Seus navios, sempre com seus cascos de cor carvão escuro, levavam nas altas chaminés, também estas pretas, a bandeira da empresa: uma gigantesca cruz de malta branca, colocada
numa faixa vermelha que cortava o negro da chaminé a três quartos de altura da mesma. Houlder Line... um verdadeiro símbolo do poderio marítimo da Grã-Bretanha, um nome de
tradição distinta entre todas as armadoras que serviram regularmente a Rota de Ouro e Prata (Brasil e Argentina).
A empresa teve suas origens estabelecidas no longínquo ano de 1849, quando Edwin Svory Houlder - um jovem de apenas 21 anos, sétimo e último filho de um degenerado proprietário de terras, William Houlder (este,
endividado até o pescoço por perdas em jogos de azar, não hesitou em abandonar a família) - criou em Londres (Inglaterra) uma agência de afretamentos (aluguéis) de navios e de seguros marítimos.
O ainda adolescente Edwin havia se iniciado bem cedo no mundo dos negócios: aos 16 anos, fora trabalhar numa firma mercante pertencente a dois cidadãos gregos, a Jounides, Sgouta & Co., e cinco anos mais tarde, com
o consentimento de seus proprietários, colocava-se por conta própria no mesmo endereço da firma onde havia trabalhado. Pouco a pouco, seus negócios prosperaram e já em 1853 estabelecia-se em próprio endereço, abrindo escritório em Gracechurch
Street, no coração financeiro da antiga Londres.
A expansão comercial da Grã-Bretanha pelo mundo afora favorecia naquela época os homens de espírito empreendedor e o jovem Edwin dava um grande passo adiante quando, naquele mesmo ano, recebia uma carta-patente das
autoridades alfandegárias do Reino Unido para servir como agente de despacho.
Com o passar do tempo, a E. S. Houlder & Co. crescia e em 1856 o volume de negócios era tal que Edwin convidou seu irmão, Alfred, a entrar como sócio e, isto feito, a firma teve seu nome mudado para
Houlder Brothers & Co., ganhando contemporaneamente um novo endereço na prestigiosa Leandenhall Street, número 146. A empresa teria sua sede principal nesse endereço por bem 60 anos!
O Hornby Grange, da Houlder line, na única fotografia conhecida
Mudanças - Em julho de 1901, quase meio século depois dos fatos narrados, Edwin S. Houlder vinha a sucumbir, vítima de um súbito ataque cardíaco, quando presidia a reunião da assembléia anual da empresa, que
estava se realizando num hotel londrino. Seu irmão Alfred falecera em 1878, também pela mesma causa.
Na virada do século, isto é, 18 meses antes de seu desaparecimento, Edwin Houlder encabeçava e conduzia (conjuntamente com seu antigo funcionário e agora associado principal, E. Cayford) uma empresa limitada (a
Houlder Line), possuidora de um capital social de 500 mil libras esterlinas e proprietária de dez vapores, representando 23 mil toneladas de armamento e que era beneficiária de vários generosos contratos de transporte marítimo assinados por
diversos ministérios britânicos.
Seus navios, próprios ou afretados, freqüentavam assiduamente as principais rotas do Atlântico Norte e Sul, transportando principalmente animais vivos (cavalos, mulos, ovelhas) e carne frigorificada, carga esta que
se tornara a grande especialidade da armadora.
Em setembro de 1900, como bom exemplo do tráfego da Houlder na época, foram realizadas 73 viagens por navios a ela pertencentes ou afretados. Dessas viagens, 32 foram na Rota de Ouro e
Prata, com destino final em Buenos Aires (Argentina); 18 para Nova Orleans (Estados Unidos); 14 para destinações australianas e cinco para Montreal, no Canadá.
Os dez navios que eram de propriedade da Houlder nesse mesmo ano levavam os nomes de Hornby Grange, Ovingdean Grange, Urnston Grange, Beacon Grange, Langton Grange, Denton Grange, Elstree Grange, Rippingham
Grange, Royston Grange e Souther Cross.
A utilização da terminação Grange tem sua origem no nome da mansão da qual Edwin Houlder fora proprietário no Condado de Surrey (Inglaterra), residência onde viveu de meados de 1860 até 1894.
Outra curiosidade: o fato de que cada navio da frota levando esta terminação possuía, na parede da escada principal que conduzia ao salão social, uma larga reprodução de uma foto do lugarejo que era sede
administrativa do condado inglês do qual levava o nome.
Mercado promissor - Em 1881, Edwin Houlder viajou, acompanhado pelos filhos Frank e Maurice, para a Argentina, a fim de verificar o potencial do país como exportador de animais vivos ou abatidos.
O que ele pôde ver o convenceu de que a América do Sul, sobretudo os países da região do Prata, era um mercado promissor para seus negócios, até então concentrados na direção da Austrália e Nova Zelândia.
Foi o início de uma epopéia. Dois anos mais tarde, a Houlder Brothers assinava seu primeiro contrato para o transporte de carne frigorificada da Argentina para o Reino Unido com a River
Plate Fresh Meat Co.
O primeiro embarque ocorreu em Colonia (Uruguai), no Meath, afretado pela Houlder. Este vapor transportou 7.500 carcaças congeladas de ovelhas argentinas abatidas no matadouro de
Campana pela River Plate Fresh Meat Co., zarpando de Buenos Aires em 17 de dezembro de 1883, chegando a Antuérpia (Bélgica) em 21 de janeiro seguinte, para descarga parcial, e a Londres, em 1º de fevereiro, para descarga final.
A partir desse embarque e por mais de um século a Houlder disputou acirradamente com a Royal Mail e a Nelson Line o vultoso mercado do
transporte de carne ovina ou bovina congelada para a Europa.
Frota própria - Por volta de 1888, os bons negócios da carne haviam feito Edwin S. Houlder decidir-se pelo grande passo seguinte: tornar-se proprietário e armador de seus próprios navios! Foi assim que a
Houlder Brothers encomendou em princípios do ano seguinte dois vapores, que seriam entregues com os nomes de Hornby Grange e Ovingdean Grange.
Eram de desenho similar e com tonelagens quase iguais, o primeiro sendo construído (pelo preço de 40 mil libras esterlinas) pelo estaleiro Wigham Richardson, de Newcastle, enquato o segundo o era pelo estaleiro
Raylton Dixon, de Middlesborough.
Eram navios de desenho bem sóbrio e funcional, com um só convés de superestrutura, em cima do qual tronejavam duas altas chaminés, muito próximas uma da outra. Possuíam seis câmaras frigorificadas com capacidade
total de 70 mil pés cúbicos de carga e acomodações para tão somente 18 passageiros, viajando em primeira (e única) classe de bordo.
O Ovingdean Grange era apenas ligeiramente maior, com suas 2.413 toneladas, e embora lançado ao mar alguns dias antes do seu irmão quase gêmeo, foi o segundo a zarpar de Londres para a Argentina, em 25 de
março de 1890, tendo sido precedido pelo Hornby Grange por apenas 14 dias.
O par permaneceu por muitos anos no tráfego de e para a costa Leste da América do Sul, mas não em caráter exclusivo, já que a rotação dos mercados e a agilidade das mudanças era uma característica do gerenciamento
Houlder.
Foi assim que ambos os vapores foram utilizados alternativamente em todas as linhas da armadora proprietária. No período de 1891-1892, transportaram, em inúmeras viagens, cimento, granitos, ferro trabalhado e
carvão, que eram destinados às obras de construção do porto moderno de Buenos Aires.
Port Arthur sob bombardeio japonês
Foto: História do Século XX, volume 1, 1976, Ed. Abril, S.Paulo/SP
Outro fato digno de nota desse par de vapores foi a sua utilização no decorrer de 1905, afretados ao Banco Russo-Chinês para o transporte de animais vivos e carne congelada da Austrália para Vladivostok. Ao
chegarem a esse porto russo, aí ficaram ancorados por vários meses, servindo de depósito congelador de carnes, carnes estas destinadas ao consumo das tropas russas empenhadas no conflito russo-japonês.
Lembre-se aqui de que em 8 de fevereiro de 1904 forças navais japonesas haviam atacado a frota russa no ancoradouro de Port Arthur, iniciando-se assim o conflito entre as duas nações, conflito que terminaria em
setembro de 1905, com a assinatura do tratado de paz de Portsmouth.
Incêndios em port Arthur, Manchúria, depois do bombardeio da frota japonesa
Foto: História Ilustrada do Século XX, Publifolha, 1996, S.Paulo/SP - L'Ilustration/Sygma, Paris
Declínio - O bom andamento dos negócios da Houlder declinou a partir do desaparecimento do fundador. Na época deste acontecimento (1901), o
mundo dos negócios marítimos na Grã-Bretanha passava por um período de forte ebulição, com diversas tentativas, entre os principais grupos, de take-over (falências).
Contemporaneamente, este mundo era afetado por uma recessão que atingia o setor de transportes marítimos, recessão esta causada pela excessiva tonelagem mundial em relação à demanda.
Estes fatores externos refletiram-se nos negócios da Houlder e foram agravados pelo comportamento dos membros da família, que não souberam manter a coesão necessária para fazer face às
dificuldades.
Assim, ano após ano, o declínio financeiro da empresa aumentou, culminando com a venda de seus ativos em julho de 1911 ao poderoso grupo, também britânico, da Furness Withy. Estes novos
proprietários decidiram então manter o nome Houlder como também os dos 19 vapores que por esta última eram controlados e operados.
Primeira Guerra - Entre esses vapores, estava o Hornby Grange. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), todos os navios batendo bandeira britânica e possuindo capacidade de carga refrigerada
foram requisitados pelo governo de Sua Majestade e o Hornby Grange não escapou a esta regra.
Assim, a partir de junho de 1915, controlado pelo Gabinete da Guerra e pelo Departamento do Comércio, o ainda valioso navio foi utilizado numa multiplicidade de viagens e rotas diferentes, ora transportando
soldados, ora transportando carnes para a alimentação destes em terra firme e em campanha de guerra, mas sempre sem sofrer nenhum ataque submarino ou outro dano bélico.
Ao fim do conflito, desgastado pelo uso e obsoleto por idade, foi colocado à venda pela Furness-Houlder, sendo adquirido pelo armador espanhol P.R. Forner e rebatizado Augustina Forner.
Com esse novo nome, o ex-Hornby Grange prestou serviço por bem mais nove anos, sendo utilizado tão somente como tramp steamer (cargueiro sem rota predefinida) até 1928, quando foi demolido no Porto de Barcelona (Espanha). |