Retrato a óleo de José Bonifácio de Andrada e Silva, por Décio Villares,
existente no gabinete da Presidência da Câmara Municipal santista
Imagem publicada com o texto
Vivo irás tu, egrégio e nobre Andrada!
Tu, cujo nome, entre os que à Pátria deram,
O batismo da amada independência
Perpetuamente fulge.
O engenho, as forças, o saber, a vida,
Tudo votaste à liberdade nossa
Que a teus olhos nasceu, e que teus olhos
Inconcussa deixaram
Nunca interesse vil manchou teu nome,
Nem abjetas paixões; teu peito ilustre
Na viva chama ardeu que os homens leva
Ao sacrifício honrado.
Machado de Assis (Americanas)
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Dúvidas quanto ao ano de seu nascimento. Certidão de batismo
uer
pela ordem cronológica, por ser mais velho que António Carlos e Martim Francisco, quer pelo supereminente relevo que seu nome granjeou nos maiores
centros de atividade científica da Europa, cabe a José Bonifácio a justa primazia, na apreciação que ora vamos fazer, da capacidade mental e moral
dos três Andradas, e dos notáveis serviços políticos e sociais prestados por eles a seu país e à Humanidade.
Seus primitivos nomes de batismo
José Bonifácio nasceu à Rua Direita, a 13 de junho de 1763
[1], dia que pela Igreja Católica é consagrado à comemoração de Santo António. Daí lhe veio certamente o
cognome de António que recebeu na pia batismal, juntamente com o nome de José (José António), cognome que trocou depois pelo de Bonifácio (José
Bonifácio), em filial homenagem a seu digno progenitor (N.E.: correto é genitor).
Não conseguimos averiguar em que época ao certo é que trocou ele um
sobrenome pelo outro; mas em 1776, na lista nominal do recenseamento de Santos, encontramo-lo já com o que adotaria definitivamente pela vida a
fora: "José Bonifácio (estudante), 13 anos" [2].
E pouco depois, na petição de 1779, que citamos atrás, dirigida
conjuntamente com seus irmãos à Autoridade Episcopal da Diocese, requerendo as diligências canônicas que o habilitassem legalmente a seguir a
carreira eclesiástica, assina-se também José Bonifácio [3].
Casa onde morava a família Andrada no ano da Independência, á Rua Direita, 29
(Fotografia tirada em 1888, ano em que, por iniciativa de Silva Jardim, um grupo de abolicionistas colocou sobre a fachada uma placa comemorativa do
suposto nascimento de José Bonifácio na dita casa)
Foto publicada com o texto
A casa em que ele nasceu
Dissemos que nasceu José Bonifácio à Rua Direita - e nada mais; o que parecerá
estranho a todo o mundo em nossa terra e no Brasil, porquanto a casa em que se diz ter ocorrido esse grande acontecimento da história local e
nacional está assinalada com uma placa de mármore, mandada colocar a 13 de junho de 1888 por um devotado grupo de abolicionistas, sob a iniciativa
do heróico propugnador da República - Silva Jardim, ligado pelo casamento à família do Patriarca.
É que nós pomos em dúvida que seja realmente aquela a casa histórica que serviu de
berço ao glorioso varão; ou por outra, e para falarmos com maior franqueza, nós estamos convencidos exatamente do contrário disso. A tradição oral é
que nos veio transmitindo essa notícia, que se nos afigura perfeitamente lendária, pois um documento autêntico, ainda não citado por ninguém, e que
se encontra no Arquivo do Estado, parece contrariar de modo positivo a legitimidade dessa tradição. Trata-se do recenseamento de 1765, o mais antigo
dos censos coloniais que conhecemos em relação a Santos.
Nele, a Rua Direita, como de resto as outras, é recenseada com a discriminação de cada
lado separadamente, o que se não dá com nenhum dos recenseamentos posteriores: - Rua Direita, dos Quatro Cantos até a ponta do Carmo, da parte do
mar; Rua Direita, dos Quatro Cantos até a ponta do Carmo, da parte do Campo (Campo chamavam os antigos paulistas à parte de terra, oposta
ao litoral). Reproduzimo-lo em seguida, em fac-símile.
Fac-símile de uma página do recenseamento de Santos, em 1765, no qual se vê a
indicação das casas da Rua Direita em que moravam então os avós e os pais de José Bonifácio (No Arquivo do Estado - Recenseamentos coloniaes)
Imagem publicada com o texto
Percorrendo-se as páginas do precioso documento, verifica-se que na Rua Direita, da
parte do mar, não morava membro algum da família Andrada; mas, do lado oposto, residida o coronel Bonifácio José de Andrada, com toda a sua família,
que ainda não era numerosa, e que se compunha de sua mulher Dona Maria Bárbara da Silva, com 24 anos, e seus três filhos: Patrício, com 5
anos; José, com 2, e Maria, com 1. A suas expensas, conforme assinala o documento em questão, e no prédio pegado, viviam seus velhos
pais, o coronel José Ribeiro de Andrada, que contava 87 anos, e d. Anna da Silva Borges, orçando pelos 80, e mais uma filha do casal, Anna Maria,
solteira, de 40 anos, à qual já nos referimos noutro lugar, acidental e perfunctoriamente.
A casa em que habitava Bonifácio José de Andrada era a segunda da rua, a partir dos
Quatro Cantos; mas entre ela e a primeira - a da esquina - havia terrenos vagos que foram edificados posteriormente, segundo se depreende das
indicações constantes dos censos imediatos, nos quais vão pouco a pouco aparecendo edificações entre uma e outra casa.
Por esse motivo, é impossível hoje, transcorridos quase dois séculos, e após tantos
demolimentos e construções novas, determinar o lugar exato em que existiu o prédio onde aos 2 anos morava José Bonifácio. Dizemos lugar onde
existiu o prédio, porque desse lado da Rua Direita não há mais uma só casa antiga; são todas construções modernas.
Verificado documentalmente que aos dois anos de idade José Bonifácio não morava no
prédio n. 29 da Rua Direita, é lógico e racional concluir-se que ele não nasceu aí. Seu pai era homem abastado, a segunda fortuna de Santos, segundo
já dissemos, e é natural que fosse dono da casa em que habitava, mormente naquela época em que era bastante módico o valor aquisitivo do chão.
Poder-se-ia dizer que José Bonifácio nascera, de fato, na casa que lhe dão hoje por
berço e que, depois, sua família tivesse necessidade de se mudar para o lado fronteiro, de onde voltaria mais tarde à casa primitiva, que lhe serviu
de moradia até a primeira metade do século da Independência.
Isso, porém, seria uma hipótese ilógica por não ter assento em base documental. Nós
partimos de um ponto inicial positivo - um documento oficial e autêntico, escrito ao tempo em que o futuro Patriarca era apenas uma criança de dois
anos. Esse documento afirma-nos que ele, então, residia com sua família em casa localizada ao outro lado da rua.
A nossa hipótese é, portanto, mais simples, mais sugestiva e mais aceitável, porque se
funda concretamente num dado real. Supor que, logo depois de ter ele nascido do lado da praia, seus pais se mudaram para o lado do campo, e mais
tarde voltaram de novo à antiga residência - é complicar inutilmente a simplicidade do problema, sem oferecer para a sua solução nenhum elemento
ponderável.
Não nos esqueçamos de que os nossos maiores - proprietários que eram geralmente das
casas onde moravam - só mui raramente, só excepcionalmente mesmo é que mudavam de habitação, fato aliás que constatamos diretamente, estudando, com
a devida atenção, a ordem em que foram recenseadas, nos diferentes anos do período colonial, as principais famílias santistas.
Motivo relevante poderia de certo haver, não o negamos, para que o coronel Bonifácio
de Andrada se transferisse com toda a sua família de um para outro lado da Rua Direita, quando José Bonifácio tinha apenas dois anos. Mas para que
esse motivo conteste o documento exibido, preciso é que se apóie noutro documento de valor igual. Enquanto, pois, tal documento não aparecer,
continuaremos a pensar que a casa em que nasceu o Fundador da Pátria Brasileira é aquela em que ele residia com seus pais em 1765, quando contava
somente dois anos de idade.
A tradição oral - que tantas vezes erra - não pode ser anteposta ao
documento escrito, que se perpetuou entre carunchosos papéis nas empoeiradas estantes dos arquivos históricos e que o tempo quis talvez poupar à sua
ação destruidora como que para trazê-lo intacto até nossos dias - testemunha singular de um grande evento [4].
A nós nos parece que a verdade a respeito deste assunto ressalta nítida e espontânea
das próprias condições em que a vida da família Andrada se desenvolveu. Ou porque a amada prole aumentasse, tornando-se deficiente para abrigá-la a
casa do lado do campo; ou porque o tempo tivesse operado nela sérios estragos irremediáveis, o coronel Bonifácio, a quem a sorte sorria
prosperrimamente, compreendeu que a sua qualificada posição no meio social reclamava uma instalação doméstica mais condigna dos seus altos foros, e
dos seus recursos, e adquiriu então do lado do mar uma vivenda mais nova, mais vasta e mais confortável.
Aí ficou residindo a família anos ininterruptos, até a Independência, até a aurora do
Segundo Império. Aí se hospedava José Bonifácio, quando vinha dos Outeirinhos à Vila. Aí nasceram quiçá o 7º e o 8º filho do nobre casal - o fogoso
António Carlos, o austero Martim Francisco.
Desse concurso de circunstâncias originou-se naturalmente a errônea tradição, que
agora combatemos. À casa nº 29 (antigo) da Rua 15 de Novembro poder-se-ia chamar com inteira propriedade Casa dos Andradas, porque aí de fato
residiu a trindade ilustre em épocas diversas; mas somente lhe caberia o nome exclusivo de José Bonifácio, se este varão, em verdade, nela
tivesse nascido: seria então uma espécie de templo cívico, instituído pela Cidade, para o culto permanente das grandes datas da Pátria.
A incontestável preeminência intelectual e política de José Bonifácio sobre seus dois
irmãos e notáveis colaboradores, que nunca aliás lha contestaram, justificaria plenamente a exclusividade da comemoração. Como, porém, a localização
de seu nascimento na referida casa é, pelo menos, um fato duvidoso, não há razão para esse preito, sobretudo se nos recordarmos de que mesmo a sua
residência nela foi sempre temporária, nunca definitiva.
Saindo do lar paterno aos 14 anos, e do Brasil aos 20, só reviu sua Vila natal aos 57,
quando, ao voltar da Metrópole, se recolheu ao sítio dos Outeirinhos, em companhia da família que constituíra; e de lá, uma ou outra vez, quando
tinha de ir à Vila, hospedava-se, como já contamos, na casa tradicional em que viviam sua velha mãe e suas irmãs. De Santos partiu pouco depois para
as lutas da Independência, e nunca mais voltou.
Assim, pois, se é incerto que tivesse José Bonifácio nascido na
casa em questão e se é certo que nunca habitou nela em caráter permanente, mas de passagem ou em não prolongadas residências - cremos que não há
razão para que se mantenha na respectiva fachada a lápide consagratória de um fato que não está devidamente provado.
NOTAS:
[1] LATINO COELHO, por
equívoco, assinala o ano de 1765 como o do fausto acontecimento (obr. cit. pág. 51, nota 1ª), naturalmente mal informado por PEREIRA DA SILVA que
trinta anos antes cometera esse erro na 1ª edição dos Varões Illustres do Brasil (1847) e o manteve inalterável nas duas edições posteriores,
apesar de "revistas e corretas" (1858 e 1868). SÍLVIO ROMERO, na História da Literatura Brasileira (V. 1º página 334) adota o ano de 1765,
com o fundamento de que o próprio José Bonifácio, na Dedicatória das Poesias de Américo Elysio, diz que partiu para Portugal em 1783, aos 18
anos. Mas todas as dúvidas e suposições desaparecem diante da certidão que transcrevemos em seguida, na íntegra, passada a 11 de junho de 1860, pelo
vigário da Paróquia, padre José Joaquim de Sant'Anna, e transmitida pelo nosso falecido conterrâneo, dr. António pereira dos Santos, ao distinto
historiógrafo, também já falecido, barão Homem de Mello:
"Certifico e juro aos Santos Evangelhos que em o livro competente desta Paróchia, a
fls. 28v. acha-se o assento cujo é o theor seguinte: 'Aos desoito do mês de Junho de mil setecentos e sessenta e tres
annos, nesta Igreja Matriz, baptisei e puz os Santos Oleos a José António, innocente, filho legítimo de Bonifácio José de Andrada e de sua
mulher Maria Bárbara da Silva, naturaes desta Villa; neto por parte paterna do Coronel José Ribeiro de Andrada, natural da Freguezia de S. Martinho,
Cabeceiras de Basto, e de sua mulher Anna da Silva Borges, natural desta Villa de Santos, e pela materna neto de Gonçalo Fernandes Souto, natural da
Freguezia de S. Thiago, Comarca de Villa Real, Arcebispado de Braga, e de sua mulher, Rosa de Viterbo da Silva, natural desta Villa; foram Padrinhos
Manuel Angelo Ferreira e Ignacia Maria, mulher de Bartholomeu Júlio, todos desta Freguezia. O Vigário, Domingos Moreira da Silva. Nada mais
em dito assento a que me reporto. Santos, 11 de junho de 1860. O Vigário Joaquim José de Sant'Anna'" (HOMEM DE
MELLO, Esboços Biográphicos, nota à pág. 8, edição de 1862, tip. do Diário do Rio de Janeiro).
[2] Original no Arquivo
Público do Estado de S. Paulo.
[3] Original no Arquivo da
Cúria Metropolitana de S. Paulo.
[4] O recenseamento de 1765,
apesar de ser o mais antigo existente no Arquivo do Estado, acha-se em perfeito estado de conservação, ao passo que outros, posteriores, estão
estragados pela umidade, roídos pelas traças, lesados por outras causas destruidoras. |