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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares
O navio-prisão (6)

Uma das páginas negras da história santista

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Outro personagem relacionado com o presídio flutuante Raul Soares foi encontrado pelo jornal santista A Tribuna, que entrevistou Vitorino Nogueira para a edição de sexta-feira, 2 de novembro de 2012:

Vitorino Nogueira em casa com a mulher, Malvina:

"Foi ela quem aguentou a maior de todas as barras"

Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria, na primeira página

Raul Soares, uma prisão ancorada no cais santista

A fala mansa de Vitorino Nogueira, de 86 anos, contrasta com os olhos azuis brilhantes e os ideais ainda à flor da pele. Ele foi um dos encarcerados no navio Raul Soares, embarcação utilizada como prisão no início da ditadura instalada pelo golpe militar de 1964. Seu Vitorino passou quase três meses detido. "O porão era o pior lugar da embarcação. Era uma situação humilhante", conta. Há exatos 48 anos, o Raul Soares deixava o Porto de Santos.

Na fumaça da ditadura

Há exatos 48 anos, o navio-prisão Raul Soares deixava o cais santista para marcar a vida de centenas de presos políticos

Eduardo Brandão

Da Redação

Uma funesta e desafinada orquestra se ouvia com o ranger do enferrujado casco do navio Raul Soares. Sons característicos dos conturbados meses que se sucederam ao golpe militar de 1964. Foram esses os únicos acordes capazes de romper os 183 dias de silêncio, tortura, medo e humilhação, período em que a embarcação permaneceu ancorada próxima à Ilha Barnabé, na margem direita do Porto de Santos.

Cicatrizes extirpadas há exatos 48 anos, quando, pela última vez, se viu a escura fumaça sair da chaminé do navio-prisão. Naquele 2 de novembro de 1964 – um Dia de Finados –, a embarcação deixava o estuário santista. Sinal de uma tímida – e honrada – vitória numa batalha desigual.

São sombras da liberdade restrita e estagnação político-econômica nas quais Santos mergulhou nas décadas seguintes.

Antes de navegar pela última vez em águas santistas, as precárias instalações do navio Raul Soares foram o local do cárcere de centenas de presos políticos (não há número oficial).

"Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas", descreveu,à época,o jornalista Mauri Alexandrino, para o jornal Preto no Branco.

Recordações que deveriam ser sepultadas após a última viagem do antigo transatlântico, a assustar pelo seu gigantismo: 6.003 toneladas distribuídas em 129,6 metros de comprimento por 14,7 metros de largura.

"Seu casco impregnado de craca e aparência fantasmagórica morreu sob a ação do maçarico de acetileno do ferro naval, na Cidade Maravilhosa, onde chegou pela primeira vez na aurora do século XX", resumiu o pesquisador Nelson Antônio Carreira, para A Tribuna, em 3 setembro de 1992. O destino da embarcação é ignorado.

Começo do fim - O hino de reformas sociais do presidente João Goulart começou a desafinar na noite de 31 de março e nas primeiras horas de 1º de abril daquele fatídico 1964. "Foram dias escuros”, recorda o ex-deputado federal Gastone Righi. "De uma hora para outra, foi determinada a prisão de todos que estivessem ligados às atividades políticas ou sindicais da Cidade", continua ele, que foi advogado de diversos detidos no Raul Soares.

Ficou evidente, então, a falta de espaço físico para acomodar os considerados subversivos pelo poder militar constituído. Nos dias seguintes ao golpe, a delegacia do Palácio da Polícia, no Centro da Cidade, estava lotada. Boa parte dos detidos era de trabalhadores reunidos nos sindicatos santistas, a espera dos desdobramentos políticos da ocasião.

"Conta-se que os presos comuns eram colocados em liberdade para dar espaço aos sindicalistas presos", diz Lídia Maria de Melo, jornalista, professora universitária e autora do livro Raul Soares, um navio tatuado em nós.

A solução: atracar um navio no Porto para alocar os dissidentes. Assim, em 24 de abril de 1964, a embarcação Tridente, da Marinha, chegava ao cais santista trazendo o Raul Soares, rebocado devido seu avançado estágio de deterioração.

"A coisa era terrível. O pessoal só de cuecas por conta do calor. A temperatura era tamanha que se podia fritar um ovo no convés", cita Gastone Righi, que visitou diversas vezes a embarcação.

De cuecas

"A coisa era terrível. O pessoal só de cuecas por conta do calor. A temperatura era tamanha que se podia fritar um ovo no convés"

Gastone Righi, ex-deputado e advogado 


Prisioneiros e militares, no convés do navio, em 1964
Foto: reprodução, publicada com a matéria, na página A-8

Dificuldade dentro e fora do navio

A fala mansa de Vitorino Nogueira, de 86 anos, contrasta com seus ideais à flor da pele. As décadas não reduziram a vontade de mudar o mundo, mas o afastaram do caminho das transformações."Não me agrada a forma que se faz política atualmente".

Longe dos quadros sindicais desde os dias que considera negros, ele se diz um sobrevivente. "De todos de minha geração, fui o que mais ficou preso". Entre 1964 e 1966, esteve em cárcere por cinco ocasiões. Mas a passagem que mais o fere são os quase três meses no Raul Soares.

Ao lembrar do crime cometido, sorri. "Ser comunista", diz, seguido de uma gargalhada. Essas palavras culminaram na sua condenação, dois anos depois de deixar o navio. "Fiquei de janeiro a dezembro de 1966 preso no Forte Itaipu (em Praia Grande)", fala, deixando as lágrimas surgirem. "Eu não era (comunista). Mesmo se fosse, era crime?", indaga.

Nogueira e alguns companheiros de luta estavam no Sindicato dos Operários Portuários, à Rua General Câmara, na madrugada de 1º de abril de 1964. Antes mesmo do sol raiar, centenas de policiais armados com metralhadoras invadiram a sede. "Todos foram para o Palácio da Polícia (Centro de Santos). Lá ficamos até que o navio-prisão ancorasse no cais santista".

Ele narra a situação humilhante dentro da embarcação, na qual o calor excessivo e as condições péssimas não reduziram a solidariedade. "Éramos uma grande família, as dores impostas pela ditadura não nos amoleceram, deixaram nossos corações mais humanos".

Tempos difíceis - Nogueira atribui a "orquestrações internacionais" o quadro político desenhado na América Latina da década de 1960."Algo me diz que foi força maior. Sete países governados por militares, só podia ser a mando de alguém". Além do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Peru tiveram golpes de Estado.

"Por anos, jurei não mais falar sobre isso. Mas as imagens aparecem. Engraçada essa tal memória, quando achamos que algo se esqueceu, ele aparece".

O que Nogueira não apagou por completo são os dias de cárcere no Estuário, as ameaças e sessões de interrogação, a solidão nas celas ou as fugas cinematográficas. "Não me arrependo de nada. Faria tudo de novo".

As dificuldades não se resumiram ao tempo da detenção. "Era difícil conseguir emprego. Me desesperava ao não poder sustentar minha família", recorda, amparado pela mulher, Malvina Cardoso Nogueira, de 82 anos.

Rejeitado em todos os cantos, a única alternativa foi ser zelador em um condomínio. Trabalho duro, sonhos destruídos, um magro ordenado e dois cômodos para dividir com a filha, de 10 anos à época. "Vivíamos também da caridade de grandes amigos, que sempre nos estenderam as mãos", completa Malvina.


Vitorino, de 86 anos, tentou mas não consegue esquecer o tempo do cárcere
Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria, na página A-8

Sindicalistas viam burburinho no Porto. E não participavam

A vinda do Raul Soares é interpretada como um duro golpe no movimento sindical santista, conforme análise da jornalista Lídia Maria de Melo. "Era mais que opressão. Havia uma simbologia, pois o navio estava ancorado junto ao local que era o ganha-pão da Cidade. Enclausurados, os sindicalistas viam a movimentação do Porto, sem poder participar das decisões das categorias", argumenta.

As imagens em sua memória datam de quando tinha 6 anos, a única ocasião em que visitou o pai, o sindicalista portuário Iradil Santos Mello, detido na embarcação. "Na minha família, a ditadura chegou em 1º de abril (1964). Chegou não, arrombou a porta. A partir de então, tudo mudou".

Nos 10 anos seguintes após ser colocado em liberdade, enquanto corriam os inúmeros processos judiciais, Mello não conseguia se fixar em nenhum emprego. "Ao descobrirem que meu pai estivera no Raul Soares, era mandado embora". O sustento da casa ficou a cargo de sua esposa, Mercedes Gomes de Sá. Situação revista somente em 7 de janeiro de 1980, quando ele foi anistiado. "Para falar a verdade, ainda há processos daquela época correndo na justiça", cita.

Matam as ideias... - Numa época de arbitrariedades, qualquer manifestação jurídica para libertar os detentos era em vão. "Os advogados até tentavam entrar com habeas corpus (pedido de liberdade durante o processo), mas sequer eram atendidos",explica o advogado Gastone Righi.

Cansado dessa situação, o magistrado Antônio Ferreira Gandra expediu mandado de soltura aos detidos, decisão que iniciaria o processo da desativação do navio-prisão. Julgada como uma afronta pela cúpula militar, a medida resultou, indiretamente, no fim de sua carreira. Remanejado, a depressão o atingiu. Três meses depois, morreu.

… mas não o ideal - As lutas sindicais na Cidade poderiam colocar em xeque a tomada do poder pela força. "Santos tinha uma enorme importância, que talvez as atuais gerações não tenham ciência. Foi considerada área de segurança nacional e um dos últimos municípios a ter o poder restituído", pondera Lídia.

Apesar da prisão, Iradil nunca deixou de se preocupar com os rumos do Município. "Até o fim da vida (em 1999), meu pai se reunia, todos os sábados à tarde, com outros ex-sindicalistas para discutir política", acrescenta Lídia.

Para ela, os meses em que o Raul Soares ficou ancorado no cais santista tiraram das futuras gerações o interesse pela política. "Evidente que houve desenvolvimento econômico, mas também há um hiato político e cultural que ainda não foi preenchido".

Livro

A partir de suas recordações e de relatos de seu pai, Iradil Santos Mello, Lídia Maria de Melo escreveu Raul Soares: um navio tatuado em nós. A obra, redigida no final da década de 1980, foi publicada em 1995. Transcreve os dias de angústia de um homem que ficou enclausurado na embarcação.

Nos anos após a publicação, a autora continuou a pesquisa sobre o tema. Os novos documentos e descobertas serão incluídos numa nova edição do livro, ainda sem previsão.

 

Comissões tardias - As chagas do cárcere flutuante continuam vivas, embora enterradas na burocracia. Faltam documentos a comprovar os relatos dos que permaneceram enclausurados no navio. Por esses motivos, são poucos os avanços nos recém-formados colegiados que apuram violações aos direitos humanos nos anos de chumbo. A total falta de informações impede debates na Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva.

Segundo o presidente do órgão, o deputado estadual Adriano Diogo (PT), não há dados sobre os detentos na embarcação. Também faltam registros oficiais do período. O clima de desânimo atinge a jornalista Lídia Maria de Melo, que acredita ser tardia a instalação das comissões. Devido ao hiato, ela cita que os protagonistas "da primeira geração" do Golpe Militar (1964) já faleceram. "Há um pensamento dominante que a ditadura se instaurou a partir do AI-5 (Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968). Mas vivemos quatro anos e quatro AI's sob o domíio da opressão". Para Lídia, os trabalhos dos colegiados se limitarão a apurar casos de desaparecidos políticos. “Se para mim, que não perdi meu pai desta forma, até hoje dói, imagine aos que não sabem do paradeiro dos parentes”.

A embarcação - Quando a embarcação Tridente, da Marinha do Brasil, rebocou o Raul Soares para as proximidades da Ilha Barnabé, o navio repetiria uma sina: servir de calabouço a presos políticos. A antiga embarcação da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro foi transformada em presídio flutuante durante a rebelião comunista, em 1935, e na revolta dos sargentos, de 1963. Tinha três compartimentos, batizados com o nome de famosas boates à época. O El Moroco era um salão metálico ao lado da caldeira, sem ventilação, onde a temperatura passava dos 50 graus. No Night and Day, o prisioneiro ficava numa pequena sala com água gelada até o joelho. As fezes dos ocupantes eram despejadas no Casablanca, também com detentos.

A embarcação foi construída em 1900 pela alemã Hamburg-Sud e batizada de Cap Verde (Cabo Verde). "Uma tradição do armador, que dava nomes de ilhas aos navios", diz o jornalista e historiador de embarcações José Carlos Silvares. Em 1925, adquirida pela companhia Lloyd Brasileiro (estatal de navegação), mudaria de nome: Raul Soares, em homenagem ao político mineiro, o primeiro civil ministro da Marinha (Governo Epitácio Pessoa, 1919 e 1922).


Imagem: reprodução da página A-8

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