Encarcerado
Conforme determinava o salvo-conduto que me fora concedido pelo juiz militar José
Tinoco Barreto, todas as sextas-feiras, às 13 horas, eu me apresentava à Auditoria de Guerra. Vinte e nove dias após minha apresentação, o
magistrado mandou que eu assinasse uma intimação da Aeronáutica, tomando ciência de que no dia seguinte, 8 de agosto, eu deveria estar no Q. G. da
4ª Zona Aérea para ser ouvido pelo capitão Francisco Renato de Melo. Estranhei a intimação para a tarde de um sábado, quando não há expediente
naquela repartição militar.
Exatamente às 13 horas do dia seguinte, demonstrando minha boa fé, cheguei ao Q. G.
da 4ª Zona Aérea sem estar, sequer, acompanhado de advogado. Perguntei a um sargento que estava na porta de entrada, ao lado de um civil gordo, pelo
capitão Melo. O civil, depois de examinar-me detidamente, perguntou-me quem eu era. Dei meu nome e ele mandou que eu entrasse enquanto acrescentava:
"Você é moço. Pensei que fosse um velho..."
Mandando que o acompanhasse, rumou para o elevador. Percebi, de pronto, tratar-se do
capitão Melo.
Antes de entrarmos no elevador, ouvi quando um sargento, cujo equipamento de serviço
denunciava ser o comandante da guarda no Q. G., dizia em voz baixa a um colega:
"Esse é o Nelson Gatto..."
O elevador parou no primeiro andar e desembarcamos. Entramos numa ampla sala onde, em
dias de expediente normal, devem trabalhar numerosos funcionários. Havia apenas um sargento sentado diante de uma máquina de escrever. O capitão
Melo fez-me sentar ao lado do sargento e foi logo ao assunto:
"Agora você vai ter que contar toda a história... Sargento, vá datilografando o que
ele ditar."
Estranhei. Perguntei que história queria que eu contasse. O oficial foi tomado de uma
crise nervosa:
"A história. Eu quero a história inteira. Você é inteligente e sabe bem o que eu
quero que conte. Quero saber quem você conhece na Aeronáutica e todos os fatos da Telefônica."
Disse conhecer muita gente na Força Aérea. Quanto aos fatos, respondi já haver
prestado depoimento na 2ª Auditoria da II Região Militar. Informei que já existia um inquérito, por sinal em fase judicial, sobre o caso da
telefônica.
Gesticulando histericamente, o oficial respondeu:
"Não me interessa que já exista um inquérito em andamento. Nós vamos fazer outro. Não
gostamos da atuação do Exército em seu caso. E não gostamos também do procedimento do Tinoco, que permite que você fique aguardando julgamento em
liberdade. Qual é a sua profissão?"
"Jornalista..."
"Jornalista? Mas jornalista mesmo? Onde você trabalha?"
"Trabalho nos 'Diários Associados'".
"'Diários Associados'? O que é isso?"
Estranhei a pergunta. Seria ignorância ou o capitão queria me irritar? Pensei em
perguntar se o oficial era brasileiro. E à sua resposta afirmativa, diria que estranhava, uma vez que era inadmissível a um oficial das Forças
Armadas Brasileiras desconhecer os 'Diários Associados'.
Encarei o oficial e preferi optar por sua ignorância: esclareci o que são os 'Diários
Associados'.
Passei a narrar os fatos da Telefônica, ditando as declarações. Lá pelas tantas, o
capitão se retirou da sala. Já com a porta aberta, virou-se e disse em voz alta:
"Você só será dispensado quando eu voltar. Para seu conhecimento, saiba que está
preso e só será posto em liberdade quando eu decidir".
Assenti com a cabeça, fiz um gesto de ombros e continuei depondo.
Narrei o episódio dos sargentos que foram me procurar e que queriam trabalhar na
repressão ao contrabando. Com a consciência tranquila de ter agido dignamente, nada omiti. Terminei de prestar depoimento e aguardei a chegada do
presidente do inquérito. Uma hora depois, ao ler o depoimento, o oficial perguntou de chofre:
"Mas isso não é tudo. E os 35% de porcentagem que você prometia aos sargentos que
fizessem qualquer apreensão de contrabando?"
Sorri e cocei a cabeça. Expliquei que aquilo já estava consignado em meu depoimento.
Expliquei mais: que não fora eu que fizera a lei que destina 35% do valor da mercadoria apreendida aos apreensores. O capitão leu novamente o
depoimento datilografado e constatou que, efetivamente, tudo fora consignado sobre a porcentagem que, a meu ver, é imoral, muito embora seja legal.
Parou, pensou um pouco, deu um largo sorriso como se tivesse feito uma descoberta importante e perguntou:
"E o sargento Cordeiro? Você conhece?"
À minha resposta negativa, esfregou as mãos em sinal de alegria, acrescentando:
"Pois eu sei que esse sargento ia sempre pedir emprego em seu serviço. Trata-se de um
militar reformado por ser tuberculoso. Pode ditar seu depoimento dizendo que não o conhece".
Ditei. E ditei da seguinte maneira:
"Que o depoente não conhece o referido sargento Cordeiro, mas é possível que o mesmo
tivesse ido à sua repartição diversas vezes solicitar emprego; que não seria possível ao depoente guardar os nomes de todos os que ali iam solicitar
emprego, entre 80 a 100 pessoas diariamente, mas que pode citar, entre estes, o 1º tenente da Aeronáutica José Porfírio Siqueira e os generais do
Exército Kival Saldanha e Osvaldo de Brito todos interessados em trabalhar na repressão ao contrabando e colaborar, assim, para um Brasil melhor".
O capitão Melo fechou a carranca ao ouvir o meu depoimento e a seguir perguntou:
"E uma tal Josefina Scaramuza, você conhece?"
"Conheço. Conheço uma senhora de nome Josefina Scaramuza. Durante muitos anos foi
chefe do Departamento Pessoal da Secretaria da Segurança Pública, pessoa digna em todos os sentidos".
"E uma tal Itala Schuartzman, você conhece?"
"Lembro-me do nome, embora talvez não seja capaz de reconhecer a pessoa. Fui-lhe
apresentado, de passagem, na Rua Sete de Abril. E lembro do nome apenas por ter sido cumprimentado por ela logo depois de ter assumido o cargo de
chefe do Serviço de Repressão ao Contrabando. A referida senhora deu-me um cartão de visitas, ao mesmo tempo em que dizia estar disposta a me
auxiliar no que fosse possível. Por seu cartão, fiquei sabendo tratar-se da presidente da Federação das Mulheres do Estado de São Paulo".
"E essas mulheres, são bonitas?" - perguntou o capitão.
Respondi que dona Josefina era uma senhora bastante simpática. Quanto à dona Ítala,
nada podia dizer por não me recordar de suas feições. O capitão mandou que eu assinasse o depoimento. Depois de todas as páginas serem rubricadas,
quando eu já pensava que poderia me retirar, abriu uma pasta de couro e tirou de seu interior dois ofícios, ao mesmo tempo em que dizia:
"Muito bem. Eu sei que você destinou à Santa Casa de misericórdia o que viesse a
ganhar em comissão nas apreensões de contrabando. É possível que você seja um homem de bem. Mas vou enviá-lo preso para o navio Raul Soares.
Aqui está o ofício que vou mandar ao Tinoco Barreto comunicando que você está preso à disposição da Força Aérea. Este outro ofício é para o
comandante do navio".
Achei a coisa sem sentido e pensei que o capitão estivesse brincando. Quase tive
certeza que brincava quando mandou chamar o sargento comandante da guarda - o mesmo que disse meu nome ao colega quando entrei no quartel - e
perguntou, ao mesmo tempo em que apontava para seu subordinado:
"Você conhece este sargento?"
Ante minha resposta negativa, perguntou ao comandante da guarda:
"E você, sargento, conhece este moço?"
"Dim. conheço de vista, capitão. É o senhor Nelson Gatto..."
"Muito bem. Pode sentar para prestar depoimento. Você também está preso!"
O sargento, atrapalhado, não sabia se ria ou permanecia sério. Chegou a acreditar que
o oficial estivesse brincando. Eu acompanhava tudo em silêncio e por fim compreendi que não se tratava de uma simples brincadeira.
Quando o oficial pediu uma escolta para me transportar à cidade de Santos, solicitei
que me entregasse o ofício, que eu iria sozinho me apresentar ao comandante do navio-presídio.
O capitão insistiu na escolta, dizendo ser praxe, em tais casos. Com dois sargentos e
um soldado armado de metralhadora, embarquei numa "perua" da 4ª Zona Aérea, dirigida por um funcionário civil do Ministério da Aeronáutica, sendo
transportado para Santos.
Fomos diretamente para o cais. Ali, embarquei numa lancha da Polícia Marítima. Agora,
eis-me aqui, neste imundo navio trazido da Guanabara, rebocado por outro barco, para ser encalhado num banco de areia entre Santos e a
Ilha de Barnabé e servir de cárcere a centenas de brasileiros.
***
Cheguei ao navio minutos depois de 10 fiscais do Imposto de Rendas, presos como
corruptos. O sargento da Aeronáutica que me escoltava entregou o ofício do capitão Melo ao oficial da Polícia Marítima de serviço. O tenente Djalma
Quintanilha estranhou minha prisão, perguntando entre espantado e entristecido:
"Mas você aqui, preso? Não é possível. Eu o conheço. Você é um homem direito, que tem
dado provas constantes de honestidade e que jamais foi comunista... Eu li nos jornais que seu caso já estava resolvido..."
Expliquei que fora preso pela Aeronáutica a despeito do salvo-conduto fornecido pelo
juiz militar do II Exército. O tenente da Polícia Marítima conduziu-me à presença do imediato do navio, tenente Coutinho, da Marinha de Guerra, o
qual perguntou se eu havia jantado. Respondi que não tinha, sequer, almoçado, ao que ele retrucou:
"Está bem. Nós vamos ver isso".
O oficial da Polícia Marítima levou-me para junto de uma mesa e mandou-me que eu
esvaziasse os bolsos. Apanhou meus documentos, um chaveiro e o cortador de unhas e colocou tudo num envelope, marcando meu nome e dizendo que eu os
receberia de volta ao ser posto em liberdade. A seguir, chamou um sargento de sua corporação e mandou que me conduzisse a um dos xadrezes.
Fui levado através de um corredor escuro e malcheiroso até o último camarote da popa,
transformado em xadrez, com grades na vigia, a porta fechada à chave por fora e guardada por uma sentinela de arma embalada. Quando a porta do
xadrez foi aberta, um homem magro, moço ainda, de faces encovadas e cabelos de fogo, levantou-se de um salto, do catre onde estava deitado, e ficou
aguardando em pé. Entrei e os policiais que me escoltavam explicaram-lhe que eu seria seu companheiro de cubículo. O homem abriu o rosto num amplo
sorriso:
"Ótimo. Eu já estava ficando louco sem ter com quem conversar. Não sei qual o motivo
dessa incomunicabilidade com o exterior e até mesmo com os que aqui estão presos..."
Assim que a porta se fechou atrás de nós, estiquei a mão e me apresentei. O homem
tornou a sorrir:
"Eu já o conheço de nome. Fico muito contente em tê-lo por companheiro. Sou médico.
Thomaz Maack, professor-assistente de Fisiologia da Faculdade de Medicina".
O ranger da chave na fechadura interrompeu as palavras do professor. A porta se abriu
e entrou um civil, permanecendo no corredor vários soldados da Polícia Marítima.
"Vocês têm novo companheiro. Este também vai ficar aqui".
Foram as únicas palavras do sargento, que logo se afastou, fazendo mais uma vez a
chave ranger na fechadura. O novo "hóspede" apresentou-se: Hercules Boucher, advogado, agente fiscal do Imposto de Renda. Estava bastante abatido
com sua prisão e atribuía os fatos à sua declaração de bens.
"Há oito anos que estou afastado da fiscalização. Sou um estudioso da matéria fiscal
e nos últimos anos meu serviço é dar pareceres em processos. Já escrevi vários livros sobre o assunto e minha prisão só pode ser decorrência da
declaração de bens que fiz. Sou um homem rico e isso deve ter impressionado os oficiais da Aeronáutica que me prenderam e levaram para a Base Aérea
de Cumbica, de onde fui trazido aqui para o navio sem ter sido, sequer, interrogado".
O abatimento moral do advogado era impressionante. Dizia estar casado há 23 anos e
jamais dormira fora de casa. Preocupava-se com sua esposa. Indignado com o que sofria, esteve a ponto de chorar, só contendo as lágrimas diante das
nossas palavras de encorajamento.
Durante a presidência do sr. Jânio Quadros, fora escolhido para dirigir a Recebedoria
Federal em São Paulo, com a missão específica de apurar bandalheiras na repartição. E fora escolhido por ser um homem íntegro, em tudo indicado para
a espinhosa missão. Não podia compreender, pois, o fato de estar preso como corrupto.
Por sofrer de uma doença na espinha, Hércules Boucher movimentava-se com certa
dificuldade. De seis em seis horas, há muitos anos, tem de tomar forte dose de cortizona, sem o que fica entrevado, impossibilitado de andar. Ao ser
preso por uma patrulha da Aeronáutica, tinha no bolso boa quantidade de remédio. Consumiu quase todo na Base Aérea de Cumbica e, quando chegou ao
navio, seu estoque já estava no fim e ele temia que terminasse e sua doença viesse a se agravar.
Aconselhamos o advogado a tentar conseguir que um oficial da Polícia Marítima
adquirisse seu remédio em terra e acabamos por adormecer sem que o sentinela da porta se dispusesse a chamar um seu superior.
Pouco depois das seis horas da manhã, acordamos com o apito estridente de uma sirene.
Eu mal conseguira dormir, tendo como coberta apenas uma tira de lençol que tinha mais furos que uma peneira. Sobre o colchão imundo e úmido, não
havia qualquer coberta. Para poupar a roupa que vestia quando fui preso e com a qual teria que sair do presídio, deitei apenas de cueca, não
conseguindo dormir meia hora seguida em virtude do frio. Enquanto saltava do catre, o professor ia explicando:
"É hora de levantar. Daqui a pouco servirão o café. Cada preso recebe uma caneca que
guarda em seu cubículo. Entre sete e sete e meia abrem os xadrezes para que cada qual apanhe o café e um pedaço de pão no corredor. Quem quiser ir
ao banheiro deve chamar o guarda e pedir autorização".
Ir ao banheiro...
Isso foi uma das coisas mais indignas que vi no navio-presídio. O homem, para fazer
suas necessidades fisiológicas, era sempre acompanhado por um guarda armado de metralhadora. A porta permanecia aberta e o guarda em pé, no
corredor, com sua metralhadora apontada para o preso sentado no vaso sanitário.
Pedi aos oficiais da Marinha que estiveram vistoriando meu xadrez, que me permitissem
dar dinheiro a alguém para comprar, em terra, uma escova de dentes, uma pasta dental e um sabonete. Insisti muito nisso, mas somente seis dias
depois de chegar preso ao navio consegui uma escova de dentes, e isso graças à boa vontade do tenente José Miranda Quissac, da Marítima, que a
comprou com dinheiro de seu bolso e só aceitou o pagamento da mesma ante minha insistência.
Meu primeiro dia na prisão!...
Tomei um pouco de café puro da enorme caneca que me entregaram com instruções para
que a guardasse no xadrez e comi um pedaço de pão duro, adquirido na manhã do dia anterior, numa das padarias de Santos.
A operação - tudo para os militares, até mesmo para aqueles transformados em simples
carcereiros, é "operação" - de apanhar café no corredor não durou mais de cinco minutos. Soldados da Polícia Marítima, fortemente armados,
permaneciam vigilantes, prontos para impedir que um preso trocasse qualquer palavra com outro companheiro de infortúnio.
Às 10,30 horas desse dia, quando no corretor soturno um soldado gritava para que os
encarcerados se preparassem para o rancho, eu já sabia muita coisa sobre o navio. O professor Thomaz Maack informara-me que não havia médico a
bordo, mas que um sargento-enfermeiro da Marinha, que insistia em ser chamado de "doutor", atendia os casos de doença. Doenças dos presos, pois
soldados e marinheiros eram atendidos por ele no próprio xadrez.
Hércules Boucher, vegetariano de longos anos, disse que não iria comer as refeições
servidas aos presos, o que efetivamente fez enquanto esteve num cárcere do navio. Na hora do rancho, saímos juntos da cela e formamos atrás dos
outros companheiros que já se encontravam em fila no corredor.
Vigiados por soldados da Polícia Marítima, os presos iam passando, um a um, diante
dos três grandes caldeirões, de onde marinheiros com vestes imundas tiravam, com uma concha, um arremedo de comida que jogavam na bandeja empunhada
pelos detentos de "alta periculosidade". As vestes de um dos que serviam a comida pareciam ter sido usadas para lavar o chão do navio, tal era a sua
repugnante imundície. Aliás, esse marinheiro jamais trocou sua roupa imunda durante o tempo em que permaneci encarcerado no Raul Soares.
Hércules serviu-se apenas de uma banana - a sobremesa - e seguiu para o xadrez.
Apanhei uma bandeja e recebi aquela papa formada por arroz e feijão preto. Olhei para os lados, tentando descobrir onde poderia conseguir uma colher
ou um garfo. Vi uma pequena lata de banha com algumas colheres engorduradas e sujas de restos de comida. Pensei que fossem talheres já usados pelos
presos e que ali eram depositados para serem lavados. Hesitei um instante, olhando ao redor para ver se não havia outra vasilha com colheres limpas.
Mais tarde, fiquei sabendo que eram as colheres usadas pelos presos na véspera e que jamais eram lavadas. Quando ia apanhar uma, o oficial da
Polícia Marítima que estava de serviço, Ariovaldo Pereira dos Santos, um crápula desclassificado, gritou como que procurando fazer com que todos
conhecessem sua autoridade:
"Preso novo não tem direito a colher".
Encarei o canalha com ódio e desdém. Já revoltado ante a suprema vileza do episódio
dos sanitários, não me contive:
"Mas isso é um absurdo. Somos presos políticos e devemos ter um tratamento humano.
Como irei comer se não me derem uma colher?"
Batendo com um cassetete de madeira na mão esquerda, respondeu-me:
"Coma com as mãos ou com uma caixa de fósforo".
Protestei. Recusei-me a comer com as mãos, como um selvagem. Coloquei a bandeja com a
comida no chão, ao lado dos panelões, e o mulato Ariovaldo mandou que me escoltassem de volta para o xadrez. Bastaram alguns dias para que todo o
navio soubesse que eu não almoçava e não jantava, acreditando muitos que eu estivesse fazendo a greve de fome. Saía do xadrez, na hora do rancho,
mais para exercitar as pernas. Entrava na fila, apanhava a banana ou laranja servida como sobremesa e voltava para minha cela, onde permanecia em
completa ociosidade.
Na manhã do terceiro dia a bordo, a porta de nosso cubículo foi aberta pelo oficial
de serviço da Polícia Marítima, Antônio Rodrigues. Olhou-nos demoradamente, como a fazer um exame, sem proferir palavra. Por fim, virando-se para
mim, disse:
"Eu estava na lista para ser fuzilado. Se vocês ganhassem, o que seria de nós? Até
que estão sendo muito bem tratados neste navio. Se fosse por mim vocês veriam... Pois eu não estava na lista: Não era o primeiro se vocês ganhassem?
Pois então?... Eu mandaria fuzilar vocês todos sem qualquer julgamento".
"Ganhar o quê? - perguntei -. O Governo, legalmente constituído, deposto por um
movimento sedicioso, nada disputava e nada podia ganhar. Depois, que importância na ordem das coisas poderia ter um pobre diabo da Polícia Marítima
para ser colocado em qualquer lista negra?"
O tenente não gostou. Sabia que eu não almoçava e nem jantava desde que chegara ao
navio, sustentando-me apenas com o café da manhã. Resolveu, pois, pregar-me uma peça: todos os dias, dependendo da boa vontade do oficial da
Marítima de serviço, os presos eram retirados de seus cubículos para tomar ar no tombadilho durante meia hora, vigiados por numerosos soldados
armados de metralhadora. Durante os 43 dias em que estive preso, saí apenas oito vezes. Logo depois do incidente com o tenente Rodrigues, a porta de
meu xadrez foi novamente aberta e dois soldados ordenaram que eu saísse para o arejamento. O médico também ia saindo, quando os soldados o barraram:
"O senhor não. O arejamento é somente para os presos da proa. Os da popa sobem à
tarde. Aqui da popa, o tenente mandou buscar apenas o Nelson Gatto".
Percebi logo que alguma coisa estava sendo preparada. O olhar que me foi lançado pelo
médico me fez ter certeza que algo de anormal ia acontecer. Desconfiado, caminhei pelo corredor, seguindo os dois homens até o convés. Notei, desde
logo, um grupo de oficiais da Marinha de Guerra que, pela atitude, pareciam estar aguardando minha chegada.
Olhei para todos os lados e vi um grupo de presos - os mais fortes - reunidos a um
canto. Outros, andavam de um lado para outro, procurando desenferrujar as pernas. Entre estes, reconheci Antônio Pinto de Freitas, diagramador dos
"Diários Associados", detido pelo Exército por ter sido proprietário, há 14 anos, de um jornalzinho em Ferraz de Vasconcelos, subúrbio da Central do
Brasil. A publicação, de há muito inexistente, fora denunciada como subversiva e o Freitas, o Pantera, como o chamávamos no jornal, fora
preso para responder a um IPM. Pobre Pantera, pensei com meus botões. Hipocondríaco incurável, deveria estar sofrendo bastante com a comida
do presídio.
Tentei dirigir uma palavra ao meu companheiro de jornal, mas ele baixou a cabeça e
passou em silêncio. Percebi, de pronto, que ele estava aterrorizado e que se eu lhe dirigisse uma palavra, o que era proibido, poderia ter uma
síncope, tal o estado de pavor em que se encontrava.
O tenente Rodrigues, pela segunda vez, olhou-me de cima em baixo. Deu um sorriso e
perguntou-me se eu não gostaria de fazer um pouco de física. Recebendo resposta positiva, mandou que eu entrasse em forma juntamente com uns outros
10 ou 12 presos, quase todos sargentos, iniciando uma violenta sessão de ginástica. Sem comer há dias, o exercício atordoou-me. Compreendi que os
oficiais pretendiam me fazer sofrer. Continuei, porém, executando os movimentos até que não aguentei mais e comecei a vomitar bílis. Os oficiais
riam sadicamente do espetáculo. Mesmo assim, com gosto de fel na boca, fui até o fim.
Não queria dar parte de fraco. Por fim, o tenente deu ordens para a ginástica
terminar. Jogaram a ponta de uma grossa mangueira no mar e ligaram as máquinas no porão. O chefe da guarda mandou que os que haviam feito ginástica
entrassem em fila para uma ducha de água salgada. Dois presos seguravam a ponta da mangueira e os demais, em fila, iam passando sob o jato do
líquido imundo, impregnado do óleo que a cada instante jogavam do navio encalhado no mar.
Quando recebia a água gelada na cabeça - era um dia frio, chuvoso e triste como a
maioria daqueles em que nos deixavam sair para tomar ar durante meia hora no tombadilho - o estivador que segurava a ponta da mangueira disse-me, em
voz baixa, que dois repórteres de A Gazeta visitavam o barco para conhecer nossas condições de vida. Mal acabara de falar, os dois
representantes da sucursal do jornal em Santos - o repórter Oberdan Faconti e o fotógrafo José Peres - se aproximaram. Pela atitude dos dois, via-se
logo que haviam sido encarregados de dizer que os presos recebiam bom tratamento.
O repórter perguntou-me o que eu achava do tratamento a bordo. Olhei para o oficial
que os acompanhava por determinação do capitão dos Portos. Encontrei os olhos do tenente Hugo Freitas Alves encarando-me com dureza. Sorri e
respondi:
"Só posso falar se o tenente, que é o dono do navio, autorizar..."
O oficial se surpreendeu. Esperava que eu só abrisse a boca quando ele mandasse.
Espumando de raiva, aos berros, mandou dois guardas da Marítima me recolherem imediatamente ao xadrez.
Minutos depois, a porta de meu cubículo se abriu e reapareceram os dois visitantes,
acompanhados por elementos da marinha de Guerra e da Polícia Marítima. O fotógrafo José Peres perguntou por qual motivo eu me recusava a comer.
Respondi que era um protesto contra a indignidade de obrigarem a um ser humano comer com as mãos, como um animal. Na ânsia de querer agradar os
oficiais da Marinha, o retratista ainda arriscou:
"Bem, você é um preso político mas não vai querer que lhe deem garfo, faca e
colher..."
Nada respondi.
Um dos oficiais da Marinha, que acompanhavam os visitantes sabujos, procurou
justificar o fato de me obrigarem a comer com as mãos, dizendo não haver colheres a bordo, mas que iria providenciar na primeira oportunidade.
Mais tarde, o médico Thomaz Maack, que fora atender um sargento da Polícia Marítima
na enfermaria do Raul Soares, disse ter visto um exemplar de A Gazeta que publicara a reportagem sobre o navio. Dizia que eu me queixava da
falta de faca para cortar os bifes servidos....
À tarde desse movimentado dia, os homens da Marítima fizeram-me sair da cela para
novo arejamento. Era a primeira vez que um preso saía duas vezes num mesmo dia, o que fez com que o médico me dirigisse um olhar interrogativo.
Entrei no grupo de física e fiz ginástica o tempo todo em que estive no tombadilho.
Nessa noite, senti que ia conseguir dormir pela primeira vez no catre imundo, a
despeito do colchão úmido em virtude de uma goteira que pingava de minuto a minuto sobre ele. O cansaço era grande, mas mesmo assim, antes de
adormecer, assisti a uma curiosa discussão entre o médico materialista e o advogado espiritualista. Hércules Boucher, espírita, procurava explicar a
existência de um corpo astral em nosso corpo material, o que Thomaz Maack refutava com argumentos científicos. A conversa derivou para o sonho e,
quando adormeci, o advogado explicava que, quando um homem sonha, é seu corpo astral que se desprende do corpo material e fica vagando no espaço.
Alta madrugada, despertei assustado.
Acordei pensando no corpo astral. Sentia algo se mexendo sobre meu peito desnudo. No
escuro, bati com a mão espalmada várias vezes contra o corpo, sentindo que algo se esmagava e formava uma pasta cremosa. Levantei de um salto e
acendi a luz: milhões de cupins, com asas, esvoaçavam pelo cubículo. Saíam de pequenas rachaduras da madeira das paredes laterais que separam os
xadrezes e cobriam literalmente o chão, enquanto milhares voavam de um lado para outro.
O médico e o advogado acordaram a um só tempo, batendo com a camisa contra o corpo
para espantar os insetos. O cientista deu sua explicação para o fenômeno: estávamos assistindo a uma revoada nupcial. Somente na época da procriação
o cupim cria asas.
Gritamos pelos guardas.
A porta do xadrez se abriu e vimos os homens da Polícia Marítima, de sentinela no
corredor, também às voltas com bandos de cupins que invadiam todo o navio. Conseguimos uma vassoura para empurrar nuvens de cupins para fora. Um dos
guardas permitiu que o médico tomasse um banho em plena madrugada para se livrar dos insetos grudados em seu corpo. |