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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO
Uma série que levou a Cidade aos moradores

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Publicado em 17/4/1982 no jornal A Tribuna de Santos

Equipe de A Tribuna (foto)

Passar o dia comendo bananas no Vale do Quilombo. Comer pirão de peixe numa lata em terreno baldio, com freqüentadores da Rua Xavier da Silveira. Receber das mãos calejadas de um favelado da Vila Alemoa a poesia improvisada em papel de cigarros. Correr de cachorros em vários lugares.

Fazer parte da notícia não é o papel do repórter. Mas depois de quase um ano elaborando a série de reportagens intitulada Conheça o seu Bairro, e de conhecer profundamente toda a Cidade, não há por que reter com o repórter uma série de informações do envolvimento repórter-comunidade, e por força do anonimato, não divulgadas na série.

Só a repórter, Leda Mendes Mondin, moradora do Gonzaga, sabe o que passou - até porque a profissão exige tudo para se chegar à informação e transmiti-la -, durante quase um ano, para oferecer aos santistas uma visão completa da Cidade que muitos não conhecem.

"Eu mesma não sabia que desconhecia Santos", diz Leda, para tornar evidente a triste conclusão de que muita gente nasce e morre aqui sem sair dos limites de seu bairro. E sem conhecê-lo direito.

Desde a primeira quinta-feira de maio de 1982, iniciada pelo Macuco, a série de reportagens percorreu todos os bairros de Santos, passando por lugares como Caruara, Caiubura, Monte Cabrão, Ilha das Neves, Ilha Diana e Vale do Quilombo, e terminou com outro lugar desconhecido da maioria dos santistas, na última quinta-feira, com a divulgação de Itatinga, uma vila da Codesp no meio da Serra do Mar.

Enviada de Deus - Percorrer os bairros, conversar com moradores antigos, escutar as conversas nos bares e nas esquinas e divulgar no jornal as reivindicações, os Leda Mondin, repórteranseios e a expectativa da população, é mais que gratificante para o repórter, no entender de Leda Mondin. Principalmente quando se sente a fé dos moradores no trabalho de imprensa, com a perspectiva da realização de alguma coisa que até o aparecimento do repórter - muitas vezes tratado como enviado de Deus, na hora em que chega a determinado problema insolúvel - parecia distante.

"Cada semana você se empolga com as coisas que vê e que conhece", diz Leda, para lamentar que poucas são as reivindicações e as necessidades imediatas de um bairro ou dos moradores de uma rua atendidas pela administração pública.

É num trabalho como este, de série de reportagens nos bairros, que se percebe o quanto a comunidade quer ser ouvida, principalmente nos bairros da periferia onde os problemas de infra-estrutura são prementes e afloram em cada esquina. São muitos os exemplos, e Leda cita o caso do Jardim São Manoel, sem nenhuma rua pavimentada e com valas a céu aberto; ou das favelas sobre o mangue, onde os ratos atacam as crianças durante a noite e onde são comuns os casos de crianças morrerem afogadas na maré de água podre; ou da decadência do Valongo, onde as crianças não pedem muito além (e não são atendidas nem nisso) do que a limpeza de um terreno baldio, para transformá-lo num campinho de futebol, longe do movimento dos caminhões que vão ao porto.

Há muitos exemplos mais, veiculados por A Tribuna na série sobre os bairros. E tudo continua como se denunciou, desde as coisas mais simples de serem resolvidas, como o campinho de futebol do Valongo, até problemas sérios e que envolvem risco de vida, como é o caso das perigosas encostas dos nossos morros...

Mas a comunidade continua com a esperança de que a denúncia do jornal - afinal, um canal de reivindicações populares - sensibilize a administração municipal.

Duas almas - O que é preciso na Zona Noroeste é importante no Boqueirão? Santos é uma Cidade de duas almas, já dizia um antigo vereador. E isso ficou provado pelas reportagens sobre os bairros: há uma inversão de prioridades na destinação de recursos municipais, com a preferência pelos bairros da praia (da chamada zona turística), em detrimento dos bairros carentes do cinturão da Cidade.

Leda sentiu muito essa inversão: "Enquanto na Zona Noroeste se pede rede de esgotos, asfalto e urbanização de praças (a maioria são verdadeiros lixões), nos bairros da praia pede-se para nivelar o asfalto. As manilhas usadas como floreiras na Avenida Conselheiro Nébias seriam melhor recebidas na periferia. Mas há épocas em que os problemas das zonas nobres se confundem com os da periferia, caso típico das enchentes".

É importante falar numa experiência vivida pela repórter durante a visita de um ano aos bairros, no que se relaciona às crianças. Nos bairros da periferia, a espontaneidade das crianças as leva a criar e utilizar o que têm diante de si em suas brincadeiras: tudo é motivo para ser usado e se nota que não há barreiras na imaginação, embora muitas vezes corram perigo de vida, pendurando-se em caminhões ou mergulhando nos canais. Faz muita falta a implantação de áreas de lazer na periferia, apesar de toda a criatividade das crianças. Em contrapartida, nas áreas nobres - próximas de uma grande área de lazer que é a praia -, as crianças vivem confinadas em apartamentos, com a liberdade cerceada.

Defender a qualidade - O levantamento de dados históricos sobre os bairros levou Leda Mondin a indagar o que se pode esperar da qualidade de vida em Santos dentro de algum tempo: "Não sei o que poderá ocorrer com alguns bairros como o Campo Grande, que conservam algo da Santos antiga, com o avanço desordenado dos prédios em sua direção, e de certa forma acabando com as velhas construções típicas desses bairros, com o sossego dos moradores e com a qualidade de vida que os habitantes dos bairros praianos perderam há algum tempo".

Leda sentiu essa preocupação nos moradores, ao mesmo tempo em que percebeu a impotência da população de bairros onde não há lideranças efetivas que lhes resguardassem a qualidade de vida, impedindo a proximidade da deterioração do bairro: "Há falta de autonomia em algumas Sociedades de Melhoramentos (SMs) para levar à administração municipal as reivindicações prementes dos moradores, de lutar pela realização de obras. Talvez isso seja um reflexo da própria falta de autonomia da Cidade há tantos anos, e de um levantamento das prioridades da comunidade".

É nesse sentido que surge a importância de uma série de reportagens do tipo Conheça o seu Bairro. Leda comenta: "Conhecer o bairro é mais do que alimentar a simples curiosidade dos moradores. É dar ao morador uma visão do que ele tem à sua volta, proporcionando um relacionamento mais íntimo entre o habitante e o bairro, o que o levará a conhecê-lo melhor e a gostar de ser um participante de tudo aquilo que a reportagem mostrou. Esse conhecimento e o apego ao bairro, sem dúvida, formarão um instrumento de defesa, tanto para a preservação do que existe como para a luta por reivindicações ou necessidades imediatas".

O que sobrou - Para chegar a essas informações, Leda passou por tudo: conviveu com a população de Santos mais intimamente e chegou a participar de um almoço improvisado por freqüentadores da Rua Xavier da Silveira. Comeu o pirão de peixe cozido numa lata transformada em panela, em fogueira improvisada num terreno baldio, como forma de se integrar ao modo de vida dos moradores de uma região decadente.

Da mesma forma, para atingir os casebres distantes do Vale do Quilombo, "no fim do mundo ameaçado pela poluição industrial de Cubatão e pelos planos do distrito industrial de Santos", a repórter passou o dia comendo bananas e mexericas tiradas das árvores no meio do caminho.

Mas tudo isso valeu a pena. Não só para a experiência própria de vida, como pelo fato de ter levado essa experiência a toda a população. Pode-se dizer, hoje, que poucos santistas conhecem tanto a Cidade como a jornalista. Mas pode-se dizer, em contrapartida, que muita gente só passou a conhecer melhor a Cidade depois das reportagens.

De toda a experiência, Leda carrega consigo o privilégio de ter conhecido a Ilha das Neves e, mais que o lugar, de ter convivido com seu Nelinho, um homem forte, marcante, sincero e ingênuo, morador de um casebre caindo aos pedaços e sustentado por dois bambus. "De lá, ele vê a Cidade, enxerga os prédios reluzentes pelo pôr do sol. De lá, ele sabe que não está impregnado pelos valores da Cidade, embora esteja tão perto dela e a visite com alguma freqüência. É lá que ele vive a vida e, ao enxergar os prédios, compreende que a liberdade mora na ilha com ele".

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