antes de falar, talvez lhe repugnassem as surpresas e improvisações da oratória, incompatíveis com a severidade da meditação e a magnitude de certas e determinadas causas.

Quando falamos, deixamo-nos arrebatar involuntariamente pela cadência embaladora de nossas próprias palavras; e ao calor de nossas frases, à emoção de nossas imagens, ao ritmo de nossos discursos, ao repente de nossos revides às contestações que nos fazem, não raramente sacrificamos a sinceridade de nossas convicções, a cristalinidade dos mais puros ideais, a beleza dos mais sagrados princípios.

Os inconvenientes da tribuna para os temperamentos francos eram, por certo, familiares ao seu grande espírito, donde o seu sistemático retraimento dela. Se quisera cultivar esse gênero aparatoso de eloqüência, nada mais precisaria do que nele se exercitar metodicamente para habituar-se às suas dificuldades - que não são tamanhas como a muita gente parece, consideradas do ponto-de-vista meramente literário.

A real dificuldade da tribuna consiste em vencer os excessos oratórios, o exagerado entusiasmo a que os próprios encantos da palavra falada arrastam os tribunos, levando-os a avançar proposições inoportunas ou descabidas, o que não sucede com a calma, a serenidade, a reflexão peculiar ao discurso escrito.

Aliás, segundo o testemunho dos contemporâneos, o pendor natural do talento de José Bonifácio era mais para falar que para escrever, e isto prova que lhe não faltava a elocução pronta e brilhante, a rapidez na elaboração do pensamento e outros predicados inseparáveis de tão delicadas funções. Vasconcellos de Drummond, que foi o maior amigo pessoal do ilustre santista e o seu mais dedicado cooperador nos trabalhos preparatórios da Independência, conta-nos, com a autoridade que da mútua privança lhe advinha, que ele "não gostava de escrever, ditava tudo o que fazia, não excluindo mesmo a poesia. Quando escrevia algum apontamento era meramente por lembrança" [88].

O poema sobre a dissolução da Assembléia Constituinte e as outras peças poéticas de caráter político, cujos originais se extraviaram, como dissemos, foram ditadas pelo autor a Drummond, que os escreveu, não guardando José Bonifácio cópia de nenhuma delas. É fora de dúvida, portanto, que ele preferia falar a escrever, o que evidencia claramente a completa aptidão de seus recursos mentais para empregar indiferentemente um ou outro meio de composição.

O que, porém, é puro equívoco de Drummond é a segunda parte de sua afirmativa, de que o Patriarca ditava tudo quanto fazia, apenas recorrendo à escrita para tomar algum apontamento. Há mais de uma prova em contrário.

As suas Idéias sobre a organização política do Brasil, quer como Reino unido a Portugal, quer como Estado independente, foram copiadas, na Capital de S. Paulo, a 15 de abril e a 23 de setembro de 1844, pelo conselheiro Tristão de Alencar Araripe, do original do próprio punho do autor, conforme nota apensa pelo ilustrado copista à publicação desse notável trabalho, quando inserto na Revista do Instituto Histórico Brasileiro.

Ou porque lhe acontecesse não ter sempre à mão pessoa discreta e capaz de bem escrever o que ele ditasse, ou por outro qualquer motivo que não é fácil esclarecer agora, o que é certo é que às vezes ele mesmo escrevia seus trabalhos.

Assim também o Manifesto do Príncipe Regente, de 6 de agosto de 1822, dirigido aos governos das nações estrangeiras, convidando-as a entrar em relações com o Brasil e a enviarem-lhes agentes diplomáticos, foi igualmente escrito por ele. D. Pedro II possuía o respectivo original, com a assinatura autógrafa de seu pai, segundo se lê no nº 6.983 do Catálogo da Exposição de História do Brasil, em 1822 [89].

Embora não fosse hábito seu ditar sempre, é caso averiguado, entretanto, que ele preferia esse método de compor e tal não se daria se, falando, as idéias lhe viessem tardonhas e as expressões dificilmente lhe acudissem. É que, falando livremente na intimidade, podemos retificar ou precisar melhor os pensamentos prematuros ou incompletamente elaborados, o que não acontece nos debates da tribuna pública onde o que dizemos está definitivamente dito e é ouvido e comentado por quantos se achem presentes à assembléia.

Não lhe escasseavam os atributos oratórios essenciais à tribuna: ele é que deliberadamente os não exercitava, deixando-os cair em desuso; e a falta de exercício relaxa a atividade natural dos órgãos.

É oportuno referir-nos aqui aos hábitos e processos usados por José Bonifácio quando tinha de executar trabalhos importantes. Conta-nos a VISCONDESSA DE SEPETIBA [90], por tê-lo ouvido à sua própria mãe, que, nesses momentos, recolhia-se ele ao leito, ou, quando menos, ao quarto de dormir, durante uns seis ou oito dias. Aí lia, tomava notas, escrevia, alimentava-se, bebia café repetidas vezes ao dia e desatava-se de todas as preocupações exteriores que ficavam inteiramente a cargo da dedicada esposa, inclusive a obrigação de receber as visitas que o procuravam.

***

Destas páginas ressalta vivamente a excepcional aptidão de que dispunha José Bonifácio para operar em todas as esferas da atividade mental, obtendo igual e brilhante sucesso em todas elas. A nada foi indiferente o seu poderoso espírito de investigador e de sábio.

A Filosofia, a Ciência, tanto abstrata como concreta, e suas conseqüentes aplicações à prática industrial, as inspirações e encantos da Poesia, o gosto delicado pela Música, todas as manifestações da sabedoria humana empolgavam aquela mentalidade em permanente lida e fecunda labutação.

Após o seu regresso a Portugal, vemo-lo ocupando quase simultaneamente elevados postos no magistério superior, na magistratura, e na administração, postos a que era chamado pela sua provada capacidade técnica e probidade pessoal e a cujas funções deu o mais cabal desempenho, recebendo os calorosos elogios e aplausos dos governos que o tinham nomeado.

Sua capacidade e brio militar

Vamos admirá-lo agora sob um outro aspecto realmente admirável, cambiando as pacíficas elucubrações espirituais, a que estava afeito desde os primórdios de sua adolescência, pelos rudes embates da campanha militar. Era em meados de 1808. O povo português, insuflado pelo nobre e corajoso exemplo da valente Espanha, começava de agitar-se para expulsar de seu solo os invasores franceses que, ao mando de Napoleão, aí se achavam instalados desde os últimos meses de 1807.

Campanha militar

Achava-se ele em Tomar, a histórica cidadezinha que relembra em cada recanto, e a cada passo, episódios culminantes da evolução portuguesa, desde a fundação da monarquia até a funesta aclamação de Felipe II, de Castela, como intruso sucessor de d. Sebastião.

A evocação desse longínquo passado, a vista senhoril e veneranda do castelo dos Cavaleiros Templários, que tão galhardamente auxiliaram d. Afonso Henriques na expulsão dos mouros e na dilatação das fronteiras do novo reino que apenas se constituía, a pungente lembrança de que aquele velho e tradicional teatro de tantos grandiosos feitos fora, ao mesmo tempo, berço e túmulo da independência nacional - tudo isso talvez tivesse influído para a inesperada resolução que tomou subitamente José Bonifácio de reagir de armas na mão contra o novo opróbrio que afrontava Portugal.

Era a reprodução do acontecimento de 1580, sancionado, em 1581, pela pusilanimidade das Cortes reunidas em Tomar. A soberania portuguesa desaparecia mais uma vez com a fuga do rei espavorido, com a dominação mantida pelo exército invasor, e com a covardia da Regência que se prostrava incondicionalmente aos pés da soldadesca imperial.

Até então, a vida de José Bonifácio transcorrera alheia às agitações políticas e bélicas que na Europa convulsa se desenrolavam. Absorto no trabalho de investigar a natureza, de observar o mundo em suas manifestações de ordem meramente cosmológica, de trocar com os sábios de todos os países impressões a respeito de seus recíprocos estudos e descobrimentos, não lhe restava tempo nem oportunidade para interessar-se de modo diretamente pessoal pelo destino das sociedades humanas. Era essa uma tarefa que competia especialmente aos homens dedicados à direção política dos povos.

Põe-se à testa da reação coimbrã

A invasão francesa foi, portanto, a primeira pulsação de ardor cívico que na sua alma vibrou espontaneamente. De Tomar enviou solicitamente para Coimbra, onde a vigorosa reação dos estudantes universitários se organizava, um punhado de armas e alguns espingardeiros que os industriassem no manejo delas [91].

Depois, para lá se dirigiu, pondo-se imediatamente à testa do movimento e assistindo ao vice-reitor da universidade, que era então governador civil e militar da praça, com seus intrépidos conselhos, austeros exemplos e infatigável atividade [92].

No ano seguinte, organizou-se, de ordem superior, o Corpo Militar Acadêmico, do qual foi nomeado major e depois tenente-coronel, fazendo a áspera campanha do Vouga e do Douro; e na mesma ocasião serviu como presidente do Conselho de Polícia de Segurança, da divisão comandada pelo general Nicolau Trant, que o elogiou rasgadamente em seu oficio de 22 de agosto do mesmo ano [92].

Também o marquês de Campo Maior, marechal-general, em ordem do dia 4 do mesmo mês e ano, já mandara elogiá-lo pela bravosa pugnacidade com que se batera à frente de seus amados discípulos.

Depois de reconquistado o Porto do poder dos invasores, foi nomeado intendente interino de polícia e superintendente da Alfândega e da Marinha, cargos esses que desempenhou desinteressadamente [92], isto é, sem receber nenhuma remuneração pecuniária ou outra compensação qualquer.

Em 1810, fora Lisboa ameaçada pelos franceses. Reuniu José Bonifácio, de novo, o Corpo Militar Acadêmico, de que tinha sido nomeado comandante, e o fez marchar para Peniche, onde estacionou até a retirada das forças inimigas [92].

No desempenho das funções de intendente de polícia do Porto, prestou assinalados serviços à causa pública na manutenção enérgica da ordem material, impedindo, com a mais perfeita equanimidade, que os patriotas, no auge de seu exaltamento e indignação, praticassem, contra os partidários portugueses da dominação francesa, represálias insensatas e já então pouco dignas [93].

Saudades do lar

Terminada a luta, na qual provou, segundo suas próprias expressões no recinto da Academia de Ciências, que "o estudo das letras não desponta as armas", voltou José Bonifácio à sua antiga faina e ocupações habituais, explorando o solo português e entregando-se a estudos práticos de agricultura. Finalmente, sentiu, através das fundas saudades que com o transcorrer do tempo se lhe acumulavam na alma, a voz da pátria chamá-lo de longe, de além dos mares, do fundo misterioso de suas grandes florestas, do seio de suas povoações progressistas, criadas e engrandecidas pelo incessante labor dos que as habitavam.

Havia mais de quarenta anos que deixara a ardente plaga litorânea onde nascera, para formar e robustecer o seu espírito lá fora, no proveitoso convívio intelectual com os povos mais adiantados do velho continente.

À Metrópole que dadivosamente o mandara percorrer em viagem de instrução, e à custa do Erário Real, os principais países europeus, já pagara por certo, e com usura, a maior parte da dívida que para com ela tinha contraído: em troca de seu gasalhado benévolo dera-lhe, nas copiosas memórias que escrevera, nos sãos conselhos que utilmente formulara, nos ensaios experimentais da lide agrícola, no serviço militar em que ativamente se notabilizara, reiteradas provas da gratidão que lhe devia e do afetuoso amor que lhe votava.

Era justo que viesse agora dedicar à causa do novo e esperançoso reino cisatlântico os restantes lampejos de seu gênio e os últimos batimentos de seu nobre coração.

***

Pedido de aposentadoria

Antes, porém, de fazê-lo, antes de para sempre deixar a hospitaleira Metrópole, em demanda de seu remoto lar, buscou regularizar devidamente sua posição de funcionário público, requerendo por duas vezes, e requerendo embalde, sua legal aposentadoria nos cargos efetivos que de longa data ocupava.

No segundo requerimento, em que insistia nesse pedido, e que é o mesmo que já citamos e O Estado de S. Paulo publicou de primeira mão, enumera ele minuciosamente os ofícios que efetivamente desempenhou, as comissões transitórias de que foi encarregado, os múltiplos e memoráveis serviços prestados com honra e devotamento moral inexcedível, ao rei, à causa da monarquia e aos interesses econômicos e intelectuais do país.

Afastamento por tempo indeterminado, e com os ordenados respectivos, dos cargos que ocupava na Metrópole

É uma exata e rigorosa prestação de contas, um verdadeiro balanço no qual entram em jogo todos os títulos de débito e crédito de parte a parte; e dele resulta a plena e iniludível convicção de que, como atrás asseveramos, José Bonifácio já pagara generosamente à mãe-pátria a maior porção da dívida que para com ela contraíra, ao completar sua instrução à custa dos cofres nacionais, em dilatada viagem pelos mais afamados centros de cultura ocidental durante dez anos e três meses.

Mesmo no decurso dessa proveitosa viagem, ótimos frutos colhera para o nome português, que se viu citado e louvado nas associações e revistas científicas da época, graças à competência, ao esforço e ao mérito de seu jovem e admirado representante; e tais frutos já compensavam de sobra os sacrifícios pecuniários, e outros quaisquer, feitos pela nação com a vitoriosa embaixada de que era José Bonifácio a principal figura.

De regresso a Portugal, desempenhou ele, na esfera civil e na militar, nada menos de 11 empregos de caráter permanente e 6 comissões de mandato provisório, além dos numerosos pareceres que deu em resposta a repetidas consultas que sobre assuntos de governo ed e economia pública e particular lhe faziam, não somente as secretarias de Estado, como também os diversos tribunais do reino.

Pois bem: de todos esses numerosos empregos e comissões, muitos dos quais exercidos simultaneamente, José Bonifácio apenas recebia os ordenados relativos a três: o de lente de Metalúrgica em Coimbra, posição que aceitou com relutância e a contragosto, e cujo pagamento era efetuado pelos cofres da universidade; o de intendente das Minas, pago a princípio pelos cofres reais e depois pela Fábrica de Sedas e Águas Livres, com interrupção, porém, dos anos de 1808 e 1809; e o de superintendente do Rio Mondego, pago pelo cofre particular do Real d'Água de Coimbra, que, aliás, lhe ficou a dever nove mil cruzados.

Os demais cargos, em número de 8, entre os quais o de desembargador da Relação e Casa do Porto, que serviu cerca de 11 anos, e todas as comissões, em número de 6, foram desempenhadas gratuitamente, o que é bastante para que se avalie o raro desinteresse com que punha a sua atividade e o seu saber ao serviço do rei e dos seus compatriotas. Aliás, ele mesmo considerava "um prazer puro da alma espalhar pelo mundo o fruto dos seus estudos e meditações, ainda sem outra remuneração que a consciência de fazer o bem" [94].

D. João VI não lhe despachou nenhuma das petições, preferindo sagazmente permitir-lhe que voltasse ao país natal, no gozo dos vencimentos que daqueles três empregos recebia. Era, na aparência, uma justa compensação com que tardiamente o galardoava pelo cabal desempenho que a tantas e tão trabalhosas funções dera gratuitamente enquanto residia na Metrópole; mas no fundo, o que o monarca pretendia era trazê-lo com certeza ligado e religado aos interesses do trono, e do país, pois a cada momento poderia precisar de seus conselhos, experiências e luzes na resolução de graves problemas administrativos, técnicos e até políticos como tanta vez tinha sucedido em Lisboa.

Resta-nos saber se José Bonifácio agiu com a precisa dignidade aceitando semelhante concessão do rei. Parece-nos que não haverá pessoa justa e sensata que não responda imediatamente pela afirmativa.

Postas as coisas em seus devidos eixos, e bem examinadas as verídicas alegações do requerimento de aposentadoria, os serviços prestados pelo grande brasileiro ao governo e à nação eram em maior soma que os que destes havia anteriormente recebido.

A concessão que lhe fizera o rei nada tinha absolutamente de imoral: era própria do tempo, do meio e da essência mesma do regime. Cabia na alçada do poder real dispensar a seu bel-prazer mercês, honras ou benefícios rendosos àqueles que fossem considerados merecedores dessas distinções; e nem era lícito ao beneficiado o direito de recusar tais testemunhos de benevolência e magnanimidade do monarca, sem o risco de incorrer-lhe no desagrado; e d. João VI entendeu que devia dar à mais notável personalidade de sua corte uma prova grandiosa de sua admiração, não a dispensando de funções em que a reputava insubstituível, talvez, mas permitindo-lhe o afastamento delas por tempo indeterminado, sem perda das vantagens correspondentes.

Se hoje mesmo, em pleno constitucionalismo triunfante, nós vemos em nosso país homens públicos que não podem ser comparados ao maior dos Andradas, viverem afastados de seus empregos indefinidamente e receberem, não obstante, seus vencimentos integrais - como estranharmos um ato vulgar no regime político da época, emanado legitimamente de poder capaz, visando excepcionalmente um vulto coberto de glórias, envelhecido e exausto no serviço da pátria e que era, em suma, a figura principal da raça portuguesa naquele tempo, o seu tipo mais eminente e mais representativo pelos talentos, pela sabedoria, pelas virtudes, pelo crédito e reputação de que universalmente gozava entre as mais polidas nações do velho mundo?

Ora, pelas razões expostas não podia José Bonifácio argüir e suspeitar de indecorosa a mercê que lhe fazia o rei; e a essas razões, que não são de pouca monta nem desvaliosas, acrescentaremos agora a principal, aquela que tira ao ato do soberano todo o caráter gracioso de mero favor pessoal para dar-lhe o aspecto honroso de uma amigável liquidação de contas atrasadas.

Crítica delirante

Desempenhara ele, por muitos anos, como se viu, oito diversissimas funções públicas efetivas, além das comissões de que já falamos - sem nada receber pelo exercício de nenhuma delas. Os anos e os esforços desinteressadamente consumidos no bom desempenho de tais encargos - tê-los-ia empregado frutuosamente noutros afazeres que lhe garantissem o justo repouso na extenuada velhice; mas a obediência ao rei e o amor da pátria levaram-no a condescender com as exigências desta e as determinações daquele.

Porque lhe não seria lícito, pois, aceitar o afastamento de seus cargos nas condições em que lhe foi proposto, em vez da aposentadoria que regularmente solicitara? O pouco que agora passava a receber sem trabalhar era uma eqüitativa indenização pelo muito que trabalhara sem quase nada receber. Haverá alguém de espírito realmente equilibrado que se atreva, de ânimo sereno, a invectivá-lo por semelhante conduta?

Que nos tempos agitados em que se constituiu ele o grande centro coordenador e sistematizador do movimento que nos conduziu à Independência, os portugueses da Metrópole, indignados, se lembrassem de fazer desse caso banal um grave acontecimento para denegrirem a reputação moral e diminuírem a força política formidável que o nosso grande patrício concentrava energicamente em suas mãos poderosas - é coisa que facilmente se compreende e explica; que mesmo alguns dos nossos compatriotas, no período da dominação dos Andradas, recorressem a tal arma para combater o homem cujo prestígio governamental era um embaraço permanente a todas as ambições audaciosas e a todos os desregrados apetites - é coisa que também se compreende e que também se explica sem trabalho algum.

Uns e outros viam-se rudemente feridos nos seus magnos interesses - aqueles, pelo desmembramento da Pátria e seu conseqüente enfraquecimento econômico, e estes pela impossiblidade em que se encontravam de satisfazer suas mais caras aspirações pessoais e políticas, galgando os postos principais da comunhão e organizando as instituições nacionais segundo o molde de suas próprias opiniões e preferências.

As paixões explodiram cá e lá, como é natural; e excederam-se nos seus ataques  contra o estadista que não podia, sem o malogro completo de seus esforços orientadores, receber inspirações indevidas dos que não estavam em condições de pautar-lhe regras à conduta.

O que, porém, é singularmente estranho é que, após um século volvido sobre as lutas de 1822, se queira, com impávida ousadia, restaurar processos definitivamente julgados pela Posteridade em seu inapelável julgamento e tente-se conspurcar a glória olímpica do supremo herói daquelas grandes lutas, como se fora ele, de fato, um homem de vulgar instinto que, por amor excessivo a rendosas posições pecuniárias, traísse a causa da sua própria pátria.

Mas, do fundo mesmo de seu antigo sarcófago, sob o pesado manto de bronze do monumento glorificador que o cobre, como que a voz de José Bonifácio, fremente de indignação, se ergueu para protestar contra semelhante calúnia; e na própria ocasião em que ela principiava a tomar vulto, publicada e exposta com irreverente alarido, com fragoroso escarcéu, nos mostruários de nossas livrarias, eis que um documento até então inédito, e firmado pelo incomparável estadista, aparece de repente nas colunas do O Estado de S. Paulo, confundindo os difamadores desabotinados, refutando cabalmente, com a antecipação histórica de mais de um século, as suas grosseiras acusações não fundamentadas, e provando que o Andrada insigne se desvelara sempre em ser útil aos seus compatriotas, com abnegado desprendimento de interesses materiais; e que a sua situação de funcionário público, afastado de seus cargos com todos os vencimentos, no último quartel de sua cansada existência, não era uma situação excepcional ou imoral, criada por mero favoritismo da Corte em seu proveito, mas representava apenas o justo e retardado reconhecimento do governo português ao homem probo e capaz que, por tanto tempo, e com o maior devotamento, o servira em numerosos empregos e comissões dos quais nunca recebera nenhuma remuneração.

Não se contesta a brasileiro algum o direito de pensar deste ou daquele modo, no tocante ao papel político de José Bonifácio em nosso país, e se esse eminente repúblico foi ou não foi o Patriarca de nossa Independência; e isto é matéria sobre a qual fartamente discorreremos no segundo volume da presente obra.

O que, porém, achamos sobremodo condenável é que os que lhe denegam hoje as honras imortais de Patriarca, que lhe deu irrevogavelmente, em sentença final, a decisão da História, entendam que, para convencer de suas opiniões  o público, seja preciso combalir em seus fundamentos a notoriedade inabalável do estadista insigne.

José Bonifácio podia, por mais de uma razão plausível e aceitável, não ter sido o fator principal de nossa emancipação política, sem por isso deixar de ser um grande cidadão de nossa Pátria, um tipo singular entre seus pares, varão ilustre que honrou as letras, ampliou com suas descobertas notáveis os horizontes da ciência moderna, e com o seu nome universalmente idolatrizado encheu de lustre a quadra histórica em que floriu seu gênio.

Entretanto, para os seus detratores atuais, ele, não só não fez a Independência, como nem mesmo possuía a necessária capacidade para fazê-la. Longe de ser o herói que a Fama agasalhou hospitalariamente no altíssimo coruchéu de sua torre lendária, e cujos feitos raros e varonis virtudes, aquelas paredes de sonoro bronze, em ressonância contínua, a cada passo repetem - ele é simples e estolidamente o Bonifácio, como em estilo capadoçal hoje lhe chamam; um reles tipo de valor somenos, o último e o mais vulgar dos brasileiros do passado - imundo parasita que cevou indignamente a sua proverbial madracice nas murchas tetas do Tesouro português esgotado.

Todavia, dizem insuspeitosos documentos o contrário: Portugal é que explorou durante cerca de quarenta anos os inestimáveis serviços do maior de seus filhos então existentes, sem pagar-lhe em nenhuma espécie de moeda a devida remuneração, limitando-se a galardoá-lo no fim de sua vida com a permissão de rever e habitar seu país natal, sem perda ou decrescimento das modestas vantagens com que materialmente se mantinha.

Sua capacidade professoral

Além de parasita real, era igualmente um professor incapaz: deu sobeja demonstração de seu espírito retrógrado e de sua lamentável ignorância, com o projeto que formulou criando uma universidade no Brasil, como se as idéias e noções então correntes pudessem racionalmente ser apreciadas e criticadas de acordo com os espantosos progressos da inteligência contemporânea.

Para a época, era mais que suficiente o programa elaborado em relação ao curso de cada faculdade. A matéria de cada cadeira abrangia a totalidade dos conhecimentos indispensáveis a cada profissão, e nem se pode logicamente julgar da eficácia de um programa por um simples esboço, que nem projeto era ainda.

Os regulamentos especiais e as luzes de cada Lente desenvolveriam e completariam praticamente os lados porventura deficientes de cada cadeira, de cada série ou de cada curso. O projeto é um amontoado de asneiras pedagógicas - escreveu-se com deplorável atrevimento; mas não se deu a razão dessa grosseira afirmativa. Ao contrário, nós vemos compendiado ali, com sabedoria verdadeira, o que se podia ensinar proveitosamente aos moços daquele tempo - desde as ciências preliminares que estudam os fenômenos gerais da ordem exterior, como o Grupo Matemático, a Astronomia, a Física e a Química, até as ciências finais que dominam o conjunto da ordem vital (Biologia) e o da ordem humana, coletiva ou individualmente considerada - a Sociologia e a Moral.

Na Fisiologia, que está no programa da Faculdade Médica, aprendiam-se as leis até então conhecidas e que, incorporadas às ulteriores aquisições do saber moderno, constituem o que depois se chamou Biologia, nome de recentíssima formação ao tempo de José Bonifácio.

Quanto à Sociologia, ainda não estava fundada, mas o estudo do progresso e desenvolvimento do espírito humano fazia-se através dos ensinamentos da História e das instituições jurídicas que as necessidades fundamentais e a inteligência dos povos criaram no desdobrar dos séculos; e tal matéria seria professada, segundo o programa, nas cadeiras de Filosofia Racional e Moral e naquelas em que o curso de Direito se dividia.

O que ao malsinado programa faltava, para lhe reconhecerem o exigido apuro pedagógico, era, não os profusos conhecimentos que apareceram depois, mas a classificação hierárquica das várias disciplinas, segundo o grau de sua generalidade, simplicidade e dependência recíproca.

Essa deficiência era, porém, fatal. Augusto Comte ainda não tinha surgido com a sua obra formidável de renovação filosófica, e a ordem hierárquica da colocação das ciências, de acordo com a generalidade decrescente e a complicação crescente dos fenômenos respectivos, ainda estava por se fazer. Até então, tais estudos não se subordinavam senão a pontos de vista meramente empíricos.


NOTAS:

[87] Obr. citada, nota 24ª, página 87.

[88] Obr. citada, nota 18, página 113.

[89] Nota do BARÃO DO RIO BRANCO à História da Independência do Brasil, de PORTO SEGURO, página 174.

[90] Carta citada.

[91] JOSÉ ACCÚRCIO DAS NEVES - Invasão dos Franceses em Portugal, tomo 3º (citado pelo dr. EMÍLIO J. DA Sª. MAIA,  no opúsculo já referido).

[92] Petição de aposentadoria, já citada, de José Bonifácio.

[93] O sr. REMÍGIO DE BELLIDO (Bibliographia Andradina, pág. 12) labora em vários equívocos a este respeito. Data de 1806 as nomeações de José Bonifácio para comandante do Batalhão de Acadêmicos e para intendente de Polícia do Porto, quando a verdade é que tais nomeações só se deram em 1809, porquanto a invasão napoleônica se operou em fins de 1807 e a reação popular lusitana em meados de 1808. Também não foi com o posto de coronel, como diz o sr. Bellido, que o ilustre sábio comandou o referido batalhão, mas, como afirmamos acima, com o de major, ao princípio, e depois com o de tenente-coronel.

O Tamoyo e o Revérbero

[94] O Tamoyo, do Rio de Janeiro, de 2 de setembro de 1823. Este órgão político apareceu a 18 de agosto e extinguiu-se a 11 de novembro daquele ano. SACRAMENTO BLAKE (obr. cit. pág. 348 do V. 3º) observa com razão que PEREIRA DA SILVA se enganou afirmando que o Tamoyo sustentara, de 1821 a 1822, uma luta com o O Revérbero, de Gonçalves Ledo. Efetivamente, a pág. 131, v. 6º da Hist. da Fundação do Império Brasileiro, lê-se a narração de uma polêmica ocorrida entre os dois órgãos, em julho de 1822; mas no volume seguinte, à pág. 162, referindo-se à necessidade que tiveram os Andradas de fundar uma imprensa que os apoiasse, diz-se: "Criaram logo um periódico com o título de Tamoyo". Isto foi em 1823, quando, após a sua queda ministerial a 17 de julho, passaram-se eles para a oposição. Se não se trata de um dos muitos equívocos e descuidos de que está inçada a obra de PEREIRA DA SILVA, temos que concluir que O Tamoyo teve duas fases: uma, quando os Andradas foram governo; outra, quando comandaram a oposição contra d. Pedro.

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