Já foi descrito nesta série, em síntese, o primeiro período da centenária existência do Lloyd Brasileiro, período esse que correspondeu aos anos entre
sua fundação, em 1890, e a primeira grave crise existencial da armadora, acontecida logo no início do século XX. Esta crise resultou, em 1906, na venda (por parte do Banco do Brasil) dos ativos do
Lloyd a um grupo de empreendedores associados liderados pelo ex-diretor geral da armadora, Manoel Buarque, abrindo-se assim um novo capítulo na história da empresa.
Mas, recapitulemos: a origem do Lloyd Brasileiro deve-se à sábia visão do almirante Artur Silveira da Mota, nobilitado durante o Império com o título de barão de Jaceguay.
Autorização - Em 1886, Silveira da Mota requeria autorização ao Governo Imperial para o estabelecimento de uma empresa armadora de capital nacional, a qual deveria servir regularmente o tráfego de
passageiros transoceânicos entre o Brasil e portos do Mediterrâneo Ocidental.
A autorização para a exploração comercial dessas suas linhas marítimas foi concedida por decreto assinado por Dom Pedro II em novembro de 1888. Antes, porém, que a nova armadora - à qual se havia dado o nome de
Empresa Transatlântica Brasileira - pudesse iniciar suas atividades, chegou a seu fim o regime monárquico, com o exílio do idoso imperador.
Uma das conseqüências deste grande fato histórico nacional foi a anulação do decreto que permitia a constituição da Empresa Transatlântic Brasileira.
Convicção mantida - Apesar disto, o barão de Jaceguay não perdeu sua grande convicção da necessidade de ser criada uma grande armadora nacional... "a fim de não deixar em mãos exclusivamente estrangeiras o
transporte oceânico deste País", como apreciava exprimir em próprias palavras.
Com o apoio de colegas de cúpula da Marinha de Guerra (os almirantes Wandenkolk e Custódio de Melo), Artur Silveira da Mota conseguiu convencer o novo ministro republicano da Agricultura, Francisco Glicério, dessa
necessidade.
Glicério usou então sua forte influência política no seio do governo provisório e constituinte do marechal Deodoro da Fonseca, para que este baixasse o decreto-lei nº 208 (em fevereiro de 1890), criando o
Lloyd Brasileiro.
O Rio de Janeiro, em cartão postal da coleção do pesquisador Laire José Giraud
Planos ambiciosos - Ao adquirirem o controle da empresa (em 1906), Manoel Buarque e seus sócios, imbuídos de planos bem ambiciosos, assinaram contrato com quatro diferentes estaleiros britânicos para a
construção de 14 navios que se destinariam ao serviço, seja do tráfego interoceânico, seja do de cabotagem.
Estas novas unidades estavam divididas em quatro grupos de navios similares por grupo e um vapor com características únicas, o Acre, de 2.600 toneladas de arqueação bruta (t.a.b.).
Os grupos estavam assim divididos:
4 vapores de 3.500 t.a.b. (Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Pará)
4 vapores de 1.800 t.a.b. (Cubatão, Ibiapaba, Borborema e Mantiquera)
2 vapores de 1.300 t.a.b. (Oyapock e Javary)
3 vapores de 1.100 t.a.b. (Miranda, Caceres e Murthinho).
Estaleiro de Belfast - As quatro maiores unidades foram encomendadas ao estaleiro Workman, Clarck & Co., de Belfast, segundo planos de desenho feitos pelo engenheiro naval e capitão-de-corveta da
Marinha do Brasil, Rosauro de Almeida.
Esses navios foram construídos em aço e possuíam máquinas de propulsão a tríplice expansão com três cilindros cada uma, trabalhando com condensação por superfície e pressão de 180 libras. Suas características
técnicas eram basicamente as mesmas e só se diferenciavam entre si por detalhes.
Cada um possuía chaminé, dois mastros, dois conveses de superestrutura e dois a nível de casco, tudo isto englobado em linhas elegantes e compactas. Eram dotados de uma câmara frigorífica para o transporte de
produtos perecíveis, como carnes, peixes, legumes e frutas. Todos os ambientes a bordo possuíam iluminação elétrica e instalações de ventilação.
Passageiros - As acomodações para os passageiros de primeira classe situavam-se na coberta à meia-nau e consistiam em cabinas individuais ou duplas e dois camarotes de luxo com dormitório, pequeno salão e
banheiro individual.
Estes passageiros desfrutavam também de um espaçoso salão de jantar, anexo ao qual se encontravam, de um lado, um salão de música, e do outro, uma sala para fumantes - ou seja, tão somente cavalheiros, na época em
questão.
As qualidades técnicas desse quarteto de vapores e o esmero empregado na construção valeram a classificação Lloyd's Register de navios classe 100A1, ou seja, superior. Possuíam dois porões de carga e
bagagem, um na proa (frente), outro na popa (ré).
O navio misto de cargas e passageiros São Paulo, irmão do Rio de Janeiro,
construído no final do século XIX
Viagens inaugurais - Foram todos lançados ao mar no decorrer de 1907, e nesse mesmo ano realizaram suas viagens inaugurais entre Londres, Southampton e Rio de Janeiro.
Ao entrarem em serviço regular, os quatro vapores desta série foram utilizados nas linhas interoceânicas do Lloyd, alternando-se, seja na rota para a costa Leste dos Estados Unidos, seja
para os portos do Norte da Europa.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, a linha européia foi transferida para portos do Mediterrâneo, mantendo-se inalterada a programação de saída para Nova Iorque, via Barbados.
Linha suprimida - Dois anos mais tarde, com o Mediterrâneo fervilhando de atividade submarina alemã, a linha européia foi simplesmente suprimida.
Respeitando o critério da escolha de nomes, o Rio de Janeiro saía do porto do mesmo nome enquanto o São Paulo zarpava de Santos. As escalas intermediárias entre estes dois portos e Nova Iorque eram
Bahia, Pernambuco, Pará e Barbados.
Em 1919, o Rio de Janeiro colidiu no porto de Santos com o cargueiro brasileiro Campeiro, sofrendo alguns danos no casco.
Reduzido a trio - No início da década de 1920, o quarteto de navios já estava reduzido a um trio, já que o São Paulo fora perdido em 1921. Os três restantes da série foram então transformados em
navios de cabotagem, dois deles recebendo mais tarde novos nomes: o Ceará passou a ser denominado Commandante Ripper e o Rio de Janeiro, rebatizado Prudente de Moraes (respectivamente em 1926 e 1923).
O Lloyd passou a empregá-los nas linhas costeiras de passageiros e cargas que ligavam todos os principais portos brasileiros, de Porto Alegre até Belém.
Viagem na década de 30 - Numa típica viagem da década de 1930, o Commandante Ripper saía de São Francisco do Sul para Belém escalando, além de Santos, em nada menos do que outros nove portos ao longo
da costa central, Nordeste e Norte do País.
Dos 14 vapores construídos em 1907, o que teria vida mais longa seria o Acre, que fora batizado em Stockton-on-Tees pela filha do então embaixador brasileiro em Londres, Régis de Oliveira.
O Acre seria demolido no Brasil em 1964, com a respeitável idade de 57 anos! Levava na proa o novo nome que lhe fora conferido em 1923: Rodrigues Ales.
Com o nome California, no estuário de Santos, em 1942, ostentando a inscrição Chile: neutralidade
Destino incomum - O Ceará e o Pará passaram pelas tochas de acetileno no decorrer de 1962, enquanto o ex-Rio de Janeiro, objeto maior de nossas atenções, teve um destino bem incomum: foi
perdido, recuperado, reformado e perdido outra vez, e definitivamente.
Em março de 1938, quando se encontrava em viagem do Rio de Janeiro a Punta Arenas (Chile), acabou por encalhar nas rochas próximas a Punta Carrero, próximo ao farol de San Izidro, no Estreito de Magalhães, e - dado
como perda construtiva total pela armadora e companhia seguradora - foi abandonado aos elementos.
Dois anos mais tarde, já em plena época da guerra e com os preços de navios e fretes subindo vertiginosamente no mercado internacional, a recuperação do vapor tornou-se viável do ponto de vista financeiro.
Resgate - Uma firma chilena especializada recuperou e reflutuou o vapor, levando-o a reboque para Talcahuano. Neste porto, foram em seguida executados todos os trabalhos de recondicionamento, o que permitia
a venda do navio, que fora do Lloyd Brasileiro, ao armador andino de nome Roberto Cordero Waters.
Rebatizado California, com acomodações interiores mais modernas e com duas gigantescas bandeiras do Chile pintadas em cada lado do seu casco, atestando a condição de neutralidade no conflito em curso, o
antigo vapor voltou a freqüentar os portos de sua juventude, sendo empregado, a partir de meados de 1942, na rota que ligava portos chilenos a portos brasileiros, via Buenos Aires e Montevidéu.
Escalava, portanto, em Santos e no Rio de Janeiro, fato que se repetiria por inúmeras outras vezes, até a perda definitiva, ocorrida em 21 de junho de 1949. Naquele dia, violenta tempestade assolou boa parte do
litoral chileno e o California - que se encontrava fundeado face a Valparaiso - teve uma de suas âncoras arrancadas, sendo então arrastado pela correnteza até a costa, onde terminou destroçado contra as rochas. |