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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - INSEGURANÇA
Fogo! A Baixada Santista corre perigo? (B-10)

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De 16 de dezembro de 1984 a 1º de janeiro de 1985, o jornal santista A Tribuna publicou uma série especial de reportagens, Roteiro da insegurança, sobre os riscos a que estavam expostos os habitantes da Baixada Santista.

Esta matéria foi publicada no dia 30/12/1984:
 
 

ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 10


Agora, não são apenas os trabalhadores da Cosipa que estão ameaçados
Foto: João Vieira, publicada com a matéria

A ameaça da leucopenia
(A doença estaria atingindo até quem nunca trabalhou nas indústrias de Cubatão)

Texto de Manuel Alves Fernandes e Lane Valiengo
Fotos: João Vieira

Ninguém está livre do perigo: toda a Baixada Santista está sendo atingida pela leucopenia, o mesmo mal que está matando em Cubatão. Foram constatados casos da doença em pessoas que nunca trabalharam nas indústrias de Cubatão e não têm nenhuma ligação (mesmo indireta) com o parque industrial.

A leucopenia é caracterizada pela redução de glóbulos brancos no sangue, o que diminui sensivelmente a capacidade de reação do organismo contra qualquer doença, mesmo a mais simples gripe; dessa forma, não ocorre apenas com os trabalhadores da Cosipa e da Refinaria: está atingindo até mesmo adolescentes santistas.

A informação não é oficial, logicamente, mas está sendo denunciada pelo presidente do Sindicato dos Petroleiros, Pedro Gomes Sampaio. E não há mesmo motivo para tranqüilidade: o médico de uma grande indústria de Cubatão fez a revelação durante recente reunião técnica no Ciesp. E disse mais: embora não se conheça de que forma isto está ocorrendo, é quase certo que está havendo a conjunção de vários fatores, no ar, e o contágio se daria através do simples e vital ato de respirar.

A poluição, finalmente, assume a sua face mais trágica: a Unidade Sindical recebeu a informação (oficiosa) de que determinada indústria de Cubatão, ao selecionar candidatos a um emprego, constatou que vários jovens santistas - estudantes, bancários, comerciários etc. - apresentavam redução de glóbulos brancos. E nenhum deles havia, antes, trabalhado em alguma indústria ou estado em contato com os produtos químicos que, normalmente, produzem a leucopenia.

Sampaio, embora ressalvando sua condição de leigo, faz um desafio: se for feita uma pesquisa - desde que seja "uma pesquisa séria e honesta" -, o fato será constatado em toda sua extensão. "Seria preciso que uma equipe médica assumisse este trabalho, através do Governo Federal ou mesmo estadual. O que está em jogo é a vida de milhares de seres humanos. E a população tem o direito de saber tudo o que está ocorrendo. Só que, quando surgem interesses partidários ou ideológicos, nada vai para a frente".

O presidente do Sindicato lembra os casos de anencefalia (nascimento de crianças sem cérebro), que ocorreram em maior número exatamente em Santos, e não em Cubatão, como seria normal. E o pior: em famílias sem qualquer ligação com as indústrias.

A analogia entre a anencefalia e os casos de leucopenia leva à questão principal, para Sampaio: "O benzeno não é o único agente que provoca a leucopenia. Como explicar então que até adolescentes estão com a doença? Será que foram contaminados pelo ar? Pela água? Ou pelos alimentos? É preciso descobrir, ir fundo, pesquisar. É preciso explicar tudo à população".

O que é - A leucopenia caracteriza-se pela diminuição de glóbulos brancos no sangue. São estes glóbulos que defendem o organismo, que lhe dão resistência às doenças. O leucopênico, entre outros itens, perde a resistência a gripes e resfriados, inflamações etc. Apresenta problemas de visão, cansaço nas pernas, sonolência e aftas. Com o tempo e a evolução do mal, as alterações hematológicas resultam em leucemia. Foi o que aconteceu com Higino Antônio dos Santos, de apenas 25 anos, funcionário da Cosipa falecido há algumas semanas: de acordo com laudo da Secretaria do Estado de Relações de Trabalho, a leucemia mielóide aguda que causou a morte de Higino foi causada pela inalação de emissões de coque e gás de coqueria, na Cosipa, quando exercia as atividades de ajudante de manutenção III e mecânico de manutenção, junto à gerência de Manutenção da empresa.

A Cosipa negou, oficialmente, que Higino tivesse falecido em virtude de leucopenia. O Sindicato dos Metalúrgicos requereu, na quinta-feira, a instauração de inquérito policial para a apuração da responsabilidade penal da direção da Cosipa e da chefia do departamento médico da empresa, pela morte de Higino, ocorrida no dia 6, e ainda pela intoxicação de outros trabalhadores pelo gás de benzeno. Que, por sinal, apesar da anunciada reforma na Coqueria, continua vazando.

A petição foi entregue pelo Sindicato à Promotoria Pública de Cubatão e baseia-se exatamente no laudo pericial da Secretaria de Relações do Trabalho, elaborado pelos médicos Luiz Carlos Morrone e Daniel Maturino dos Santos.

Em outro laudo, também da mesma Secretaria, é relatada a inspeção realizada na Cosipa. E o laudo é conclusivo: "Fomos informados que a solução definitiva para melhoria das condições de trabalho (da Coqueria) é a troca da máquina enfornadora. Já ocorreu abertura de licitação para isso, que deverá ser feita a nível internacional. A previsão de esta máquina ser projetada, construída, instalada e entrar em operação é de, no mínimo, dois anos".

Não há cura conhecida para a leucopenia. A única solução é esperar que o próprio organismo reaja, equilibrando a taxa de glóbulos brancos.

A poluição que vem de longe

Diante da situação, vem a pergunta inevitável: de que forma a poluição gerada pelo parque industrial de Cubatão atinge a população das cidades vizinhas? Durante muito tempo prevaleceu a teoria (discutível) de que somente quando soprava o vento noroeste é que os resíduos em suspensão eram trazidos para Santos. Só que, durante recente debate no auditório da Prodesan, técnicos da Cetesb encarregaram-se de destruir aquela teoria: Santos sofre muito mais com a poluição de Cubatão do que, por exemplo, o Vale do Quilombo, que fica exatamente em frente ao parque industrial.

Não há dúvida de que existe, em suspensão no ar, um verdadeiro coquetel de produtos tóxicos, que estão sempre se combinando, como ressalta a diretora da Divisão Regional de Saúde, Lia Giraldo, "produzindo efeitos desconhecidos".

E esse coquetel, segundo as denúncias e a revelação de um médico da Petrobrás, estaria causando leucopenia na população de outros municípios, principalmente Santos.

O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Arnaldo Gonçalves, assinala que a entidade detectou, no início de 1983, a ocorrência de doenças sanguíneas em funcionários da Cosipa, por meio de exames realizados no ambulatório do sindicato. Foi designada então a médica Lia Giraldo (do Ambulatório de Saúde Ocupacional da entidade) para o acompanhamento do problema.

Cerca de 450 trabalhadores da Cosipa (total de 12 mil, aproximadamente) foram examinados. E foram constatados 83 casos de alterações hematológicas devido ao benzeno. Desses 83, 15 não voltaram ao sindicato para saber o resultado dos exames e não se sabe se estão sob controle médico ou não. Dos casos que estão sendo acompanhados pelo sindicato, 49 são de trabalhadores da coqueria, 11 da manutenção e oito de outras áreas - laminação, altos fornos e sinterização.

O relatório apresentado por Lia Giraldo observa que, dos 83 casos identificados pelo sindicato, 25 já eram do conhecimento da Cosipa antes da denúncia formulada em agosto de 1983. Os outros 58 só foram detectados após as denúncias da entidade.

Na petição apresentada à Promotoria de Cubatão, Arnaldo Gonçalves ressalta que a diretoria da Cosipa e o departamento de saúde ocupacional da empresa "tinham pleno conhecimento da gravidade da situação", pois em 1981 a Fundacentro apresentou laudo expondo todos os riscos representados pelos vazamentos da coqueria. Enquanto isso, os trabalhadores desconheciam totalmente os riscos a que estavam sujeitos, até porque os exames periódicos de saúde, hemogramas e o exame de fenol urinário não eram feitos com a regularidade prevista em lei.

Além disso, segundo Arnaldo, a maioria dos trabalhadores afetados não estava afastada da produção nas áreas de risco. Ao contrário, continuavam expostos ao perigo, apesar dos sinais de intoxicação. E a Cosipa não havia registrado a maioria dos casos como doença profissional, conforme determina a lei, "caracterizando deliberada sonegação de informação, pela empresa, apenas preocupada com sua Campanha Acidente Zero".

O benzeno é irritante da pele, dos olhos e do trato respiratório superior. O contato crônico com a pele provoca dermatites escamosas e a exposição aguda resulta em depressão do sistema nervoso central, dor de cabeça, tontura, náuseas, convulsões, coma e morte.

A exposição crônica ao benzeno pode provocar alterações no sangue e desenvolve ação sobre a medula óssea, destruindo a capacidade de produzir células sanguíneas e caracterizando a aplasia medular.


Exposição aos gases gera diversos problemas
Foto: João Vieira, publicada com a matéria

Vereador apela à ONU

I

O vereador Romeu Magalhães, do PDS, tornou-se proscrito para uma sensível parcela da comunidade que não tolera suas denúncias de que nascem na Cidade crianças sem o cérebro por causa da poluição. A Prefeitura de Cubatão contratou o cientista Roque Monteleone que, em dois anos de estudos, demonstrou que pelo menos na Vila Parisi - lugar mais poluído da Cidade - não nasceu nenhuma criança sem o cérebro nos últimos dois anos. Romeu contra-ataca: o cientista Reinaldo Azoubel conseguiu fazer ratas engravidadas, submetidas a determinados poluentes lançados na atmosfera, terem ratinhos sem o cérebro.

"Não há nenhuma evidência, até o momento, de que a poluição ambiental de Cubatão seja responsável por esse tipo de anomalias", avisa Roque Monteleone.

Romeu não se conforma. Ultimamente, diz ter provas de que há pelo menos seis casos de moradores de Cubatão, alguns do Centro da Cidade, que teriam leucopenia provocada pela fábrica de benzeno da RPBC. Para elucidar todas as dúvidas, ele quer a presença de uma equipe científica internacional, ligada à Organização Mundial de Saúde.

A mesma reivindicação é defendida por Dojival Vieira dos Santos, da Associação das Vítimas da Poluição e das Más Condições de Vida de Cubatão, que prega a realização de testes de cabelo e unhas para se verificar o grau de contaminação da população pelos produtos químicos das fábricas.

II

Más condições de vida é o que o presidente da Câmara, Florivaldo Cajé, vê na maioria dos trabalhadores das indústrias locais, sujeitos a conviver com todo o tipo de produtos químicos letais. Ele enumera alguns produtos, começando pelo benzeno que provoca leucopenia na Cosipa e que conduz à leucemia.

"Um dos casos mais conhecidos de doenças profissionais foi o de João Ferreira Barbosa, operário de uma empreiteira de apoio industrial, que trabalhava na unidade de pentaclorofenol da Clorogil, depois adquirida pela Rhodia. Ele pegou acnecloro e ganhou caroços de grande volume, que purulavam no verão. Está aposentado, mas até hoje tem o corpo em chagas por causa desse produto químico que não se fabrica mais no País", informa Cajé.

O vereador calcula que de 250 a 300 trabalhadores tenham hoje seqüelas provocadas pelo pentaclorofenol, também conhecido como "pó da China", que era fabricado na Cidade. "Existem ainda hoje 40 empregados dessa fábrica que estão em tratamento".

Ele enumera outras doenças causadas por produtos químicos locais:

"A capacidade pulmonar fica reduzida e o operário chega à tuberculose pela fixação de matéria particulada que provoca o endurecimento dos alvéolos pulmonares; e também à tuberculose, pela exposição a gases venenosos. Uma fábrica de fertilizantes local - a Solorrico - se meteu a medir a capacidade pulmonar de seus empregados. Amedrontados com os resultados da pesquisa, os donos da fábrica mandaram esse pessoal embora, substituindo-os aos poucos, sem dizer por quê. A sílica da Cosipa também se fixa nos pulmões, brônquios e bronquíolos, levando ao encurtamento da vida".

III

A exposição constante dos trabalhadores de turno a produtos químicos lhes aniquila a vida, segundo Cajé. Poucos sobrevivem à aposentadoria. Ele afirma que os gases nitrosos e os fluoretos da Refinaria e da Ultrafértil contaminam o baço e o fígado e que o chumbo tetraetila, o cádmio e o mercúrio levam ao câncer.

Romeu Magalhães via mais além: "Todos esses produtos que terminam em óis (benzóis, xiloóis, toluóis) provocam leucemia".

Os gases ácidos, o material fosfatado das fábricas de fertilizantes, são retidos pela urina e também levam a doenças fatais. O pó preto da fuligem das caldeiras obstrui os poros, leva à acne e ao embaciamento do brilho da pele, provocando rachaduras e sangrias que conduzem ao câncer. Cajé afirma que também levam à cirrose hepática.

"Um operário da Cosipa que trabalha na laminação acaba ficando surdo e sofre dos nervos. Não é à toa que chamam a siderúrgica de fábrica de loucos. A jornada de trabalho do pessoal de turno devia ser reduzida de oito para seis horas, no mínimo. Um sujeito que trabalha nesse regime tem varizes, troca o dia pela noite, e certamente viverá menos que os seus iguais. É desumano", conclui.

Problema é a fábrica, diz diretora da DRS

A diretora da Divisão Regional de Saúde, Lia Giraldo, acha que, para se afirmar que existe uma epidemia de leucopenia atacando a população da Baixada Santista, seria preciso realizar um inquérito epidemiológico, profundo e exaustivo. O que, entretanto, ela acha desnecessário: se for combatida a fonte - ou seja, o vazamento de benzeno na coqueria da Cosipa - deixará de existir perigo. E a população não será atingida.

Lia lembra que não há informação científica a respeito, o que exigirá levantamento envolvendo os efeitos de vários produtos tóxicos, e não apenas o benzeno. Mas reconhece que é preciso pesquisar o "coquetel" de gases em suspensão no ar. Sem isso, não há como provar que este "coquetel" está provocando leucopenia na população da região. A Cetesb está efetuando estudo, mas os resultados ainda não são conclusivos.

Depois de observar que os primeiros sinais de contaminação por benzeno só costumam aparecer de cinco a seis anos depois, Lia afirma que, na Cosipa, existe realmente uma "epidemia". Mas ressalta que a existência de epidemia não descaracteriza a doença profissional. Como aliás, algumas indústrias estão tentando fazer: se conseguirem provar que não é só dentro das fábricas que se contrai a leucopenia, poderiam descaracterizá-la como doença profissional.

Outra informação: também na Estireno e na Refinaria foram constatados casos de trabalhadores com leucopenia. E Lia diz que existe vasta literatura médica atestando que o benzeno é realmente causador da diminuição de glóbulos brancos no sangue.

Apesar de tudo, a diretora acha que deveria haver uma pesquisa sobre a possibilidade de a leucopenia estar atacando a população da Baixada. Mas não deixa de salientar que o trabalhador é o primeiro e o mais atingido e que, resolvendo-se o problema na fábrica, a população estaria livre da ameaça.