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ROTA DE OURO E PRATA
Navios: Douro

1864-1882

Por volta de meados do século XIX, os Estados Unidos eram, sem dúvida nenhuma, os maiores produtores e exportadores de algodão no mundo. Quase a totalidade da produção norte-americana provinha dos estados sulinos e do trabalho braçal dos escravos negros. Em 1860, eleito presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln, homem político bem conhecido pelas suas idéias abolicionistas e que depois havia incluído no seu programa de trabalho presidencial a meta da abolição da escravatura, eclodiu grave crise política no país.

Em dezembro daquele ano, os estados sulistas, fortemente dependentes, nas suas economias, do trabalho escravo, rebelaram-se contra o governo federal, criando uma confederação de estados independentes de Washington. Tal ato de secessão provocou, meses mais tarde, a guerra civil norte-americana, que se prolongou até 1865. Como conseqüência deste conflito interno e do bloqueio dos portos da Confederação Sulista por parte da Marinha constituída, a produção de algodão e a sua exportação cessaram quase por completo. A nação que mais importava essa matéria-prima era a Grã-Bretanha, detentora de um grande número de teares e grande produtora de tecidos.

Os fabricantes britânicos, privados do algodão norte-americano, passaram a importar do Egito e da Índia, via o único caminho marítimo da época para esses dois países: o Mediterrâneo para o primeiro e os oceanos Índico e Atlântico para o segundo. A produção egípcia não era, entretanto, suficiente e a indiana ficava muito encarecida pelo frete marítimo.

Esses fatores levaram os agentes comerciais britânicos a procurarem um país fornecedor alternativo e foi assim que o Brasil de então, já produtor em quantidade razoável, pôde aumentar a produção e vendê-la à Europa, sobretudo para a França e a Grã-Bretanha. O algodão brasileiro era escoado para as ilhas britânicas pelo Porto de Pernambuco, que recebia a produção deste Estado e de quatro outros estados do Nordeste brasileiro (Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará).

Expansão - Quase todos os armadores europeus presentes então na rota de ouro e prata puderam se beneficiar do aumento de carga em direção Sul-Norte da linha, provocado pelas exportações suplementares de café e algodão. A Royal Mail Steam Packet (RMSP), já presente na linha do Brasil e do Prata desde 1851, rapidamente percebeu a necessidade de oferecer, a esses novos mercados de exportação brasileira, navios maiores e mais velozes do que os que existiam na época.

Programando a sua expansão, a Royal Mail decidiu, em fins de 1863, mandar construir dois vapores para a linha da costa leste sul-americana e, assim, foram dadas ordens aos estaleiros Caird & Co., de Greenock, e Millwall Iron Works para a construção de um navio em cada estaleiro. O Caird & Co. – que já havia sido responsável pela construção de outros vapores encomendados pela Royal Mail (quatro dos 11 pioneiros, de 1841, e o Atrato, de 1853) – construiu o Douro, enquanto o Millwall Iron Works produziu o Rhone.

Esses vapores, baseados em um mesmo desenho de prancha, foram equipados com um único hélice e com chaminé inclinada. Possuíam casco de ferro de linhas afinadas e alongadas, dois mastros com velas auxiliares e maquinário de propulsão com dois cilindros invertidos. Diga-se de passagem que foram os primeiros navios encomendados pela Royal Mail a serem dotados de hélice (em vez de rodas laterais de pá).

O par Douro e Rhone foi lançado ao mar, respectivamente, em dezembro de 1864 e fevereiro de 1865. Em julho deste último ano, o Douro saiu de Southampton para o Rio de Janeiro em sua viagem inaugural, via escalas em Lisboa, Madeira, São Vicente, Pernambuco e Bahia. O Rhone, que seguiria em outubro de 1865, teve vida útil de apenas dois anos, sendo destruído por um furacão de grande intensidade, que irrompeu sobre as Ilhas Virgens em fins de 1867.

Argentina direto - Caberia ao Douro, sob o comando do capitão Woolward, a distinção de ser o primeiro vapor da Royal Mail a realizar a travessia completa entre Southampton e Buenos Aires, via portos intermediários, eliminando-se, assim, o fastidioso transbordo de carga e de passageiros, no Rio de Janeiro, para o vapor secundário, que, até então, ligava a capital brasileira à capital argentina. Este novo serviço, inaugurado em junho de 1869, representava um apreciável ganho de tempo aos passageiros dos portos do Rio da Prata e colocava a Royal Mail em pé de igualdade com sua grande concorrente da época, a armadora francesa Messageries Maritimes.

O Douro tornou-se um navio de linha extremamente conhecido nos portos de escala da Rota de Ouro e Prata, rota que serviu praticamente sem interrupção por bem 16 anos. Durante este longo período de serviço, o Douro hospedou a bordo inúmeras personalidades, entre as quais se destacaram o imperador Dom Pedro II e a imperatriz, em viagem do Rio de Janeiro a Lisboa, em 1872. Naquele ano, o serviço sul-americano da Royal Mail passou da freqüência mensal à quinzenal, com saídas de Southampton a cada dia 9 e 24 do mês. Tal incremento foi possível graças à entrada em linha dos vapores Neva, Boyne, Ebro, Tiber e Liffey.

Dez anos após a troca do seu maquinário propulsor original por um outro, do tipo compound, o Douro chegou a um inesperado fim: colisão, em plena navegação, com outro vapor. O desastre ocorreu em 1882, quando, sob o comando do capitão E.C. Kemp, o Douro encontrava-se em passagem de Lisboa a Southampton. Na noite do dia 1º para o dia 2 de abril, a cerca de 30 milhas ao norte do Cabo Finisterre e com boa visibilidade, o vapor da Royal Mail foi abalroado pelo navio Yrucac Bat, registrado em Bilbao e que viajava de La Coruña para Havana.

O Douro foi atingido a toda força pela proa do navio espanhol, que lhe abriu, a meia-nau, a boreste, uma larga brecha no casco. A violência do choque foi tal que o Yrucac Bat naufragou quase imediatamente, com perda de metade das 66 pessoas da bordo. O comandante Kemp logo se deu conta da gravidade da situação e ordenou abandonar o navio. A colisão havia provocado a perda de dois botes salva-vidas do Douro, porém a tripulação conseguiu rapidamente baixar os restantes sete, salvando-se assim quase a totalidade dos passageiros, com exceção de seis pessoas.

Transcorrida apenas meia hora do momento do abalroamento, o Douro desapareceu nas profundezas do Atlântico, levando consigo 15 dos seus oficiais e tripulantes, inclusive o capitão Kemp, que, em respeito à tradição dos homens do mar, recusou-se a abandonar o seu navio. Passando pela área onde havia ocorrido a trágica colisão, o vapor britânico Hidalgo, da Wilson Line, recolheu um total de 144 pessoas, que se encontravam nos diferentes botes salva-vidas arriados. Destas, 32 do vapor espanhol e 112 do Douro.

Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 11/2/1996