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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Bilingüismo literário nos séculos XVI a XVIII

Monografia publicada na Internet pela autora, Maria Clara Paixão de Sousa, conforme consulta feita ao site em 7 de junho de 2008:

Reflexões sobre a Escrita Portuguesa no período de Bilingüismo Literário - séculos 16 a 18

Maria Clara Paixão de Sousa

 Índice

Introdução

Este artigo representa parte do projeto de pesquisa Mudança Lingüística e Fatores Extra-Gramaticais: o caso do português clássico, em que reflito sobre o papel dos fatores extra-gramaticais na pesquisa diacrônica gerativista, especificamente, no que concerne a interpretação de dados quantificados a partir de textos escritos em épocas passadas como representativos de mudanças gramaticais. Buscando fundamentos na própria teoria gerativista sobre a mudança lingüística, procuro justificar a inclusão destes fatores como variável nas pesquisas.

Partindo de uma revisão sobre a evolução do posicionamento de clíticos na história do português, defendo que uma abordagem alternativa desta evolução, que inclua a consideração de fatores extra-gramaticais, pode contribuir para a melhor compreensão das mudanças sofridas por esta língua. Neste artigo, apresento um ensaio sobre a produção escrita na época clássica em Portugal, com o qual pretendo esboçar indicações sobre como os fatos da história externa podem auxiliar na compreensão dos padrões formais atestados em obras escritas no período clássico.

Com a reflexão sobre a história das obras, procuro sustentar que no período entre a renascença e o iluminismo, a situação do português enquanto língua escrita e de cultura permite pensar que os textos produzidos então refletem, na variedade de padrões sintáticos - assim como, por exemplo, gráficos - a exposição a diversas influências extra-gramaticais.

Mais especificamente, diria que fatores históricos importantes expõem a escrita portuguesa entre os séculos 15 e 18 à influência da escrita castelhana, o que a faz apresentar, quanto à colocação de pronomes clíticos, variações que não podem ser atribuídas apenas a um estado de mudança gramatical.

Em contraste, a partir de meados do século 18, mudanças importantes no ambiente cultural português irão determinar um novo contexto, em que a língua portuguesa passa por um processo institucionalizado de normatização, e no qual ela já não está exposta à influência do castelhano como língua de prestígio. Defendo que esta perspectiva contribua para uma melhor interpretação da representatividade dos textos clássicos no que se refere a mudanças gramaticais na língua falada.

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1. Aspectos gerais do ambiente lingüístico em Portugal, da renascença ao iluminismo

1.1 Formação e desenvolvimento da língua nacional: humanismo e contra-reforma

O Renascimento, no contexto da expansão política e econômica por que passa Portugal, representa um momento de glória da cultura portuguesa. Em contraste, o período que compreende as últimas décadas do século 16 e o século 17 tem sido considerado - por seus contemporâneos e por seus historiadores - um período decadente da cultura do país.

O advento da contra-reforma, a crise econômica que acomete a expansão ultramarina e a anexação do reino aos domínios de Castela significaram uma ruptura que reflete-se negativamente sobre o prestígio da língua portuguesa enquanto veículo de cultura, como procurarei defender mais adiante.

Neste momento, importa descrever o estágio em que se encontra a língua portuguesa no que tange seu estatuto de língua nacional no momento em que, como veremos, uma língua estrangeira ameaçará seu prestígio em seu próprio território.

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1.2 Renascimento e contra-reforma: a "morte da alma moderna" em Portugal

Compreendido entre fins do século 15 e meados do século 16, o Renascimento pode ser descrito, resumidamente, como o momento no qual os principais países da Europa Ocidental abandonam as estruturas - econômicas, sociais, culturais - feudais e entram na fase moderna.

Em termos econômicos, marcam o nascimento da Idade Moderna o surgimento da sociedade mercantil, com a conseqüente possibilidade de acumulação de capitais, que por sua vez serve de base para a formação dos Estados nacionais.

Na esfera cultural, da extensa gama de aspectos que marcam o período, importa destacar aqui a retomada da cultura greco-latina sob um aspecto radicalmente distinto da Escolástica medieval, isto é, valorizando o saber sem diretrizes teológicas.

Tanto do ponto de vista político-econômico como cultural, a época marca a crise do poder da Igreja. No que tange a cultura, os humanistas combatem o aristotelismo escolástico, descartam também a exegese a-histórica das escolas medievais, e questionam a "tutela clerical" (Saraiva 1996:174) sobre a cultura em geral.

No campo político-econômico, uma das conseqüências do advento do capitalismo mercantil foi o conflito entre o Estado e a Igreja - o poder central medieval - em diversos países europeus; em alguns deles, o conflito resulta na separação de Roma (caso da Inglaterra de Henrique VIII), em outros, a separação Estado/Igreja; de um modo geral, a hegemonia da Igreja Romana é posta em cheque.

A reação, a partir do Concílio de Trento, toma a forma de um fortalecimento dos dogmas católicos; a partir deste momento, nas palavras de António Saraiva, "cortam-se as pontes" (Saraiva 1996:170) entre os dois "fragmentos" da Europa cristã, o protestante e o católico - permanecendo a Península Ibérica como o "mais forte baluarte do mundo católico":

No fragmento católico desenvolve-se uma reação conhecida pelo nome de "Contra-Reforma", que consiste, sob seu aspecto negativo, numa repressão por meios coactivos de todas as manifestações culturais suspeitas de heterodoxia, incluindo manifestações toleradas durante épocas anteriores; e sob o aspecto positivo, numa tentativa de recuperação da Escolástica e no desenvolvimento de formas exteriores de devoção."

(Saraiva 1996:170)

Em Portugal, a contra-reforma significa uma ruptura profunda. O renascimento, no país, remete ao reinado dos primeiros reis humanistas, como D. Afonso V ou D. Manuel, e tem seu apogeu na metade do século 16. No período áureo dos descobrimentos, os portugueses tiveram um papel central entre os Europeus, especialmente no que tange as inovações técnicas ligadas à navegação e aos conhecimentos geográficos.

A vida cultural portuguesa é marcada, então, pelo desabrochar de uma cultura literária fomentada pela Coroa, que provê incentivos generosos em forma de mecenato, promove a vida literária no Paço, e reforma a Universidade. Em sua segunda metade, porém o século 16 vê ruir bruscamente a glória cultural portuguesa.

O advento da contra-reforma e da crise econômica e política - esta última, marcada pela anexação do país aos domínios de Castela - mergulha a cultura portuguesa na obscuridade. A mudança no ambiente cultural é brusca e profunda, vindo a afetar diretamente a produção literária. Nas palavras de Saraiva,

(...) entre as duas metades o contraste é flagrante: ao optimismo, confiança e audácia dos que escreveram cerca de 1540 corresponde o sentimento de crise - assumindo às vezes formas pungentes - dos homens que escrevem cerca de 1570; e o retraimento, produto da prudência, do desânimo, por parte dos que se lhes seguem.

Como já sugeri, a profundidade da crise cultural da segunda metade do século 16 atribui-se à conjunção da ação da Igreja pela contra-reforma e a anexação ao reinado dos Felipes. Ainda segundo Saraiva,

Aos efeitos da contra-reforma vieram juntar-se, a partir de 1581, os da união com Espanha. Do primeiro resultou, como apontámos, murcharem as promessas do Humanismo. O segundo teve como conseqüência o desaparecimento da corte de Lisboa, o foco literário mais estimulante do país.

(Saraiva 1996:181)

A inexpressividade portuguesa vai perdurar ao longo do século seguinte, com a ação continuada dos mecanismos da contra-reforma em um período no qual outros países da Europa viviam grandes revoluções científicas. Já o observava, por exemplo, Antero de Quental, em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, conferência citada por Hernani Cidade (Cidade 1995), de que reproduzo aqui um trecho em que, após listar os grandes nomes da ciência da época, pergunta Quental:

Onde está, entre os nomes destes e de outros verdadeiros heróis da epopéia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português se liga à descoberta de uma grande lei científica, de um sistema, de um facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morreu dentro de nós completamente.

As palavras de Antero de Quental são, pode-se dizer, emblemáticas do que se tem dito sobre o período pós-renascentista em Portugal – a morte da alma moderna. E isto tem sido relacionado à ação da contra-reforma e aos problemas econômicos e políticos sofridos pelo país no período. Hernani Cidade aponta para o fato de que

Foi sem dúvida um mal a subordinação da vida portuguesa peninsular, por aproximadamente dois séculos, a uma pedagogia sobretudo atenta à heterodoxia, e por sessenta anos, a uma corte estranha, mais empenhada em explorara as riquezas de além-mar e sustentar a hegemonia política na Europa, do que em criar e desenvolver a riqueza nacional.

(Cidade 1995:119)

Importa notar que a decadência cultural é identificada, por Quental, tanto em Portugal como na Espanha seiscentista; é de fato na Península como um todo que a ação da Igreja no sentido contra-reformista se faz sentir. Entretanto, é possível dizer que, se ambos os países encontram-se em atraso em relação à Europa, Portugal encontra-se ainda mais decadente que a Espanha.

Isto é fato no que se refere à política, como provam os oitenta anos em que o país foi regido pelos reis espanhóis; e é uma hipótese forte no que se refere à cultura letrada, como testemunham os dois séculos e meio de bilingüismo luso-espanhol, quando o castelhano é adotado pelos portugueses cultos.

A diferença entre o impacto da contra-reforma na Espanha e em Portugal pode ser creditada à força da cultura letrada castelhana ainda sediada na corte, enquanto em Portugal, paralelamente à ação inquisitória, o ambiente literário sofre as conseqüências da dominação política e cultural da Espanha. Nas palavras de Saraiva,

A literatura castelhana desta época sofre também, mas (...) com muito menor intensidade, a influência da contra-reforma. Apresenta numerosas sobrevivências medievais a que o esplendor da corte espanhola e o gosto de que se rodeiam os "grandes" de Espanha dão por vezes vida nova e maior brilho.

(Saraiva 1996:182)

Assim, na crise que se segue ao apogeu da cultura portuguesa no início do quinhentos, dois fatores fundamentais articulam-se: a reação contra-reformista e a ascendência cultural castelhana. No que tange a afirmação do português como língua nacional de cultura, as conseqüências foram importantes, como procuro descrever a seguir.

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1.3 Conseqüências para a consolidação da norma escrita portuguesa

A relevância lingüística destas considerações sobre a incidência da contra-reforma no ambiente cultural português justifica-se por suas conseqüências sobre a formação da norma culta institucional para o português.

Como é sabido, no final da Idade Média os romances falados passam a afirmar-se como línguas escritas e de cultura; o francês, o italiano, o castelhano, assim como o português, passam, por diferentes processos, ao estatuto de línguas nacionais. Neste caminho, os idiomas sofrem padronizações – seja, como é mais evidente, no aspecto gráfico, seja no aspecto lexical, morfológico e sintático.

Já Saussure, ao propor a dicotomia língua/fala, afirmando ser a escrita uma forma de fixar a linguagem - "A língua evolui sem cessar, ao passo que a escrita tende a permanecer imóvel." - ilustra a discussão pela evolução ortográfica do Francês, notando que, se até determinado momento da Idade Média as grafias parecem capturar a pronúncia da época, "a partir do séc. XIV a escrita permaneceu estacionária, ao passo que a língua continua sua evolução".

Gallo (1992) procura investigar, de um ponto de vista discursivo, os determinantes desta estabilização observada por Saussure, e afirma que a partir do séc. 14, a escrita vai estabelecer na Europa ocidental sua relação de dominação em relação à língua falada, no início do processo histórico que leva à hegemonia da escrita na sociedade burguesa.

Na Idade Média, o latim era a língua escrita por excelência; as línguas vulgares foram se constituindo como variedades orais. No decorrer da época medieva estas passam a ser transcritas – seja em forma de documentos jurídicos ou historiográficos, seja como literatura. Passam, então, por um processo gradual de legitimação que inclui uma homogeneização das formas de escritura (como atestam Saussure e, no caso do português, os diversos estudiosos da época medieval que observaram a gradual diminuição nas discrepâncias de grafia durante a transformação do 'romanço') e a escolha de uma variedade padrão a ser transcrita.

Este processo de 'padronização' das variedades vulgares medievais vai culminar na formação das línguas nacionais no fim da Idade Média. Com isso, as línguas vulgares vão gradualmente passar a ter o valor, antes reservado ao latim, de língua de cultura - passando, neste processo, a serem legitimadas por uma norma instituída com as primeiras gramáticas.

A formação do português como língua nacional está, naturalmente, contextualizada neste processo mais geral - mas guarda especificidades importantes relacionadas a particularidades históricas. Uma delas a questão da eleição de uma variedade padrão a partir do recorte social, mais que regional – ao contrário, por exemplo, da história da formação do espanhol, segundo Fontana (1993).

Um segundo ponto importante é que, conquanto a evolução do romance português no período medieval e no renascimento humanista siga as linhas gerais da história das demais línguas românicas, com o advento da contra-reforma a situação do português como língua nacional apresenta algumas singularidades.

No início do século 16, é no contexto do humanismo que surgem as primeiras gramáticas do português: a de Fernão de Oliveira em 1536, e a de João de Barros em 1539. As gramáticas podem ser vistas como sintomas da valorização da língua vulgar como língua de cultura; exaltado como língua perfeita entre as românicas, por se aproximar mais do latim, e como elemento de expansão da cultura portuguesa nas colônias, o português foi estudado e normatizado por estes dois primeiros gramáticos, sob a influência do ambiente científico da época, que começava a se distanciar da escolástica (e portanto, da hegemonia da igreja na esfera do saber escrito em latim) e se aproximava do racionalismo humanista – a exemplo do que ocorria nos demais países da Europa ocidental. O português é elevado, assim, à mesma categoria das línguas clássicas, merecendo compêndios gramaticais completos.

A incipiente reflexão sobre a língua vulgar, manifestação do breve ápice da cultura humanista em Portugal e da importância da unidade lingüística para a unidade nacional e para a expansão ultramarina, será interrompida pelo advento da contra-reforma e da crise política e expansionista.

A ação da Igreja no contexto da contra-reforma marcará profundamente o processo de legitimação da norma do português por instrumentos institucionais. Com o estabelecimento definitivo da Inquisição em 1547, uma estrutura censória será desenvolvida, e atingirá o todo da produção literária e científica no país. Data da mesma época o primeiro rol de livros proibidos. Saraiva relata que as obras tinham que passar por três instâncias censórias antes de serem licenciados, com ou sem alterações, pelo Santo Ofício, o Ordinário eclesiástico e o Paço.

A gramática de Barros foi listada no index de obras proibidas; Fernão de Oliveira foi preso e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício; no contexto da contra-reforma, a valorização das línguas vulgares frente ao latim constituía heresia, por incitar ao protestantismo. A partir da promulgação, em 1564, do Concílio de Trento, a repressão intelectual intensifica-se:

O governo português (...) calou os humanistas e extinguiu a geração dos gramáticos e letrados anti-escolásticos, que lutaram pelas reformas universitárias no início do século XVI

(Hackerott 1985:30).

Portugal foi o único reino da Europa em que as decisões do Concílio de Trento (1564) foram promulgadas sem nenhuma restrição. O compromisso da cultura religiosa escolástica com os dogmas católicos e a ação inquisitorial pode ser descrito como extremo no país, a ponto de a reflexão gramatical sobre a língua vulgar passar a ser considerada uma heresia.

Além disso, prevalece nas universidades portuguesas uma pedagogia medieval e ortodoxa. Neste ambiente, a reflexão gramatical fica limitada às línguas clássicas - e permanece isolada da reflexão de inspiração racionalista nascente em outras partes da Europa, restringindo-se à tradição escolástica medieval. De fato, como aponta Saraiva,

A Universidade de Coimbra (...) se tornou um dos principais focos da neo-escolástica no império espanhol e nos restantes países da contra-reforma (Saraiva 1996:181)

Assim, o latim permanece, mesmo após o renascimento, como a língua da ciência em Portugal - e o português, ao contrário do que ocorre com outras línguas nacionais européias, não é alçado ao estatuto de língua de ciência na Idade Moderna. Mesmo nas escolas menores, o modelo educacional jesuíta impedia o ensino de língua materna, que só será instaurado na educação dos "meninos" por ocasião das reformas pombalinas no século 18.

Resta, à língua vulgar, apenas a atenção dos compêndios ortográficos; depois de João de Barros e Fernão de Oliveira, o ambiente da contra-reforma limita o debate lingüístico sobre a língua vulgar às questões de grafia.

As duas gramáticas produzidas na segunda metade do século (em 1574 por Pero Magalhães de Gândavo e em 1595 por Duarte Nunes Leão), assim como as produzidas no século seguinte, sob a égide da Inquisição, diferem das anteriores por dissociarem-se do modelo humanista; seriam melhor classificadas, de fato, como tratados ortográficos que gramáticas. Ao contrário, as gramáticas de Barros e Oliveira apresentam capítulos sobre a sintaxe – concordância, regência, casos morfológicos, e no caso do primeiro, até coordenação de sentenças.

A análise limitada à formalização da ortografia, em Gândavo e Leão, reserva o estudo da gramática e da retórica para o latim, manifestando a preocupação de não equiparar a língua vulgar à língua da Igreja. Apenas no século 18 as gramáticas voltarão a tratar mais estruturadamente das questões propriamente gramaticais, como a morfologia ou a sintaxe (Fávero 1996). Mas mesmo no que se refere à grafia, não se pode falar em uma norma institucionalizada nos séculos 16 e 17.

Também a política lingüística nas colônias exemplifica a situação institucional do português neste período. No Brasil, do século 16 ao final do 17, não havia uma política de expansão da língua da metrópole; combinado ao modelo de colonização adotado neste período, este fato significou que neste período o português não era a língua mais falada na América Portuguesa. Nos centros urbanos avançados do norte e nordeste, ele conviveu com o francês e o holandês; no sudeste, era restrito ao uso jurídico e escrito, e a maioria da população falava uma das línguas gerais tupi ou guarani.

As poucas escolas existentes em todo o território eram jesuítas e lecionavam em latim; e a catequização dos índios, no primeiro período colonial, foi feita ou nas línguas indígenas (amplamente estudadas e documentadas pelos jesuítas, que traduziram o catecismo do latim diretamente para o tupi-guarani), ou em língua geral (Vilalta 1998). É apenas com um decreto de 1770 que o português é instituído como língua oficial do Brasil, no contexto da reforma pombalina.

Para exemplificar a situação anterior à reforma educacional do final do século 18, observamos que a Arte da Gramática Portuguesa de Antonio José dos Reis Lobato, publicada em 1770 (em oferecimento a Pombal) e a primeira a ser adotada oficialmente no ensino da língua nacional, defende o conhecimento da gramática da língua materna, ao contrário do que afirma ter sido o consenso até então no reino (de que só as línguas clássicas estariam sujeitas à regras). Lembra este autor que na ausência de gramáticas do português, os professores não teriam como bem ensinar os alunos,

Do que provém saírem das escolas os seus discípulos cheios de irremediáveis vícios, assim no pronunciar como no escrever as palavras portuguesas, defeitos que dificilmente se perdem por serem adquiridos na tenra idade corrompida com o venenoso leite de erradas doutrinas (capítulo XIV, apud Hackerott 1988).

Assim, o português, desde os primeiros escritos medievais até as reformas pedagógicas setecentistas, é uma língua cuja escrita, mesmo no nível gráfico, não encontra instrumentos padronizadores. A ausência de uma norma gráfica oficial pode ser testemunhada pela variedade de grafia encontrada nos textos escritos antes do século 18.

A questão da grafia coloca-se fortemente no debate lingüístico desde a época renascentista uma vez que, à diversidade da escrita medieval (calcada na adaptação quase que individual de cada escriba do alfabeto e das regras latinas para o vulgar), os novos tempos impõem uma uniformidade de parâmetros. Isto, tanto por questões históricas mais complexas – como a legitimação da língua escrita, quanto em razão de necessidades tecnológicas imediatas, como o advento da imprensa.

Tem início então um debate no qual alguns teóricos defendiam uma orientação fonética- racionalista para as regras ortográficas, enquanto outros advogam uma linha etimológica-classicista. Embora muito da norma proposta pelos primeiros gramáticos seguisse a orientação mais fonética que etimológica, de um modo geral a linha etimológica predomina na ortografia portuguesa ao longo de todo o período posterior. Assim mesmo, entre os gramáticos portugueses, não há ao longo da época clássica um consenso sobre a grafia da língua.

Importa lembrar que esta trajetória não é comum entre as línguas nacionais européias no mesmo período. O castelhano, por exemplo (e interessantemente), é uma das primeiras línguas vulgares a receber uma normatização ortográfica e gramatical, pela ação de um dos principais gramáticos de fins da Idade Média, Nebrija, com bases mais fonéticas que etimológicas. Assim, já antes do período clássico, a escrita castelhana encontra sua grafia praticamente definitiva, passando por uma segunda reforma, no século XVIII, que guardou muitos dos princípios de inspiração racionalista já estabelecidos pelo primeiro gramático. Tavani (1987), citando Williams (1938), destaca que

A questão ortográfica é um dos capítulos mais atormentados da história lingüística portuguesa. Ao contrário do espanhol, que nos fins do século XV encontrou em Nebrija seu codificador tanto da grafia como da gramática,(...), o português manteve até ao princípio do século em que estamos uma grafia tradicional inspirada em etimologias um tanto arbitrárias.

A história atormentada da institucionalização da norma ortográfica para o português envolve diversos condicionantes; no que se refere ao período aqui focalizado, a demora na institucionalização normativa pode ser creditada, como já foi sugerido, ao ambiente cultural condicionado pelos compromissos da contra-reforma.

Poder-se-ia argumentar, é claro, que a contra-reforma na Espanha deveria surtir o mesmo efeito; entretanto, como visto, a normatização neste país é estabelecida em um período anterior. Além disso, é possível afirmar que os efeitos da contra-reforma na cultura letrada espanhola não foram, de modo geral, como já mencionei, tão intensos como no caso português.

Penso, de fato, que neste sentido é possível afirmar que a questão da diferença histórica entre castelhano e português seja relevante também para compreender os diferentes processos de instauração das duas línguas nacionais. Isto é, a normatização precoce do castelhano estaria relacionada ao estatuto deste idioma como língua de cultura na Península, e a normatização tardia do português estaria relacionada ao seu menor prestígio.

Resumindo os principais pontos até aqui tratados, entre a renascença (marcada no curto intervalo entre fins do século 15 e a metade do 16) e a época iluminista, Portugal passará por um período que já foi denominado decadente e atrasado.

Os dogmas da contra-reforma arrastam-se até o alvorecer do século das luzes; o ambiente universitário e científico permanece em grande medida isolado do progresso científico conhecido em outros países europeus – que incluiu, no que nos interessa especificamente, o alçamento das línguas vulgares à posição de línguas de ciência. Neste contexto, o português não é uma língua de veículo para a ciência e nem um objeto da reflexão científica.

Além disso, a crise política, aliada também à ação contra-reformista no que tange a repressão censória, significou a redução da produção escrita literária em língua portuguesa a partir de meados do século 16.

Como se verá a seguir, é o castelhano, neste período, que faz o papel de língua de cultura em Portugal. A seção seguinte procura aprofundar a descrição da penetração do castelhano na cultura letrada portuguesa - suas origens, seu ápice e seu declínio – e discute a natureza da relação entre as duas línguas. Os fatos até aqui discutidos, combinados com o que se dirá abaixo, indicam, a meu ver, que o português amarga um estado de desprestígio neste período - cujas conseqüências, como procurarei demonstrar, irão fazer-se sentir na produção escrita neste idioma.

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2. A penetração do castelhano na cultura letrada portuguesa nos dois séculos de bilingüismo literário

2.1 Origens do prestígio do castelhano

A influência da língua e da cultura castelhana sobre Portugal remete a um período muito anterior ao da regência dos Filipes, e se estende muito além da restauração, tendo influenciado a cultura portuguesa de modo muito mais profundo que os setenta anos de reinado dual permitiriam supor.

É o que afirma Cuesta (1986), lembrando que a infiltração castelhana, iniciada em meados do século 15, serviu aos interesses da classe dominante portuguesa, e teve um significado cultural e lingüístico muito profundo, a ponto de ocasionar uma situação de diglossia que perdura, pelo menos, até o final do século 17.

As características desta diglossia precisam ser entendidas no contexto dos determinantes históricos da dominação política e cultural da Espanha (que já foi descrita como a "anexação de Felipe II pelas classes dominantes portuguesas", em Godinho 1968, apud Cuesta 1986).

Assim, desde o século 15 o castelhano é a língua de prestígio em toda a Península Ibérica, estatuto que apenas foi aguçado, no caso de Portugal, nos oitenta anos de monarquia dual. Esta é, ao menos, a posição de Pilar Vasquez Cuesta, que aqui sigo - embora, é preciso ressaltar, não seja uma visão unânime entre os historiadores que escrevem sobre o período.

Cuesta (1986) lembra que o castelhano é adotado em Portugal como língua de moda na corte desde o final do reinado de Afonso V (em 1479 – um século antes da anexação, portanto), preserva seu prestígio no reinado das sucessivas rainhas de origem castelhana, e constitui já na passagem para o século 16 língua de prestígio na literatura.

Datam deste período, por exemplo, as peças em castelhano de Gil Vicente, escritas em homenagem a D. Maria, esposa castelhana de D. Manuel, e a suas sucessoras, as também castelhanas D. Leonor e D. Catarina. Também no período pré-filipino, era às universidades espanholas que acorriam os estudantes de Portugal; mesmo depois da inauguração dos Estudos Gerais em Lisboa em 1288, a universidade de Salamanca era a favorita dos portugueses (João de Barros, por exemplo, foi um dos lusitanos ilustres a atender esta universidade, já no século 16).

Embora a língua de ensino na Espanha, como em toda a Europa da época, fosse o latim, a influência castelhanizante trazida pelos letrados fez-se notar no modelo universitário português. Quando D. João III reforma o ensino universitário em Portugal (entre 1537 e 1547), manda vir professores da Espanha, "servindo para aumentar ainda mais a provinciana admiração por tudo o que fosse espanhol que (...) experimenta o Portugal pré-filipino" (Cuesta 1986:42).

A situação lingüística na Península Ibérica, e seus efeitos sobre a produção literária, são fator de discussão não apenas para a época clássica, mas também medieval. As inegáveis diferenças regionais não coincidiam necessariamente com as fronteiras políticas dos diversos reinos da península; assim, por um longo período, os reinos ibéricos, incluindo Portugal, formavam um conjunto maior que pode ser caracterizado, em determinado nível, como uma unidade cultural.

Ou, como indica António Saraiva (Saraiva 1995), é preciso identificar na Península três correntes culturais - ou nos termos da época, três nações: a moura, a judaica e a cristã. No âmbito da nação cristã, as culturas portuguesa, castelhana, aragonesa ou catalã podem ser consideradas, de modo geral, como um todo relativamente homogêneo - inclusive do ponto de vista lingüístico, em um momento no qual os romances ibéricos ainda se assemelhavam muito uns aos outros.

É um indicador da unidade ibérica medieval o fato de que o termo 'Espanha', neste período, designa ‘a Península Ibérica’. Lembra-nos isto Cuesta (1986:62), afirmando que o português Pedro Nunes, autor do Livro de álgebra, aritmética e geometria publicado em castelhano em 1567 (e dedicado ao infante D. Henrique), justifica o uso desta língua por ser o idioma mais comum 'em Espanha': "lembremos que para os portugueses de então, 'Espanha' era sinônimo de Península Ibérica".

E há evidências de que este fosse o estado de coisas já desde a Idade Média; Saraiva (1988) discorre sobre os primeiros intelectuais portugueses, destacando o caso de Pedro Julião, que foi referência em toda a Europa para os estudos aristotélicos no século 13, e era conhecido como Pedro Hispânico:

O nome de Pedro de Espanha (ou Hispânico) vem-lhe da época que freqüentou a universidade de Paris, onde muitas vezes os estudantes eram conhecidos pelo nome da região de origem aposto ao nome próprio. Ainda então se confundiam na designação de Espanha os vários reinos da península Ibérica

(Saraiva 1988:103)

Lembra também Saraiva que eram muitos os portugueses a circular entre os vários centros do saber – Itália e França, "não falando da Espanha, que não era estrangeiro"( id.: ibid.).

Este estado de coisas tem, naturalmente, seus reflexos no campo literário. No que tange, por exemplo, a lírica trovadoresca, é sabido que este gênero está ligado ao uso do galego- português. Ao discutir se o fim do uso literário desta língua, por volta do século 14, significou a interrupção da poesia lírica em Portugal – com a produção neste gênero voltando a aparecer apenas no final do século 16 – Bernardes (1999) salienta ser a situação lingüística da Península na época um fator fundamental para se compreender o percurso da lírica portuguesa:

"Quando se consideram apenas os limites de um qualquer idioma (o português, o castelhano ou o catalão) o itinerário do lirismo peninsular não pode ser reconstituído sem interrupções inexplicáveis; basta porém assumir-se uma perspectiva cultural e não apenas lingüística para se começar a fazer mais luz. Na multiplicidade dos subgéneros que a caracterizam, a própria poesia trovadoresca configura, na prática, um código de expressão que excede a proveniência social e geográfica de seus protagonistas; e quando o seu gosto começa a desfalecer nos círculos palacianos, verifica-se um fenómeno típico de apropriação popular, que permite sua sobrevivência, adequada agora à natural divergência de idioma. Nessa medida, o castelhano e o português tornam- se línguas de acolhimento e transformação de uma tradição lírica popular que vai sedimentar-se na Península ao longo do século XV".

(Bernardes 1999:163)

Para Bernardes, portanto, é a Península a unidade de análise apropriada para investigar o desenvolvimento do gênero lírico - não as fronteiras de cada um de seus países. Isto, não apenas no que se refere ao período medieval, mas também ao período renascentista e clássico, no qual também vê o autor a preponderância de uma cultura peninsular, mais que nacional:

"E assim como durante o século XIV é ainda possível encontrar poetas castelhanos e aragoneses a escrever em galego-português, também vai ser corrente entre poetas portugueses a adopção do idioma castelhano, como sinal de integração numa corrente que era essencialmente peninsular antes de ser portuguesa ou castelhana."

(Bernardes 1999:164)

Na abordagem de Bernardes, então, a Península é a unidade básica para se compreender o nascimento, desenvolvimento e morte da lírica. E de outro modo, do ponto de vista da literatura portuguesa, é necessário olhar para além das fronteiras do idioma para compreender sua evolução no que tange a lírica – uma vez que um poeta lírico português do século 14 pode escrever em galego-português, e um poeta do século 16, em castelhano.

Vai neste sentido a posição predominante entre os historiadores; o uso do castelhano pelos escritores quinhentistas e seiscentistas portugueses é abordado como manifestação de uma unidade cultural ibérica, a exemplo do que se tem considerado para a Idade Média. Nesta perspectiva, o uso do castelhano por autores portugueses no século 17 apenas continuaria uma tradição cultural na qual as fronteiras do idioma não coincidem com as fronteiras culturais.

Vasquez Cuesta, entretanto, não vê no uso do castelhano no seiscentos a continuidade de um processo que se remete à situação do galego-português na época medieval:

Comparou-se muitas vezes o uso do galaico-português por alguns trovadores castelhanos dos séculos XIII, XIV e XV com o emprego do castelhano por boa parte dos escritores portugueses dos séculos XV, XVI e XVII. Trata-se, no entanto, de fenômenos completamente diferentes.

(Cuesta 1986:52)

Para Cuesta, a dominação castelhana sobre as demais culturas da península tem início já na Idade Média. Como foi visto na etapa anterior, o prestígio desta língua pode ser traçado até mesmo ao século 13, quando as universidades castelhanas eram as mais renomadas da Península. Quando o castelhano é adotado em Portugal como língua de moda na corte (no reinado de Afonso V, em fins do século 15), ou quando D. João III reforma o ensino universitário em Portugal (entre 1537 e 1547), mandando vir professores da Espanha, isto apenas serve para "aumentar ainda mais a provinciana admiração por tudo o que fosse espanhol que (...) experimenta o Portugal pré-filipino"" (Cuesta 1986:42).

Neste sentido, o uso exclusivamente poético do galego português pelos diversos povos da Península no período medieval não trouxe perigo para a supremacia nem o prestígio social que o castelhano guardava já nesta época. Para Cuesta, a popularidade da lírica trovadoresca na Castela medieval teve características de

uma moda, um inofensivo e requintado gosto palaciano pelo popular, quanto mais primitivo e estranho melhor, numa época em que os distintos romances peninsulares se encontravam ainda tão pouco diferenciados que o galaico-português podia passar por um castelhano arcaizante . (Cuesta 1986:52)

Prova disto é que em Castela, paralelamente ao prestígio da lírica galego-portuguesa, nos demais gêneros - a poesia épica, bem como a prosa didática ou de ficção – seguiu-se usando o castelhano. E além disso, como aponta Cuesta, esta seguiu sendo a

língua em que se exprimiam reis, prelados e nobres (além – é claro – do povo de Castela), se realizavam todas as atividades verdadeiramente importantes da vida, como governar ou administrar justiça (...)

(Cuesta 1986:52)

Assim, o uso do galaico-português por autores castelhanos na Idade Média esteve limitado ao gênero lírico, não sendo evidente que esta língua assumisse uma posição de prestígio, em termos mais amplos, sobre os demais idiomas da península. Em contraste, o uso do castelhano em Portugal na época renascentista e clássica transcende os limites de gênero literário, atingindo (além da lírica) a prosa – de ficção, didática, ou historiográfica, a épica, o teatro, e até as traduções de outras línguas estrangeiras.

O bilingüismo literário dos séculos 16 e 17 não pode ser classificado como uma moda passageira ligada a determinada escola estética, mas sim deve ser entendido como inserido em um contexto no qual a cultura castelhana exerce, de um modo muito mais abrangente, fascínio e ascendência sobre os portugueses, como resultado das condições sociais e políticas da época – iniciando-se com a influência das rainhas castelhanas na corte em Portugal, e mais tarde chegando a seu ápice com a transferência da corte para Madri e o período de monarquia dual.

Posição similar encontra-se em Teyssier (1997), que descreve o período entre meados do século 15 e fins do século 17 como aquele no qual o castelhano serve de segunda língua para todos os portugueses cultos, e para quem

Os casamentos de soberanos portugueses com princesas espanholas tiveram como efeito uma certa "castelhanização" da corte. Os sessenta anos de dominação espanhola (1580-1640), que se situam no período mais brilhante do "Século de Ouro", acentuaram esta impregnação lingüística. É somente depois de 1640,com a Restauração e a subida ao trono de D. João IV, que se produz uma certa reacção anti-espanhola. O bilingüismo, todavia, perdurará até o desaparecimento dos últimos representante da geração formada antes de 1640.Assim, durante aproximadamente dois séculos e meio, o espanhol foi em Portugal uma segunda língua de cultura.

(Teyssier 1997:37)

De acordo com Cuesta (1986:53),

De tudo isto resultou que a penetração do castelhano em Portugal, sobretudo durante o período de monarquia dual, fosse tão intensa que ameaçasse fazer malograr a ainda pouco madura literatura portuguesa e deixasse marcas imperecíveis em algum género como o teatro e provavelmente a narrativa. Daí que comece a produzir-se um conflitivo estado de diglossia.

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2.2 O bilingüísmo como processo diglóssico

Na interpretação de Vasquez Cuesta, o uso do castelhano significou um risco para a literatura portuguesa; pode-se dizer, até, seguindo esta abordagem, que o bilingüismo luso-espanhol, pela intensidade da penetração do castelhano na cultura letrada de Portugal, em consonância com outros fatores históricos, constituiu uma ameaça à própria consolidação do português como língua nacional e de cultura.

Estarei, aqui, trabalhando com esta hipótese: o estatuto do português enquanto língua de escrita e da cultura encontra-se ameaçado na transição entre os séculos 16 e 17; trata-se de uma hipótese forte, que precisa ser justificada e qualificada, mas que, acredito, permite melhor determinar a representatividade dos textos escritos neste período para os estudos diacrônicos da gramática.

Este risco deve ser entendido, não no sentido mais estritamente lingüístico, mas sim cultural. Como ainda será discutido, é no que diz respeito à língua escrita - e ainda mais especificamente, ao seu prestígio e estatuto cultural - que a ameaça do castelhano pode ser identificada. Não acredito que a influência da língua vizinha tenha se estendido para a língua falada em Portugal.

Acredito, em contraste, que a evolução do português falado - ou, no que nos importa aqui, a gramática do português – possa ter seguido um caminho que em certo momento distancia-se do caminho seguido pela língua escrita. Assim, por diversas razões históricas, o padrão escrito português teria aproximado-se do padrão castelhano, ao longo dos dois séculos e meio em que o castelhano é a língua de cultura na Península. A fala vernácula portuguesa pode ter seguido uma linha inteiramente distinta daquela que aparece nos textos produzidos entre meados do século 15 e início do século 18, uma vez que neste intervalo de tempo este vernáculo encontra-se em posição de desprestígio.

Para justificar esta posição, é fundamental considerar que contribuem, para o desprestígio do português, a articulação entre a exposição ao prestígio de uma língua estrangeira universal por um lado, e a pouca defesa institucional de que dispõe a língua materna enquanto língua escrita, por outro.

Neste sentido, torna-se importante ter em mente o que foi tratado na seção anterior sobre a consolidação tardia da norma escrita para a língua portuguesa. A intensificação do uso do castelhano como língua literária e de cultura coincide com um período no qual o português começava afirmar-se enquanto língua nacional.

Como visto, uma das conseqüências da interrupção abrupta do movimento humanista em Portugal foi o abandono da reflexão de cunho racionalista em torno da língua vulgar - contexto no qual outras línguas vulgares legitimam-se enquanto línguas nacionais européias.

Assim, o português, ao final do renascimento, é uma língua para a qual ainda não se estabeleceu de modo substancial uma norma escrita, e, paralelamente, que convive com o prestígio de uma língua estrangeira. Nas universidades, a língua que serve de veículo para a reflexão científica ainda é o latim; na literatura, os autores portugueses passam cada vez mais a escrever em castelhano.

É neste sentido que o processo de diglossia é descrito por Vasquez Cuesta. O português vai se tornando, neste processo, uma língua interior, falada nos contextos domésticos e familiares e menos usada na literatura, enquanto o castelhano é a língua da política e da grande literatura – a língua de cultura.

Nesta perspectiva, o uso do português e do castelhano estava sociolingüísticamente delimitado, e esta delimitação inscreve-se em um contexto mais amplo de dominação cultural por parte da Espanha:

É esta divisão de campos e funções entre espanhol e português que, embora confusamente, começa a verificar-se em Portugal durante o período de pouco mais de um século em que o primeiro é considerado superior ao segundo, período que – como vimos – se inicia com os últimos reis da dinastia de Avis e – como veremos – se prolonga depois da Restauração pelos primeiros da dinastia de Bragança, mas cujo centro é constituído pelos sessenta anos de monarquia dual, no fim dos quais podemos situar o ponto mais alto deste processo em direcção ao bilingüismo diglóssico, que iniciará uma curva descendente logo a partir do momento da recuperação da independência por desaparecerem com ela os motivos econômicos e políticos que o provocavam

(Cuesta 1986:85)

Esta não é, entretanto, e como já sugeri, uma posição generalizada entre os historiadores que se dedicaram à época. Na realidade, a relação entre o português e o castelhano no período clássico é um tópico pouco estudado na literatura. De um modo geral, o que se encontra são breves menções ao bilingüismo, seja de forma direta ou indireta.

De qualquer forma, penso poder delimitar duas posições básicas em relação à questão: a de Cuesta (1986) – que defende a hipótese da diglossia conflitiva – e a dos demais autores, como Saraiva (1996), ou Cidade (1995), e mesmo, em menor grau, Teyssier (1996), cuja interpretação tende mais a enxergar uma unidade cultural entre Espanha e Portugal no período mais amplo que vai da Idade Média até o século 18, sem fazer menção explícita à dominação de uma cultura sobre outra.

Entretanto, no que se refere ao período de monarquia dual, ou mesmo, de modo um pouco mais abrangente, de bilingüismo literário (final do século 15 até final do século 17), a posição de prestígio do castelhano não é contestada pelos historiadores. António Saraiva, embora não veja esta relação como originando na Idade Média, nem a descreva nos termos de um processo conflitivo profundo, afirma que

Convém ter bem presente que sob o governo dos Filipes são, mais do que nunca, bilíngües não só os autores como o público português. (...) Esboça-se desta forma uma tendência a dar ao castelhano, língua geral da Península, preponderância no teatro e nos géneros de grande circulação, como o romance e o teatro, ficando o português reduzido à condição de língua regional.

(Saraiva 1996:182)

Neste sentido, a avaliação de Saraiva parece consoante com a de Vasquez Cuesta – ele identifica uma divisão de papéis no uso das duas línguas, com o papel de prestígio tomado pelo castelhano, e o português reduzido ao estatuto de regional. Entretanto, o autor adverte a seguir:

Tendência passageira, resultante como vimos da ausência de uma corte régia em Lisboa, e que pode ter contribuído para a decadência ou falta de continuidade do romance e do teatro em língua portuguesa.

(idem)

Assim, enquanto para Cuesta os efeitos do bilingüismo (ou, em seus termos, da diglossia conflitiva) perduram até o início do 18, para Saraiva trata-se de uma tendência passageira. Entretanto, embora não em termos tão afirmativos, este autor manifesta também sua opinião de que esta tendência possa ter deixado resultados negativos no desenvolvimento da literatura portuguesa.

Assim, é possível dizer que, embora o uso do castelhano por autores portugueses entre os séculos 15 e 17 seja um fato largamente reconhecido na literatura, a natureza da relação entre as duas línguas - e paralelamente, as conseqüências desta relação para a escrita em português - é pouco discutida, com exceção do curto período de monarquia dual, para o qual o prestígio do castelhano é fato indisputado na historiografia.

Assim, se o bilingüismo deixa marcas imperecíveis, ou se chegou a ameaçar a literatura em língua portuguesa, como argumenta Cuesta, é uma questão controversa. Entretanto, a intensidade da influência do castelhano é um ponto importante para verificar minha hipótese. Penso que, em vista da controvérsia sobre o tema, será interessante ter como referência também os escritos contemporâneos ao bilingüismo.

Na seção a seguir, investigo, com este intuito, as justificativas apresentadas por alguns autores da época para o uso do castelhano, algumas referências ao bilingüismo nos primeiros gramáticos, e a reação que começa a se fazer sentir já desde o século 16.

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2.3 Justificativas para o uso do castelhano, nos escritores da época

Como visto na etapa anterior, a maioria dos escritores portugueses passa a escrever, marcadamente na segunda metade do século 16, nos dois idiomas (como Gil Vicente, Sá de Miranda, e o próprio Camões) – chegando outros a usarem exclusivamente o castelhano, como é o caso de Jorge de Montemor, que muda seu próprio nome para Montemayor (Teyssier 1997:37).

O uso do castelhano é de tal forma geral que, em diversos compêndios atuais, são citadas como clássicas da literatura portuguesa obras escritas em castelhano. É comum, até, encontrar análises de poemas inteiramente escritos em castelhano, sem que haja qualquer menção a este fato, como é ocaso, entre outros, de Macedo (1999) ao analisar a poesia de Sá de Miranda. O uso do castelhano estende-se, até, para as traduções de obras escritas em outras línguas, como é o caso da poesia de Petrarca.

De que forma viam os próprios escritores portugueses esta generalização do uso de uma língua estrangeira nas publicações dos autores nacionais? Como justificavam estes mesmos autores a opção pelo castelhano? É possível dizer que a justificativa mais encontrada é a referência à universalidade deste idioma; o castelhano aparece como a língua mais comum das duas, e seu uso possibilitaria ampliar o público leitor das obras.

Neste sentido, pode-se realmente falar no estatuto do idioma como língua de cultura na época, como menciona Teyssier no trecho acima citado. Por outro lado, a questão da universalidade do castelhano remete também à referência de V. Cuesta ao português como língua interna, isto é, aquela que, na especialização desenvolvida no processo diglóssico, fica relegada ao uso nos ambientes domésticos ou à literatura de menor expressão.

Listo, aqui, algumas das justificativas encontradas por Cuesta em autores da época que fazem referência à universalidade do castelhano. Em um relato de viagem publicado em 1610, um autor anônimo português conta como, após escrever o relato em português, o transformara em castelhano, pois assim fora aconselhado por amigos, julgando assim tornar seu livro mais público:

Primero escrebí estas relaciones en mi lengua materna portuguesa (...), y queriendo imprimir por licencia que ya para ello tenia mudé deparecer, obligado de la instancia y consejo de amigos, púselo en lengua castellana (...), juzgando que en esta lengua quedaba más comunicable y mi patria antes recibía sevicio que ofensa; no dudo que como va escrito en lengua no propria lleve el estilo y habla muchas impropriedades que tú, cândido lector, corregirás com tu prudencia y saber. (apud Cuesta 1986:119)

Bernarda Ferreira de Lacerda, autora portuguesa de España Libertada, assim começa a justificar o uso desta língua:

Y tu mi patrio reino lusitano que de muchos de Europa eres corona, si por escribir esto en castellano he dejado tu lengua, me perdona; que es el origen de la historia hispano y quiero que mi musa, pues la entona, también a lo español vaya vestida para ser más vulgar e conocida. (apud Cuesta 1986:114)

D. António de Sousa Macedo, em Flores de España, Excelências de Portugal (1631), escreve:

Y perdonad si, dejada la excelente lengua portuguesa, escribo en la castellana, porque como mi intento es pregonaros por el mundo todo, he usado por más universal esta y porque también los portugueses saben estas excelencias y así para ellos no es menester escribilas. (apud Cuesta 1986:118)

Nestes três trechos, a questão da universalidade é bastante clara: púselo en lengua castellana (...), juzgando que en esta lengua quedaba más comunicable (do autor anônimo); para ser más vulgar e conocida (F. de Lacerda); porque como mi intento es pregonaros por el mundo todo, he usado por más universal esta (Sousa Macedo). Entretanto, é possível verificar que a universalidade do castelhano aparece muitas vezes como ligada à clareza desta língua. Isto é, o castelhano é mais universal e mais conhecido por ser uma língua mais clara que o português – é o que fica evidente na segunda parte da justificativa de Lacerda:

Confieso de tu lengua que merece mejor lugar después de la latina com que en muchas palabras se parece y es como ella de toda historia dina, empero el ser tan buena la escurece, y así la estraña gente nunca atina com su pronunciación y sus dulces modos y la española es fácil para todos. (apud Cuesta 1986:114)

Também Faria e Sousa em Europa Portuguesa (apud Cuesta 1986:114), justifica o uso do castelhano nestas bases:

Escribo en castellano por ser idioma claro y casi comun

Assim, a questão da universalidade aparece conjugada com a propriedade de maior clareza ou facilidade do castelhano. Para Bernarda F. de Lacerda, a gente estranha nunca atina com a pronúncia e os doces modos do português, enquanto o castelhano é fácil para todos.

É possível observar, portanto, que no uso mais generalizado do castelhano, alguns portugueses passam a enxergar traços de superioridade deste idioma frente à língua materna – embora, no mais das vezes, esta superioridade não seja explicitada e, noutras vezes, a própria complexidade da língua materna mereça justificativas que acabam por glorificá-la.

A língua portuguesa - "a flor do Lácio" - costuma ser citada como a mais próxima ao latim, a mais rica na sua variedade de pronúncia – mas, entretanto, a menos clara das duas. Assim, é possível ver um mesmo autor a um tempo louvar as "doçuras" da língua portuguesa e justificar o uso da castelhana – é o caso, mais uma vez, de Bernarda Ferreira de Lacerda, cujas palavras ainda uma vez reproduzo: Confieso de tu lengua que merece/ mejor lugar después de la latina/ com que en muchas palabras se parece/ y es como ella de toda historia dina,/ empero el ser tan buena la escurece,...".

Assim, a apologia ao português não questiona necessariamente o estatuto de língua universal do castelhano; nesta linha de argumentação, a opção pelo castelhano reveste-se de uma justificativa ao mesmo tempo patriótica e pragmática.

Em termos pragmáticos, o autor que desejasse ver seus escritos atravessarem as fronteiras do reino – e, talvez, as fronteiras temporais – escrevia em castelhano. As obras em português estavam envolvidas no risco de permanecerem obscuras, e dirigidas a um público local e limitado, malgrado as doçuras do idioma. Em alguns contemporâneos pode-se sentir o desprestígio a que, lentamente, esta situação vai relegar o português. Isto transparece no seguinte trecho de Manuel de Galhegos, onde o autor descreve o estado do idioma na época:

A língua portuguesa como não é hoje a que domina esqueceram-se dela os engenhos que com seus escritos a podiam enriquecer e autorizar; e quem agora se atreve a sair ao mundo com um livro de versos em português arrisca-se a parecer humilde; pois escreve numa língua cujas frases e cujas vozes se usam nas praças, o que não deixa de ser embaraçoso para a altiveza (...) (apud Cuesta 1986:121)

Na afirmação de Galhegos – "quem agora se atreve a sair ao mundo com um livro de versos em português arrisca-se a parecer humilde", nota-se o pouco prestígio gozado pela língua portuguesa. De fato, o castelhano passa a ser considerado não apenas mais universal, como também mais claro e, na realidade, uma língua mais perfeita que o português.

Penso ser possível reconhecer nestes escritos três tendências principais, quanto à relação entre as duas línguas: a posição de universalidade do castelhano é fato bem estabelecido e explicitado; em alguns casos, a maior abrangência do castelhano é justificada pela maior clareza do idioma – sendo que a maior complexidade do português pode, por sua vez, servir de subsídio para louvá-lo; em outros casos, lamenta-se a característica de humildade ou vulgaridade do português, seja para justificar o uso do castelhano, seja para lamentar esta vulgaridade como fruto do pouco uso literário do português.

Assim, durante os dois séculos e maio em que o castelhano é a língua de cultura entre os portugueses, a língua materna não deixa de ser louvada e defendida, em diferentes graus e com diferentes argumentos, que não questionam, necessariamente o estatuto de universalidade do castelhano.

A comparação entre os dois idiomas - e a defesa do português - era, já nos escritos dos gramáticos renascentistas, um aspecto importante, e passa a ser um ponto central nos compêndios ortográficos produzidos no século 17. Em alguns casos, uma reação mais clara contra a invasão do castelhano faz-se sentir, como na gramática de Pero Magalhães Gândavo. Também entre outros intelectuais, como é o caso exemplar do poeta António Ferreira, uma defesa da língua materna de cunho patriótico se faz sentir, embora como voz isolada entre os contemporâneos, como se verá nas seções a seguir.

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2.4 Referências ao castelhano nos compêndios gramaticais portugueses

A comparação entre português e castelhano é característica dos escritos dos primeiros gramáticos. O castelhano aparece nestes como o termo de comparação com o português, ainda que seja para louvar o idioma materno. Frente ao fato de ser o castelhano a mais largamente utilizada das duas línguas, e frente à opinião, como vimos bastante comum, de ser esta a mais clara e fácil das duas, é interessante avaliar como se articulam os argumentos em louvor à língua portuguesa.

Duarte Nunes de Leão, gramático que publica em XXX uma história dos dois idiomas, reconhece o uso mais amplo e universal do castelhano, mas repudia a visão de que este uso está relacionado à melhoria deste idioma e peoria do português:

Os Castelhanos e os afeiçoados à sua língua se jactam que, por elegância e excelência dela, é comum a muitas nações que a entendem e falam como a mesma Espanha, em Itália e nos estados de Flandres, e ainda entre Mouros, que a têm por sua aljamia, e que a portuguesa tem uns limites tão estreitos, que não passa da raia de Portugal, tomando daí argumento da melhoria de uma e menoscabo da outra.

E, por, tratando da origem de uma e de outra, me pareceu que esperariam de mim que interpusesse nisso meu juízo, o quis fazer, não como juíz suspeito, pressupondo que entender-se uma língua mais que outra não é eficaz argumento de melhoria ou peoria. [...] A causa de a língua castelhana se estender por algumas províncias e haver nelas muitos que a saibam entender e falar, não é por a bondade da língua (que nós não lhe negamos), mas por a necessidade que dela têm aquelas gentes que dela usam

(Nunes de Leão, Origem, cap. XXIV; apud Buesco, 1978:99 – documentário antológico)

A defesa do português em Leão, como é geral nos manuais de ortografia da época clássica, e como o fora nos compêndios gramaticais renascentistas, remete à maior pureza do idioma frente ao latim. No humanismo renascentista, isto refletia a dupla articulação envolvida no ideário da reflexão lingüística presente nestes compêndios: a valorização das línguas vulgares frente ao latim, e a resposta à ameaça representada pelo castelhano, como visto na etapa anterior. Esta dupla articulação é mencionada por Maria Leonor Carvalhão Buesco, por exemplo, ao comentar as obras dos primeiros gramáticos:

Enquanto Barros tentava demonstrar as excelências da língua portuguesa a partir de sua "conformidade com o latim", e em confronto com outras línguas, Gândavo restringe-se à polémica da competição entre o português e o castelhano, colocando-se numa posição inteiramente pragmática: efectivamente – e no século seguinte, pelo menos na primeira metade, os factos vieram a demonstrá-lo – era a língua castelhana e não outra qualquer que punha em risco prestígio e a circulação do português. (Buesco 1978:49)

Na etapa anterior, vimos como Gândavo, no Diálogo em defensão da mesma língua portuguesa), incluído nas regras ortográficas publicadas em 1574, descreve um debate fictício entre 'Petrônio' , que defendia o português, e 'Falêncio', que defendia o castelhano.

Falêncio afirma que a língua portuguesa era conhecida pelos estrangeiros e pelos próprios portugueses como uma língua 'grossa' e 'tosca'; Petrônio contra-argumentava que os portugueses que desprestigiavam a própria língua o faziam por ignorância; seu argumento final e vitorioso era que a língua lusa era a que mais se assemelhava ao latim. Nos compêndios da época clássica, entretanto, a comparação com o castelhano se apresenta de forma menos explícita.

De todo modo, uma conseqüência sensível deste estado de coisas será que os compêndios ortográficos para a língua portuguesa escritos na época renascentista e clássica terão como ponto de referência a grafia castelhana, já de muito bem estabelecida. Dois exemplos desta referência foram mencionados na etapa anterior, e são aqui reproduzidos. Álvaro Ferreira de Véra, na Ortografia ou modo de escrever certo na língua portuguesa, publicada em 1631, ao estipular as regras para o plural das palavras terminadas em nasal ão, traz como referência o castelhano: quando nesta língua o singular terminava em an, o plural português era ães; quando ano, ãos; quando on, ões:

porque nisto, e outras cousas, que por brevidade deixo, tem respeito, e correspondência a língua portuguesa à castelhana (apud Hackerott 1986: 94)

Já Duarte Nunes Leão analisara a grafia LH comparando-a e preferindo-a à grafia castelhana LL, observando:

Os portugueses estamos nisso melhor, porque temos nossa diferença de L singelo, dobrado e aspirado

(apud Hackerott, idem).Importa observar que esta relação com o castelhano pode ser identificada, no estabelecimento das regras para a grafia portuguesa, tanto no sentido de tomarem o uso castelhano como exemplar, como no sentido de buscarem diferenciar-se deste uso. Ao menos neste último aspecto, a importância do castelhano pode ser sentida até um período bastante posterior à dominação política espanhola.

Tavani (1987) lembra que a reforma ortográfica estabelecida pela Academia de Lisboa no século 18 – na qual a tendência etimológica sobrepõe-se de modo praticamente definitivo à tendência racional-foneticista – tem sido explicada como um reflexo da influência da ortografia francesa; entretanto, para este autor, as características da reforma se explicam

talvez, com mais probabilidade, pelo desejo de tornar a língua portuguesa, até no plano gráfico, cada vez mais diferenciada de sua vizinha peninsular (Tavani 1987:202).

A observação de Tavani tangencia uma questão importante. Ela implica dizer que, para além do plano gráfico, havia semelhanças em outros aspectos lingüísticos entre português e castelhano, de que os portugueses da época iluminista procuram se distanciar. O autor não explicita, contudo, quais seriam estas semelhanças.

De modo resumido, portanto, é possível dizer que o castelhano é uma referência nos escritos de reflexão sobre a língua portuguesa, desde os gramáticos renascentistas até - na interpretação de Tavani - por ocasião da reforma ortográfica de 18XX. A referência tanto pode se dar no sentido da exemplaridade, como no sentido do distanciamento.

O castelhano é, das duas, a língua que mais cedo foi padronizada por instrumentos normativos, e aquela para a qual uma norma gráfica foi primeiro estabelecida. Além disto, enquanto a norma gráfica portuguesa é marcada pelo debate etimológico, a norma castelhana tem base racional-foneticista. É até interessante perguntar-se até que ponto isto não se reflete na opinião corrente na época de ser o castelhano uma língua mais clara que o português.

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2.5 Bilingüismo e sentimento nacional

Mais acima descrevi como alguns escritores portugueses justificaram o uso do castelhano em suas obras. Vimos como esta língua é mencionada como a mais universal, e também a mais clara das duas; como sugeri, em muitos casos um declarado amor ao idioma materno convive com a opção por escrever na língua estrangeira. Houve no mesmo período, entretanto, quem reagisse contra o uso do idioma do país vizinho - sendo o caso exemplar na defesa do idioma pátrio o poeta António Ferreira (1528 - 1569). De um modo geral, porém, como procuro salientar nesta seção, o uso do castelhano não é relacionado com um espírito antipatriótico.

Diversos historiadores mencionam António Ferreira como um dos poucos quinhentistas que se recusa a escrever em castelhano (sem citar, entretanto, quais os outros que também o fizeram). O uso exclusivo do português em Ferreira, sua fidelidade vernácula, é fato tratado com destaque – o que é em si revelador do quão generalizado estava o uso do castelhano entre os escritores portugueses. O poeta não apenas usa o idioma materno, mas insta outros a fazerem o mesmo, como neste trecho célebre do poema Floresça, fale, cante, ouça-se a portuguesa língua, parte da "Carta a Pero de Andrade Caminha" (apud Bernardes, 1999)

Mostraste-te té gora tão esquecido meu Andrade, da terra, em que nasceste, como se nela não foras nascido . Esses teus doces versos, com que ergueste teu claro nome tanto, e que inda erguer mais se verá, a estranha gente os deste. Porque o que com podia nobre cer tua terra e tua língua lho roubaste, por ires outra língua enriquecer? Cuida melhor, que quanto mais honraste, e em mais tivesse essa língua estrangeira, tanto a esta tu ingrato te mostraste. Volve pois, volve Andrade, da carreira, que errada levas, (com tua paz o digo).

Alcançarás tua glória verdadeira.

Té quando contra nós, contra ti

inimigo te mostrarás? Obrigue-te a razão <...> Floresça, fale, cante, ouça-se e viva a Portuguesa língua, e já onde for Senhora vá de si, e soberba altiva. Se té qui esteve baixa, e sem louvor, culpa é dos que a mal exercitaram: esquecimento nosso e desamor. Mas tu farás, que os que a mal julgaram, e inda as estranhas línguas mais desejam, confessem cedo ant'ela quanto erraram. E os que depois de nós vierem, vejam quanto se trabalhou por seu porveito, porque eles para os outros assim sejam. <...>

O trecho evidencia que Ferreira considera o uso do castelhano por seus contemporâneos como antipatriótico; o poeta lamenta que os versos que poderiam engrandecer a pátria foram enriquecer outra língua. Da mesma forma lamenta Henrique Garcés, o tradutor de Sonetos Y Canciones de Petrarca, sua própria opção pelo idioma estrangeiro:

Yo no puedo entender como pudiste, estando en tantas partes derramado, dar al Petrarca en lengua trasladado diversa da que la que usando naciste. España mucho debe ciertamente a tus vigilias pues que tal riqueza de lama y cuerpo le das tan francamente...(apud Cuesta 1986:112)

O lamento de Ferreira e de Garcés (que, lembro, não deixa entretanto de escrever em castelhano) configuram posições isoladas entre seus contemporâneos. Prova disto, talvez, como sugeri, é o próprio destaque merecido pela fidelidade vernácula de Ferreira entre os historiadores que se dedicam à época. Também entre os gramáticos, a atitude de Gândavo é destacada (Buesco XXX) pela defesa explícita da língua portuguesa frente ao castelhano.

Pode-se dizer que Gândavo, de um lado, e Ferreira, de outro, foram vozes isoladas na defesa do português com cunho patriota. De um modo geral, é possível observar que o uso do castelhano, por um longo período, não era identificado a uma subserviência à dominação espanhola. Chama atenção para isto Cuesta (1996:111):

(...) muitos dos portugueses que escreveram em castelhano durante o período filipino não eram, ou pelo menos não se sentiam, partidários do domínio espanhol, pelo que têm de procurar álibis para um comportamento que estava em contradição com seu patriotismo.

Entre os álibis da diglossia, como define Cuesta, estão as justificativas já mencionadas anteriormente. Neste momento, interessa observar um outro aspecto; a não identificação do uso do castelhano com um compromisso político ou ideológico com a dominação espanhola. Em outras palavras, o bilingüismo seria um fenômeno mais amplo que a dominação política; de fato, como comentei, ele tem seu início muito antes da anexação do reino de Portugal pelos Filipes, e seus ecos se fazem sentir mesmo após a Restauração.

Pode ser uma evidência neste sentido o fato de que boa parte da literatura jurídica e militar escrita no momento da Restauração, em louvor à autonomia de Portugal, está escrita em castelhano.

É o caso da publicação de panfletos de relatos de guerra com títulos como Sucesos vitoriosos del ejército del Alentejo y relación sumaria de lo que por mar y tierra obraron las Armas portuguesas contra Castilla em 1643 (panfleto publicado em Lisboa, 1644, por Salgado de Araújo); Relación verdadera y puntal de la famosa y memorable victória que el ejército de Portugal (...) alcançó del ejército del Rey de Castilla (...) (panfleto anônimo publicado em Lisboa, 1664); ou de peças teatrais sobre o triunfo independentista sobre os Castelhanos como La mayor hazaña de Portugal, de Manuel Araújo de Castro, publicada em Lisboa em 1645.

As obras são citadas em Cuesta (1996); a mesma autora menciona que o próprio rei restaurador, nove anos depois do fim da regência dual, escreve uma obra em castelhano (Defensa de la Música Moderna).

A existência dos relatos militares sobre as batalhas independentistas em castelhano, ou mesmo da literatura jurídica neste idioma, pode ser atribuída ao fato de estes relatos estarem dialogando com as obras "inimigas", dos castelhanos vencidos; as peças teatrais podem revelar que, mesmo após a restauração, a influência do castelhano fora tão profunda que já não se concebiam espetáculos em português (Cuesta 1986:142).

De qualquer modo, elas evidenciam que o uso do castelhano não está diretamente relacionado com o partidarismo do autor em questão com a política dualista; ou de um modo mais amplo, que o uso deste idioma não caracteriza necessariamente, na época, a postura antipatriótica do escritor, mas sim a conformação a uma ordem geral na qual o castelhano é o idioma universal.

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2.6 O declínio do bilingüismo

Neste sentido, é possível compreender que o fim da dominação política não significou o fim imediato do bilingüismo. Para Teyssier, como já citei e aqui reproduzo em parte,

É somente depois de 1640, com a Restauração e a subida ao trono de D. João IV, que se produz uma certa reacção anti-espanhola. O bilingüismo, todavia, perdurará até o desaparecimento dos últimos representante da geração formada antes de 1640. (Teyssier 1997:37)

Também Cuesta afirma que

As conseqüências lingüísticas da restauração da independência portuguesa não foram imediatas, como acontece sempre que um processo em marcha muda de sentido ao produzir-se uma violenta mudança política. Embora, desde o preciso momento em que sobe ao poder a dinastia de Bragança, tivesse começado a recuar a incipiente diglossia que analisávamos em páginas anteriores, por terem desaparecido as causa que lhe deram origem (..), continuarão a encontrar-se sinais dela enquanto não desapareçam os membros das gerações nascidas para a vida intelectual durante o período filipino. (Cuesta 1986:142)

Como já foi mencionado na etapa anterior, como último e mais influente representante destas gerações, V. Cuesta elege D. Francisco Manuel de Melo. Entretanto, a autora afirma que mesmo depois da geração de Melo, a influência castelhana, ainda que enfraquecida, se fará sentir em Portugal:

E inclusivamente depois, por uma espécie de inércia que actua tanto a favor da sobrevivência, nas mais duras condições, das línguas oprimidas, como da conservação, durante largo tempo, de certos privilégios das antigas opressoras. No caso que nos ocupa, o castelhano – já não como língua A, mas como língua estrangeira privilegiada – continuará a ter um grande peso na cultura de Portugal até que no século XVIII o substitua o Francês, ao mesmo tempo que ao gosto barroco sucede a estética neoclássica. (Cuesta 1986:143)

Como já sugeri inicialmente, e torna-se claro no trecho acima de V. Cuesta, o período que vai da Restauração dinástica até as reformas pedagógicas pombalinas pode ser descrito como um período de transição para a cultura portuguesa. É então que entram em declínio tanto a força do pensamento religioso, como a ascendência castelhana, e começam a se fazer sentir os novos ares de uma cultura moderna no país, no contexto do fortalecimento do absolutismo régio e, ao mesmo tempo, no surgimento de uma burguesia incipiente.

Esta transformação, entretanto, não se dá repentinamente – ao contrário, desenvolve-se por cerca de cem anos. Historiadores como António Saraiva têm apontado neste progressivo distanciar-se da mentalidade medieval (que mantém-se presente em Portugal mesmo após a renascença, pela força da contra-reforma), em direção à mentalidade moderna, a verdadeira manifestação do espírito barroco em Portugal.

É no espírito multifacetado do barroco que escreverão autores como António Vieira e Francisco Manuel de Melo; e é marco da ruptura com este espírito a obra pedagógica de Luís Antonio Verney. Na seção a seguir, será discutido este momento de transição marcado pela estética barroca.

Para resumir o que se disse até este ponto, posso afirmar que o uso do castelhano por autores portugueses no período entre meados do século 15 e fins do século 17 é fato bem estabelecido entre os historiadores da literatura portuguesa. Por outro lado, sobre a natureza da relação entre as duas línguas, não existe um consenso; esta relação tanto é conceituada como de harmonia entre dois idiomas representativos de uma mesma tradição cultural, como uma relação conflitiva no nível de uma diglossia social.

Nos escritos contemporâneos, de sua vez, encontram-se registros de uma reação ao uso literário do castelhano - seja no caso notável de António Ferreira, que pode ser descrito como um fervoroso defensor do idioma português, seja nos casos mais gerais, em que os autores manifestam suas razões para algo que pode ser considerado antipatriótico, seja no caso dos gramáticos que defendem a perfeição da língua portuguesa – não apenas do ponto de vista literário, mas também gramatical.

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3. O período posterior a 1640

3.1 O barroco e a transição

Em meados do século 17, com a Restauração da monarquia, Portugal passa tardiamente pelo desenvolvimento da burguesia e pelo absolutismo régio reforçado. Para Saraiva, a designação Época Barroca pode ser usada, no caso português, para este período que vai da Restauração em 1640 até as reformas de Pombal, já no século 18.

De uma forma bastante resumida, pode-se dizer que o que marca este período da história portuguesa são as tensões políticas e culturais envolvidas no embate entre o espírito da contra-reforma (através da ação inquisitorial, com a repressão à burguesia de origem judaica, e aos novos avanços científicos) e uma nova ordem, absolutista e burguesa.

António Saraiva conceitua da seguinte forma os reflexos, na literatura, destes acontecimentos históricos:

A luta entre a velha ordem nobiliárquica, apoiada na repressão inquisitorial, e as novas forças de mentalidade burguesa trava-se sob roupagens estilisticamente barrocas.

(...)

Assim é que as mais notáveis personalidades literárias da Restauração, incluindo D. Francisco Manuel de Melo, estão ainda modeladas pela Retórica das escolas jesuítas e pela cultura barroca peninsular, embora acusem já reacções a problemas novos.

 (Saraiva 1996:445)

Definir o Barroco, enquanto época histórica e tendência estética, bem como seus reflexos na literatura, foge aos limites deste trabalho. Estarei, aqui, buscando delimitar o conceito de Barroco à uma forma mais simples e menos controversa, seguindo como linha mestra a seguinte formulação sobre o espírito barroco, bastante sintética, de Antonio Saraiva (Saraiva 1996:442):

a passagem de uma concepção finitista e estática do mundo a uma concepção infinitista, energética e dinâmica.

Esta definição reflete a essência do espírito geral da época, e permite melhor compreender as manifestações estéticas que surgem então. O distanciamento do espírito medieval – finitista e estático – em direção o espírito moderno - com as noções dinâmicas de infinito e movimento - perpassa a produção cultural e científica do período.

O campo científico, como é sabido, passa profundas revoluções entre os séculos 16 e 17; surgem, na Europa, o racionalismo de Descartes, a nova física de Newton, a metodologia experimental de Hobbes e Locke. Do ponto de vista econômico e social, a época marca o surgimento da burguesia e do absolutismo régio.

O caminho entre a estrutura econômica, científica e cultural medieval e moderna não tem sido descrito como gradual e linear, e sim como uma seqüência de pequenas revoluções que afetaram diferentemente cada região da Europa, em ondas de influência e progresso técnico que se chocavam com as estruturas vigentes, e eram mais ou menos bem absorvidas em cada caso.

O Barroco, em sua acepção estética, define a produção cultural deste período intenso de transição; Saraiva cita, como estruturas formais representativas do barroco neste sentido, a renovação da pintura com os efeitos de movimento e profundidade – em Rubens, Velásquez, Rembrandt; a renovação da música, com o contraponto e a fuga, trazendo também o efeito de movimento e profundidade – em Bach e Haendel.

Entretanto, como aponta Saraiva, o espírito barroco deve ser compreendido como designando a correspondência entre este conjunto de estruturas formais e as formas sociais que coexistem na Europa de então:

No seu sentido histórico mais geral, mas determinado, Barroco designa um certo número de estruturas formais ligadas com inovações técnicas e científicas que essencialmente correspondem à coexistência e a interdependência, mesmo conflituosa, de formas sociais profundamente diferentes na Europa.

(Saraiva 1996:442)

Assim, as ondas de inovação estética e científica tinham diferente significado nas diferentes regiões. Neste sentido, no caso da Península Ibérica, o Barroco, assim como o maneirismo – como se denomina o ciclo imediatamente anterior, isto é, de finais do século 16 – precisam ser compreendidos em um contexto político e econômico de repressão às inovações.

Em Portugal e Espanha, a época é ainda marcada pela contra-reforma, e a cultura barroca liga- se organicamente a este fato histórico. A ação da Igreja irá no sentido de isolar a cultura hispânica das revoluções científicas européias; entretanto, a influência destas revoluções não pode deixar de se fazer sentir – e na tensão entre estas duas forças, toma forma a cultura seiscentista. O Maneirismo, por exemplo, é para Saraiva (1996:442),

a expressão artística e literária de um sentimento de desequilíbrio, de frustração e instabilidade relacionáveis, dentro da Península, com a repressão a que era sujeita qualquer ideologia burguesa

Do extenso debate travado pelos historiadores sobre o tópico, aqui importa ressaltar um aspecto básico apenas. Parece fundamental ter em mente, quando se trata da produção escrita no período entre o século 16 e o 17, a questão da tensão entre as estruturas antigas e as modernas. É preciso compreender este contexto histórico para compreender as forças contraditórias que atuam sobre o ideário e a produção de autores como D. Francisco Manuel de Melo e António Vieira. É tarefa difícil encaixar sua obra em termos de escolas literárias, classificar seu estilo, e, até, compreender sua trajetória de vida, se não levarmos em conta as tensões culturais da época.

A idéia da coexistência conflituosa de formas estéticas e sociais contraditórias é importante, por exemplo, para compreender em D. Francisco o uso de uma linguagem arcaizante em um autor preocupado com o progresso da literatura de seu tempo; e para compreender, em Vieira, a força do espírito e ideologia do messianismo medievalista em um homem de ação envolvido na política de seu século.

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3.2 O iluminismo

As três forças que marcam o século 17, tais como explorado nas seções anteriores, vão encontrar seu declínio no mesmo momento em Portugal. A hegemonia da Igreja, a regência espanhola e a estética barroca formam parte de um mesmo ambiente cultural, e quando as forças históricas que determinaram as características deste ambiente deixam o cenário, está instaurado um novo período na cultura portuguesa.

Ainda no início do século 18 prolongam-se, no campo estético, as formas barrocas. O período é marcado pelo início do ciclo do ouro no Brasil; a exuberância econômica por ele propiciada, na opinião de Saraiva, repete o efeito das especiarias no século 16. Isto é, a entrada de ouro não é acompanhada do progresso industrial, nem da melhoria da situação social e econômica em Portugal.

No campo cultural, isso reflete na continuação da característica de impermeabilidade da cultura portuguesa frente aos progressos em curso na Europa – ou, para Saraiva, até, no recrudescimento do conservadorismo, uma vez que a escola jesuíta é mais forte que nunca e tornam-se ainda mais intransigente.

Assim, ainda nas primeiras décadas dos oitocentos, a cultura escolástica e religiosa predomina em Portugal – lado a lado com manifestações que aparentam identidade com as tendências estéticas da Europa, tais como o fausto da corte dos Luíses. Em Portugal, o fausto da corte aplicado nos ainda populares autos-de-fé traduz a convivência do antigo com o novo.

Paralelamente, entretanto, tem início um processo latente (Saraiva 1996:446) de reação que irá gerar as mudanças da época seguinte, com as reformas pombalinas. De fato, para manter viva a força de sua corte, D. João V inicia uma lenta abertura ao estrangeiro, tanto enviando portugueses para aprender nos países europeus como buscando estrangeiros que trouxessem noções de engenharia, mineração, cartografia ou balística.

Isto é, por motivos bastante práticos e imediatos, o rei de Portugal é obrigado a promover uma atualização do ambiente científico português – atrasado pelos anos de cultura escolástica e religiosa – em relação aos progressos científicos estrangeiros. E juntamente com os progressos nos campos mais técnicos, chegarão a Portugal os avanços na pintura, na música, na cenografia, na pedagogia – enfim, nas mais diversas áreas da cultura. Nas palavras de Saraiva (1996:447),

Pelas fendas que se abrem nas necessidades mais clamorosas, penetra o ar de uma mentalidade antiescolástica e antibarroca.

É neste contexto que vão surgir as reformas políticas de Pombal, na segunda metade do século 18. E, como apontam diversos autores, estas reformas têm, como ponto inicial, a reforma pedagógica proposta por Luís António Verney – autor que marca o fim do barroco e o início da época moderna em Portugal.

Hernani Cidade lembra, do ponto de vista do estilo literário, os exageros da fase final do barroco – os desdobramentos da imaginação delirante, a ansiosa rebusca da metáfora inédita (entre cujos exemplos arrola o Sermão de S. Pedro, de Vieira) como contexto para o surgimento de uma reação necessária:

Estes excessos provocaram, na época do racionalismo iluminista, a reacção do bom senso. Entre nós teve ela dois aspectos bem diferentes, porque duas espécies do formalismo grassavam: - o formalismo escolástico, em que o pensamento filosófico, encalhado na especulação aristotélica, ruminando perpetuamente os conceitos da matéria, forma e privação, de costas voltadas aos renovadores da filosofia e da ciência, de Descartes a Newton, e o formalismo gongórico, com seu jogo de palavras, de imagens e conceitos, com seus luxos de imaginação delirante e suas engenhosas construções retóricas, jogando com absurdos.

Cada vez mais sensível o desnível entre a nossa cultura e a cultura de onde emergiram Descartes, Leibniz e Newton; como não procurar submeter a uma crítica severa e construtiva toda uma vida mental fascinada pelo jogo das formas, nos domínios do pensamento tanto como nos da imaginação?

(Cidade 1995:142)

Cidade lembra os cientistas e intelectuais que tentam, no início do século, criticar e dissipar este estado de coisas na mentalidade portuguesa, mas sem grande repercussão – para ele,

(...) haviam-se extinguido quase sem eco as suas críticas, quando Verney iniciou seu ataque.

(idem)

Semelhantemente, Leonor Lopes Fávero sugere que, para entender o movimento da ilustração em Portugal, é preciso levar em conta as características que contextualizam este período imediatamente anterior; a defasagem mental e material da sociedade portuguesa, já discutidas, significam não apenas que as mudanças precisaram ser profundas, mas que o próprio movimento iluminista fica, necessariamente, ele mesmo defasado em relação ao que ocorre em países como a França ou a Alemanha. Isto significou que o iluminismo em Portugal teve, de início, uma tarefa das mais árduas; para a autora,

daí se entende o corte que representou a publicação do Verdadeiro Método de Estudar de Verney, em 1746, e o impacto que foi o governo de Pombal, que se identifica com a Ilustração, embora o período cronológico compreendido por esta última seja um pouco maior. (Fávero 1996: 61)

O corte radical representado pelas idéias de Verney, e a reação obtida pelo Método entre alguns contemporâneos, podem ser apreciados nas Reflexões Apologéticas, escritas pelo jesuíta José de Araújo em 1748. O autor refuta uma a uma as propostas de Verney - criticando, por exemplo, a reforma ortográfica proposta e o ensino da língua materna:

E que diremos de julgar, que se devem introduzir no Reino escolas para os rapazes aprenderem a Língua Portuguesa? Haverá esta moda em França? O homem tem boas idéias; é moda que pais gastem dinheiro para que seus filhos falem. Nas escolas de ler, escrever e gramática tanto falam eles em português que amofinam aos mestres e é necessário castigá-los para que se calem. A nossa língua não é morta para que os naturais necessitem de tal diligência.

(Araújo 1748, apud Hackerott 1986:144)

O padre Araújo defendia, assim, o ensino tradicional de latim sem a intermediação da língua vulgar, através da memorização e do decorar versos, como ainda era o uso em Portugal; e o ensino da língua portuguesa nas escolas era, ainda então, considerado um despropósito. As Reflexões são apenas um exemplo da extensa polêmica gerada pela edição do Método; nas palavras de Cidade,

Não vale a pena pormenorizar a tempestuosa vozearia, em que entram portugueses e espanhóis, todos empenhados, não em demonstrar a sem-razão do Barbadinho [pseudônimo de Verney], mas em teimar em que tudo estava bem – doutrinas e métodos.

Segundo o hábito da polémica, nada lhe foi poupado. A sua crítica denunciava-o como mesquinhador das glórias nacionais e peninsulares, desrespeitador das verdades católicas; negam-lhe a ciência, a nobreza de nascimento, e – o que é mais perigoso – a qualidade de católico. E mais de um lamenta que as chamas do auto-de-fé não venham purificar-lhe a alma, queimando-lhe o corpo.

(Cidade 1995:148)

Entretanto, é o Método de Verney que se tornará o vencedor deste debate, no advento da reforma pombalina. O Alvará Régio de 1759 dá início à reforma do ensino, instituindo classes gratuitas ministradas por professores leigos submetidos a concurso público, estabelecendo uma metodologia em língua materna, e obras de referência para os alunos – entre as quais o Método de Verney. Recomenda ainda o uso da gramática de Port-Royal aos professores. Em 1770 é publicada a gramática de Lobato, que critica todas as anteriores, filia-se explicitamente a Port-Royal, e não se limita à ortografia.

Este momento marca, assim, uma mudança na situação da língua portuguesa enquanto língua de cultura. O português passa a ser ensinado nas escolas e recebe instrumentos normatizadores sistemáticos; institui-se ainda, como já mencionei, uma política lingüística para as colônias, com a instituição da língua portuguesa como língua oficial nos domínios de além-mar.

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Conclusão

Do ensaio necessariamente panorâmico com que pretendi contextualizar a produção escrita na história dos séculos 17 e 18 em Portugal, quero salientar os aspectos que me levaram a sugerir uma nova perspectiva na interpretação da variação apresentada pelos textos produzidos entre os séculos 16 e 18.

Neste sentido, diria que, sobre a produção escrita no século 17, o fato essencial a ser considerado é que neste período a língua portuguesa encontra-se em situação de desprestígio enquanto língua de cultura, tendo sofrido, mesmo, o risco de deixar de se afirmar enquanto língua nacional. Aliado à proximidade estrutural apresentada entre alguns textos produzidos neste período e o castelhano - a língua universal de cultura na Península na época - este fato pode indicar a não-representatividade, em termos gramaticais, das variações apresentadas nestes textos.

Em contrapartida, o século 18, sobretudo em sua segunda metade, é um momento de reafirmação do idioma tanto como língua nacional quanto como língua de cultura, no novo contexto do iluminismo. A meu ver, é desejável, para as pesquisas lingüísticas, lembrar que os textos escritos antes de meados do século 18 e os textos escritos depois de então devem ser vistos como produtos de momentos históricos distintos, uma vez que isto pode incidir sobre os padrões sintáticos apresentados pelos textos.

Este ponto remete a uma questão fundamental, porém de difícil tratamento: porquanto a impregnação lingüística do castelhano na literatura portuguesa clássica seja fato estabelecido, quais suas possíveis conseqüências para a língua portuguesa? Se o bilingüismo em si é pouco estudado, quase nada se diz de suas conseqüências lingüísticas. Uma exceção é Teyssier (1980:71):

É impossível que os dois séculos e meio de bilingüismo luso-espanhol (da metade do século XV ao fim do século XVIII) não tenham tido efeitos na língua. Difícil é, porém, precisar estes efeitos. O bilingüismo luso-espanhol tem sido pouco estudado, tanto em Portugal como na Espanha. O que até hoje mais chamou a atenção dos filólogos foi a contaminação do espanhol pelo português falado ou escrito por portugueses bilíngües. Havia um "castelhano de Portugal", no qual o lusismo se insinuava de mil maneiras. Em contrapartida, a influência que o espanhol pode ter tido no português na época do bilingüismo é quase desconhecida.

Porém, como salienta ainda o mesmo autor:

Há, entretanto, fatos indubitáveis. O emprego muito difundido do "a pessoal" em português clássico ("a funda de David derrubou ao gigante", António Vieira, século XVII) é, sem dúvida, um efeito da impregnação espanhola. Mas os exemplos mais claros pertencem ao vocabulário: por exemplo, a velha palavra portuguesa castelão foi substituída por castelhano (espanhol castellano); paralelamente a cavaleiro, o português tem hoje cavalheiro, tomado ao espanhol (cavallero, hoje caballero) no sentido de "senhor", " homem fino, de boa educação"; mais tardiamente, fronte será substituído por frente; a cidade de Badalhouce tornou-se, muito cedo, Badajoz, à espanhola; barruntar, bobo, congoxa, gana, granizo, introduzidas na mesma época, estão mais ou menos enraizados na língua.

(Teyssier 1980:71)

Aparte o emprego do a pessoal, os demais exemplos trazidos por Teyssier são empréstimos lexicais, sobre os quais é preciso reconhecer que não representam evidência de uma influência mais profunda sobre a estrutura da língua. O mesmo autor o reconhece, ao afirmar, em outro momento:

No nível das unidades distintivas (os fonemas), a evolução do português (...) seguiu um ritmo próprio que parece totalmente independente das divisões cronológicas da história política ou da história literária. Digno de particular realce é o facto de não ter sido a fonética portuguesa em nada influenciada pelos dois séculos e meio de bilingüismo luso- espanhol. No momento em que a língua espanhola passava por uma verdadeira "revolução fonética" (séculos XVI e XVII), o português seguia a sua própria deriva, que o conduziria numa direcção completamente diferente.

Assim, é preciso dizer que, seja na literatura historiográfica, seja lingüística, não há registros de conseqüências lingüísticas representativas da influência do castelhano sobre o português. Este fato deve ser explicado, uma vez que pode ser tomado como evidência contrária à hipótese aqui apresentada – a de que os textos escritos na época clássica guardam características sintáticas explicáveis pela influência da sintaxe castelhana. Uma explicação evidente seria a de que as conseqüências lingüísticas do bilingüismo não foram estudadas, mas devem existir, como afirma Teyssier.

Entretanto, mesmo este autor observa que ao menos no nível fonológico, a estrutura do português não foi modificada na mesma direção que a castelhana. Em vista disto, não julgo ser seguro neste momento perseguir a hipótese de influência do castelhano no nível gramatical. Isto contudo, não invalida – e talvez, antes, sirva para melhor explicar – a hipótese do reflexo do padrão castelhano na escrita portuguesa clássica.

De fato, a possibilidade da influência do castelhano deve ser formulada nos termos de uma convivência dos dois padrões no nível da escrita, e não nos termos de uma competição gramatical clássica. Penso que os fatores históricos que envolvem a questão do bilingüismo apontam fortemente para esta direção.

Aceitando a interpretação de Vasquez Cuesta – o bilingüismo como instância de um processo diglóssico conflitivo – será na verdade mais lógico imaginar que o castelhano não tenha interferido na gramática portuguesa. Como vimos, o processo diglóssico determinará uma divisão de papéis entre a língua portuguesa e a castelhana, na qual a primeira é a língua doméstica, a segunda, a língua universal de cultura. Corroboram esta abordagem, a meu ver, os testemunhos dos escritores da época, nos quais a opção pelo uso do castelhano na escrita é justificada, primordialmente, por ser este o idioma universal. O português, em contraste, é definido como o idioma materno, cujo acesso está limitado aos naturais do reino.

Assim, posso afirmar que o uso do castelhano na escrita convive com o uso oral do português ao longo de todo o tempo do bilingüismo. De fato, não há registros de que o castelhano tenha passado a ser falado em Portugal em detrimento da língua portuguesa. Há, é verdade, indicações de ter sido o castelhano o idioma preferencial da corte – mesmo da corte em Lisboa, no período das rainhas castelhanas – mas isto não significa que a população em geral tenha substituído a língua materna em sua fala.

Assim, aceitando a descrição de Cuesta para distribuição de funções entre as duas línguas, pode-se dizer que o português assume, durante o período do ápice do bilingüismo (a regência dual) o estatuto de língua oral semelhante ao que passa com o catalão, o galego, e outras línguas faladas na Espanha. Línguas estas que vão passar a ser denominadas dialetos, e que, embora (ao menos no caso do galego) tenham chegado a deixar de ser escritas durante alguns séculos, guardam seu estatuto de língua materna entre os habitantes das respectivas regiões.

Ora, ao menos no que tange a abordagem de Vasquez Cuesta, é possível imaginar que a situação do português tenha se tornado, durante um determinado espaço de tempo, semelhante à destes – hoje denominados – dialetos espanhóis. De fato, a autora afirma claramente,

Arrastado durante um período de tempo mais ou menos longo, o bilingüismo diglóssico teria terminado por desembocar num monolingüismo: português se – como se passou – Portugal recuperasse a sua independência, castelhano se fosse totalmente assimilado e se convertesse, não só administrativa como cultural e vivencialmente, em província espanhola.

(Cuesta 1986: 123)

Note-se que a autora não afirma que o português teria se transformado na direção do castelhano, mas sim que o castelhano teria tomado o lugar do português em seu próprio território enquanto língua nacional. É o que aconteceu na Catalunha e na Galícia – onde, contudo, o catalão e o galego sobreviveram na tradição oral. A abordagem de Cuesta pode aparecer como um tanto extrema, em vista de seu isolamento em relação aos demais historiadores. Entretanto, há referências também nestes no sentido de que a língua portuguesa tenha corrido este risco – é o caso de Buesco, em passagem já citada, da qual aqui reproduzo um trecho:

efectivamente – e no século seguinte, pelo menos na primeira metade, os factos vieram a demonstrá-lo – era a língua castelhana e não outra qualquer que punha em risco o prestígio e a circulação do português.

Assim, estou assumindo aqui que o período de bilingüismo não significou o risco de o português sofrer mudanças que o aproximassem do castelhano, mas sim o risco de ser suplantado por este idioma enquanto língua nacional. Neste sentido não é surpreendente que o português não apresente, em termos estruturais/gramaticais, reflexos permanentes da influência do castelhano. Entretanto, a questão dos reflexos na produção escrita coloca-se diferentemente.

Malgrado o português continuar a ser a língua falada mesmo ao longo dos dois séculos e meio de bilingüismo literário, na esfera da expressão escrita, o peso do castelhano como língua de prestígio tenha sido muito grande – como procurei demonstrar. Neste sentido, é preciso contextualizar a produção escrita em português no período de acordo com alguns fatores fundamentais.

Em primeiro lugar, trata-se de escrever em uma língua pouco prestigiada, ao menos no período mais intenso da regência dual. Para esta língua, são incipientes os instrumentos normativos, ou de outro modo, ainda não se encontra madura a norma culta escrita. Em contraste, para a língua universal e de prestígio, a norma já se encontra estabelecida. Além disso, esta língua de prestígio é estruturalmente muito próxima do português, tanto lexical, como morfológica, quanto sintaticamente.

Não creio ser infundado pensar que, neste contexto, a sintaxe dos textos escritos em português passe a refletir a sintaxe castelhana. A escrita portuguesa estaria apenas sendo pautada – muito provavelmente, em um processo discursivo não consciente – pelo modelo do que se constituíra como a linguagem culta. Como vimos, muitos autores da época fazem referência à clareza e facilidade do castelhano, em contraste com a obscuridade, a complexidade do português (malgrado louvarem sua doçura).

No contexto que estou assumindo, as formas mais próximas ao padrão castelhano estariam revestidas de um estatuto de formas cultas e prestigiadas, enquanto as formas ligadas à fala vernácula portuguesa guardariam uma característica menos prestigiosa, remetendo a um falar regional – ou nas palavras do contemporâneo Galhegos, ao falar das praças.

É neste contexto que penso ser possível falar que o português escrito na época sofre a influência do padrão castelhano. Desta forma seria necessário deixar claro que nesta perspectiva, a relação do português com o castelhano não está sendo conceituada como uma competição de gramáticas no sentido mais forte do termo cunhado por Kroch (1994). As formas "inovadoras", nas situações de competição, atingem a gramática da língua no momento da aquisição; elas irão conviver, no nível do uso, com as formas "conservadoras", até que estas sejam expulsas do uso assim como já o foram da gramática.

No caso aqui em pauta, não acredito que as formas castelhanas tenham atingido a gramática portuguesa neste sentido; mas sim, que conviveram com o vernáculo em um uso escrito, restrito, que se distanciava da fala portuguesa. Assim se explicaria esta estranha "competição de gramáticas" na qual a forma invasora (a próclise nos ambientes [X+referencial] perde a luta contra a forma antiga (a ênclise nestes ambientes).

Como a influência do castelhano está delimitada ao nível da escrita, sua maior ou menor intensidade irá depender de fatores não-gramaticais. A variação no padrão de colocação de clíticos registrada entre os autores do século 17 pode ser assim compreendida. Também o declínio do uso da próclise nos ambientes relevantes pode ser compreendido em função do desaparecimento da influência castelhana – que como vimos, não se deu de modo imediato.

Em resumo, é principalmente entre a segunda metade do 16 e a primeira metade do 17 a influência do castelhano é forte. Este é o ápice do processo de diglossia, segundo Cuesta. É também este o período no qual a produção de literatura mais sofre as conseqüências da crise econômica e política, como apontam Saraiva e Cidade. Assim, desde ao menos o final do século 15 o processo diglóssico vai-se instaurando (em um contexto que já configurava a dominação cultural castelhana, para Cuesta).

Porém, pode-se dizer que neste início, bem como ao longo da primeira metade do 16, a dominação espanhola encontra resistência, no contexto do vigor econômico e cultural da Portugal humanista. O advento da contra-reforma a partir de meados do século 16 representa um golpe para a vida cultural letrada – científica e literária – cujas conseqüências são ainda agravadas com a súbita mudança de rumos no plano político e a transferência da corte para Madri, como indica Saraiva.

Tem início então um período no qual a produção escrita em língua portuguesa precisa enfrentar a ausência de incentivos régios para a literatura, o zelo censório contra-reformista, e o recrudescimento da filosofia escolástica (que garante a primazia do latim no debate científico). Soma-se a isto o desprestígio amargado pelo português em relação ao castelhano, esta última já desde a idade média considerada a língua de cultura da península, e o sentimento, patente em escritos da época, de ser o castelhano melhor língua – mais clara, mais universal – que o português.

Se o castelhano já era a língua usada na corte portuguesa, e já gozava este estatuto de universalidade, com a crise de meados do século 16 o português passa ao estatuto de língua interna. Neste período, como observam os historiadores, generaliza-se o uso do castelhano pelos escritores portugueses; a língua passa a ser usada em todos os gêneros literários, incluindo a tradução de obras estrangeiras. Entre os autores importantes do século 16, apenas António Ferreira é citado como tendo permanecido fiel ao português.

É este o estado de coisas vigente quando se restaura a monarquia, e a existência de obras em castelhano publicadas depois de 1640 (incluindo obras em louvor à Restauração) testemunha que o domínio lingüístico sobrevive algum tempo mais que o domínio político. Para Cuesta e Teyssier, apenas quando sai de cena a geração de intelectuais formada no contexto da dominação política espanhola pode-se falar no fim do bilingüismo literário – isto é, mesmo a segunda metade do século 17 ainda sentirá os reflexos do domínio lingüístico castelhano. Soma-se a isto o fato de que, no que tange o estatuto do português como língua de ciência, e sua normatização institucional, a situação pouco ou nada muda até o século 18.

Este cenário parece recomendar cautela na interpretação dos aspectos formais apresentados pelos textos escritos no período mais amplo desde o final do século 15 até meados do século 18, mas mais agudamente por aqueles escritos entre meados do 16 e fins do 17. Um exemplo que me parece indicar com certa segurança a importância desta reflexão sobre o contexto histórico é a questão da grafia. Como visto, a grafia portuguesa precisa esperar até meados do século 18 para receber uma padronização instituída. Ao contrário, línguas como o castelhano tem sua grafia padronizada desde o século 15, com mudanças pequenas.

A variedade das grafias observável nos textos portugueses até o século 18 – por exemplo, as variantes para os ditongos nasais, que podem ser grafados ão am aõ – não pode ser interpretada inequivocamente como refletindo variação na pronúncia; ou, mais crucialmente, a padronização observável a partir do século 18 não pode ser vista simplesmente como retrato do fim da variação na pronúncia. Isto é, para línguas como o francês e o castelhano, a escrita permanece em grande medida estacionária a partir do renascimento. No caso do português, a escrita só se apresentará padronizada no século 18.

O primeiro caso explica-se pela padronização normativa – a grafia deixa, então, de constituir um indicador direto da pronúncia daquelas línguas. No segundo caso, é no século 18 que se identificam os efeitos da norma – ficando por debater qual a representatividade da variação gráfica anterior em relação à fala.

Penso que outros aspectos formais dos textos neste período podem representar um reflexo da situação histórica, no sentido de que a variação, por exemplo nos padrões superficiais de ordem, possa estar refletindo a ausência de norma; e, crucialmente, o fim da variação pode estar relacionado em grande medida à instituição da norma. Isto não significa, entretanto, que a variação refletisse a linguagem oral, por estar a escrita livre das amarras normativas; de fato, um segundo fator deve então ser considerado: o prestígio do castelhano.

Em vista do quadro aqui descrito, é possível imaginar que a escrita portuguesa se orientasse na direção das variantes de prestígio – identificadas nas variantes mais próximas ao castelhano. Assim, no período clássico, a escrita não refletiria mudanças provavelmente em curso na linguagem falada, mas sim estaria orientada na direção da língua de prestígio.

Crucialmente, é possível observar uma coincidência notável entre a trajetória da variação próclise/ênclise, tal como acima descrita em diversos trabalhos em sintaxe diacrônica, e o desenvolvimento do bilingüismo literário (ou do processo diglóssico, nos termos de Vasquez Cuesta).

A próclise começa a ser atestada nos ambientes de "variação" em textos portugueses produzidos a partir de meados do século 15 - momento em que, para Vasquez Cuesta e Teyssier (1982), tem início o processo de ascendência da cultura castelhana em Portugal. O período no qual a próclise predomina nos ambientes de variação (para Martins 1994, Ribeiro 1996, Torres Morais 1995) - o século 16 - é, também, descrito como o ápice da influência castelhana (por Vasquez Cuesta, Teyssier, Saraiva, e Cidade 1985).

Nesse estágio, generaliza-se o uso do castelhano pelos escritores portugueses, a ponto de o poeta António Ferreira ser mencionado, por diversas fontes, como o único autor a permanecer fiel à língua materna. Por fim, o declínio do bilingüismo literário (ou o desaparecimento gradual do processo diglóssico) se dá em direção do final do século 17 - e os autores consideram que apenas depois do início do século 18, com o desaparecimento das estruturas econômicas e culturais que determinavam a mentalidade barroca, pode-se identificar o fim do estatuto prestigioso da cultura castelhana.

Ora, justamente neste período a próclise vai gradualmente deixar de ser a opção preferencial nos ambientes de "variação"; e, a partir de fins do século 18, a colocação pré-verbal dos clíticos já não é mais registrada nestes ambientes (como apuram Martins 1994 e Torres Morais 1995).

Naturalmente, a relação entre os fatores levantados pela pesquisa inicial sobre a história externa e pela observação dos dados preliminares constitui, neste momento, não mais que uma coincidência.

Entretanto, as indicações são, a meu ver, fortes o bastante para justificar a verificação de uma hipótese alternativa para a compreensão da trajetória da mudança gramatical que origina o PE moderno: a colocação pré-verbal dos pronomes clíticos nos contextos sintáticos em que a ênclise é a opção gramatical do PA e do PE (ambientes tradicionalmente descritos como de variação diacrônica) não constituiria uma opção gramatical do português clássico, mas antes, resultaria da influência do castelhano como língua de cultura, durante o período de bilingüismo literário.

O projeto de pesquisa pesquisa Mudança Lingüística e Fatores Extra-Gramaticais: o caso do português clássico terá, como objetivo central, a verificação desta hipótese.