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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO IDIOMA
Reforma ortográfica
Matéria publicada no site santista Artefato
Cultural, edição de 13 de junho de 2008:
Imagem: captura de tela
do site
IDIOMA
Nova ortografia, nova
orthographia?
E na língua, na qual quando imagina
Com pouca corrupção crê que é a Latina
(Lusíadas, I, 33)
Carlos Pimentel Mendes
(*)
Corrupção ou corrução? Nem os versos de Camões escapam da reforma
ortográfica que está chegando, em meio a muitas dúvidas dos dois lados do Atlântico... e ainda mais além. Excepcional ou
excecional? Perentório ou peremptório? Recepção ou receção? Espectador ou espetador? E mais: sekestro, sequestro ou seqüestro?
Por uma falha diplomática e jurídica, previu-se que o Acordo Ortográfico entraria em vigor assim que três países o ratificassem,
como se isso dispensasse da ratificação os quatro demais países lusófonos que o elaboraram. E em todos eles, o que mais se teme
é que esta nova tentativa de homogeneização venha a empobrecer ainda mais o idioma, como no caso das consoantes mudas ou não
articuladas em Portugal, mas que são normalmente pronunciadas no Brasil. Os brasileiros não falam em corrução, e espetador tem
outro sentido nas terras sulamericanas. E tais questões precisam ser resolvidas até que seja elaborado um vocabulário
ortográfico comum da língua portuguesa, sem o qual o acordo se torna impraticável.
Existe aliás uma falácia, de que apenas zero-vírgula-algo mudará, baseando-se na quantidade de palavras cuja grafia será
alterada. Não se leva em conta a relevância dessas palavras no uso cotidiano. Talvez não importe muito mudar ou não a forma de
escrever "hiper-requintada", mas no caso de palavras de uso constante, como "crêem e vêem", retirar os acentos criará inúmeras
dificuldades aos usuários ou utentes do idioma... Na verdade, a impressão que muitos têm é que nesta história o que menos
importa é o idioma: o que está em jogo é um mercado editorial a ser dominado por brasileiros ou portugueses. Dinheiro, apenas.
História antiga - As primeiras tentativas de consolidar uma gramática da língua portuguesa são
posteriores à própria vinda de Martim Afonso a São Vicente, pois ocorreram em 1536 com Fernão de Oliveira e três anos depois com
o tratado elaborado por João de Barros. E duraram pouco: já em 1547 a Inquisição começava a agir, listando as duas obras no
index de livros proibidos, além de prender e condenar Fernão de Oliveira pela tentativa de valorização do português frente ao
latim – o que era considerado uma heresia, por incitar ao protestantismo. E a promulgação em 1564 do Concílio de Trento
intensifica essa repressão intelectual, especialmente em Portugal. Não esquecendo que de 1580 a 1640 Portugal esteve sob
dominação espanhola, e então este idioma era o preferido na comunicação escrita, mesmo que o português falado persistisse.
No Brasil, usava-se o latim e o tupi-guarani, ou a chamada língua geral: só em 1770 o português foi instituído como língua
oficial da então colônia portuguesa. E só por essa época começa também a ser feita uma tentativa de padronização ortográfica,
pois até então os padrões de escrita do decadente idioma português eram quase que individuais, mesmo porque o espanhol, bem mais
avançado nesse aspecto, era usado preferencialmente (junto com o latim) na produção culta lusa desse período.
Já se comentou que um estudo sobre a Carta do Descobrimento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, teria levado os pesquisadores à
conclusão de que o brasileiro pronuncia as palavras com a sonoridade original, de modo mais fiel ao que se encontrava o idioma
na época de Cabral, do que os atuais portugueses, que desde então "fecharam a boca", passaram a falar por entre os dentes,
desaparecendo assim o "p" de corrupção e o "c" de espectador, por exemplo. Talvez por ser mais melodiosa, a pronúncia brasileira
foi a preferida em Timor Leste, quando se procurou recentemente restaurar naquele novo país o uso deste idioma, e em alguns
países africanos ensaia-se enveredar por este mesmo caminho.
Aliás, no quesito fidelidade, os portugueses enfrentam agora também os galegos, sempre prontos a lembrar que o idioma luso
nasceu na Galiza ou Galícia, que não é parte do território português...
Etimologia e fonética - Ora, a ortografia tem o objetivo de
permitir o correto registro escrito das palavras pronunciadas, tentando (mas nunca conseguindo totalmente) transcrever os sons
de uma língua. Na medida em que ela se afasta da pronúncia, ou das variantes de pronúncia, torna-se artificial, adotando como
base a etimologia das palavras. Surgem daí duas vertentes de pensamento: uma, de que é necessário padronizar a grafia,
defendendo talvez mais uma etimologia comum, mesmo à custa do abandono de algumas formas verbais em uso, o que implica num
empobrecimento da expressividade escrita do idioma. Outra, a de que é necessário contemplar na norma as várias formas verbais em
uso, mesmo à custa de se criar exceções de todos os tipos, dificultando talvez o aprendizado.
O idioma português se debate entre as duas correntes, e seus estudiosos, oscilando entre fonética e etimologia, parecem preferir
o pior de cada um desses mundos, ao proporem regras que tornam a ortografia ao mesmo tempo mais artificial e mais complexa.
Tão complexa, que até algumas atas (actas...!) da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) são escritas em duas
"línguas": a forma usada em Portugal e a usada no Brasil. Se as normas lingüísticas contemplassem como válidas as duas formas,
em qualquer uma delas o documento estaria bem escrito, sem reparos...
Regras e exceções - Se o português já é considerado uma língua "difícil" - por ter demasiadas regras, cada uma delas com
inúmeras exceções -, ditar mais regras, sem um estudo real das condições de uso do idioma, só tende a complicar o seu
aprendizado e distanciar ainda mais a norma escrita da prática falada, O que se tenta é mais do mesmo: eliminar diferenças,
forçando situações e acomodando-as nas exceções. Complica-se a norma, com a desculpa de simplificar a escrita. Sempre critiquei
os problemas criados pela eliminação do acento diferencial, deixando a interpretação do sentido das palavras ao contexto em que
se encontram (como se o entendimento do contexto não dependesse da grafia das palavras...).
Se a idéia era simplificar, menos dolorosa seria a eliminação de acentos irrelevantes, indicadores de sons que só são escritos e
pronunciados de uma forma. Entre corrução e corrupção, eu ficaria com a eliminação do til, pois ninguém fala em português "corruçáo"
ou "corrupçáo". Não o fizeram todavia, os tratantes tratadistas.
Dissonante - O trema, que se quer eliminar, tem entre nós a função de sublinhar a pronúncia da letra "u", e por isso, se
o objetivo é simplificar, até poderíamos agüentar sua eliminação, sem grande prejuízo, mas se o objetivo for ressaltar a
existência de um som diferente, então, por ser acento diferencial, o trema deveria ser mantido, quase que pela mesma razão que
determina à crase a manutenção do acento grave. Como entender que, eliminando-se os diferenciais (com as exceções que sempre
acompanham a regra...), manteve-se o trema, e agora - quando o foco de suas atenções está no som das palavras - queiram fazê-lo
desaparecer?
Será isso uma preparação para se eliminar também a padronização dos sons das letras, facilitando que nos nossos dicionários o
"a" ganhe som de "e", como no risível neologismo "email" - que os dicionaristas (não dá mais para chamá-los de filólogos, pois
suas amizades literárias se restringiram ao cifrão) incluíram como palavra portuguesa, apenas para dizer que seus produtos são
mais completos, num evidente apelo de venda? Desde quando "a" tem som de "e" em português? E pode-se dizer que "mouse", lido
como "maus", é uma palavra do Português, ignorando todas as regras fonéticas? Parece entretanto ser esta a "seriedade" que
preside os trabalhos da nova reforma, o que a desabona antes mesmo de uma primeira análise das mudanças propostas...
Quanto à reintrodução das letras w, k e y, depois que duas gerações de Valquírias vieram ao mundo, quer-se permitir que suas
descendentes possam novamente ser Walkyrias. Que assim seja, mas o exemplo mostra como faltam estudos aprofundados sobre o
idioma, que elimina letras e as continua usando, em unidades de peso e medida, por exemplo. E, se faltam estudos lingüísticos no
Brasil e em Portugal, eles praticamente inexistem nas ex-colônias africanas, que também têm o direito a que sejam respeitadas as
suas pronúncias no contexto lusófono.
Então, se os acordos ortográficos anteriores até hoje não foram devidamente assimilados – nem no Brasil, nem em Portugal -,
sendo por vezes sumariamente rejeitados depois por algum dos países, querer impor mais uma série de regras aos luso-falantes só
dificulta o aprendizado e a análise literária. E encarece ainda mais a produção literária, pela necessidade de adotar novas
regras, novos programas de correção de texto, e de se adaptar às novas regras obras já impressas e às vezes ainda nem
distribuídas no mercado. Os mais idosos terão nova barreira a enfrentar, como sempre, para introjetar as novas regras, e os
professores, que muitas das vezes nem aprenderam as regras atuais, terão que incorporar as novidades... com todo o caos
imaginável...
Nesse vale-tudo que de nada vale, como saber rapidamente se um texto escrito em 1930 reproduzia fielmente o vocabulário da época
ou se determinada palavra nunca existiu, sendo apenas um erro de impressão? Se o autor do texto era fino cultor do idioma,
talvez propondo um neologismo, ou mero escrevinhador perpetrando erros significativos por falta de luzes intelectuais mais
brilhantes?
Caminhos – Em vez de reenquadrar o idioma em novas regras, seria preferível conhecer-se melhor como ele é
usado, e então, sim, balizar e melhorar os caminhos principais, facilitando o trânsito por eles, de forma a que outras trilhas
menos adequadas sejam simplesmente abandonados pelo próprio desuso. Criar regras a partir do uso e então cuidar para que se
consolidem, que não ocorram desvios que inviabilizem a normatização.
No caso dos estrangeirismos, por exemplo, melhor fariam os cultores do idioma se, usando as próprias regras já existentes,
apontassem alternativas em português para as novas
expressões surgidas, ou ao menos apontassem formas de aportuguesamento das novas palavras estrangeiras, acomodando-as à
lusofonia, do que abandonando o idioma a essas quebras cada vez mais comuns de seu regramento, ao mesmo tempo em que tentam
quebrar usos já consagrados pela tradição secular, mesmo que diferentes de uma região para outra.
Não se trata de engessar o idioma, como supõem os contumazes detratores desta idéia, mas de fazer como o jardineiro que, com
algumas estacas bem colocadas, orienta o crescimento da tenra planta, ajudando-a a se desenvolver.
Se os corrutos de Portugal preferem descolar com seus aviões, enquanto os corruptos brasileiros decolam, isso é menos
prejudicial (e talvez mais enriquecedor do idioma) do que permitir os maus usos do mouse em meio aos emails da vida...
(*) Carlos Pimentel Mendes é jornalista, editor do Jornal Eletrônico Novo Milênio
(www.novomilenio.inf.br) e diretor para Internet do Movimento Nacional em Defesa da Língua
Portuguesa (MNDLP). |
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