"Quem é o bocó?"
Sírio Possenti (*)
Todos os defensores da língua pura estão criticando uma locução
verbal supostamente nova que apareceu e se espalhou. Confesso que não a ouvia, ou não me dava conta de que existia, até que tive
minha atenção chamada para ela pelos guardiões da língua que imaginam que tudo aquilo de que não gostam ou for novo - o que vier
antes - é necessariamente ruim. Penso o contrário. Se não gostam, deve ser interessante. Se acham que não serve para nada,
alguma serventia deve ter.
Não sei qual teria sido o estrato social que mais aderiu, ou
aderiu antes, à novidade. A crer no manifesto endossado por Gaspari, o nicho seria o telemarketing. O certo é que a
locução aparece em todas as falas de todas as telemarqueteiras. Devem receber severo treinamento, que inclui pelo menos duas
exigências: não dizer nada que não esteja no script, e enunciar, em algum momento, a famosa fórmula "vamos estar -ndo". O que
preenche "-ndo" vai depender do serviço. Se é uma encomenda, então a empresa "vai estar enviando". É uma reclamação? Alguém "vai
estar providenciando". Mas a expressão invadiu também as escolas: alunos já me disseram que vão estar me enviando trabalhos por
e-mail.
O alcance da novidade deve ser bem maior. Em pronunciamento em
rede nacional de TV, em meados de agosto, o próprio Ministro da Saúde, José Serra, que não é jovem - mas talvez seja (tele)marqueteiro
-, falou de "outra vacina que vamos estar aplicando amanhã". Não sei o que alguns (muitos, de fato) têm contra formas
lingüísticas novas. Em quase tudo as novidades são índice de qualidade. Desconfio que todos gostam de novidades em tudo, exceto
(pelo menos) os que cuidam da língua nos domínios da gramatiquinha. No que segue, vou mostrar que não há nada de esquisito nessa
forma tão criticada. Seu único problema é não ser abonada pelas gramáticas. Vou apresentar uma análise preliminar. Vamos por
partes.
Vejamos primeiro a sintaxe da locução: a ordem dos verbos
auxiliares é perfeitamente canônica. Sabe-se que os verbos auxiliares vêm sempre antes do principal (como em "vou sair"). Se
houver mais de um auxiliar, haverá ordens permitidas e outras proibidas ("tenho estado viajando", mas não "estive tendo
viajado"; "vou estar saindo", mas não "estarei indo sair"). Resumo da história: a nova locução está em perfeito acordo com a
sintaxe do português: sua ordem é ir + estar +ndo. É, pois, absolutamente gramatical.
Vejamos agora o que significa. Os que não gostam da forma dizem
que não serve para nada, que há outra melhor para expressar a mesma coisa (eles não são nada sutis). Ao invés de "vou estar
mandando", que se diga "vou mandar", ou "mandarei", dizem eles. Estão errados: pode ser que nem todos os casos sejam claros, mas
em muitos, nitidamente, a nova forma veicula aspecto durativo (ou seja, anuncia um evento que durará algum tempo para se
realizar). Para que falar de aspecto durativo não pareça estranho, relembre-se (ou anote-se) que o imperfeito do indicativo
apresenta o mesmo aspecto: formas como "amanhecia", "pintava", etc., referem-se a eventos ou ações que não são instantâneas, que
têm certa duração.
Por isso, não é a mesma coisa dizer "vou mandar" e "vou estar
mandando", exatamente por causa da diferença entre "ir" (que marca só futuro) e "ir + estar" (que marca futuro, por causa de
"ir", e duração, por causa de "estar"). "Vou estar providenciando" significa, entre outras coisas, que a providência não se dará
instantaneamente. Além disso, o compromisso expresso em "vou providenciar" é mais incisivo do que o expresso em "vou estar
providenciando". Mais ou menos como é mais incisivo dizer "providenciarei" do que "vou providenciar".
Além desses, a meu ver, há outro aspecto importante, este de cunho
pragmático ou interpessoal: a expressão conota gentileza, formalidade, deferência (se verdadeira ou simulada, não importa). Ou
seja: bem ou mal, mesmo que seja para postergar um serviço de que se precise urgentemente, deve-se reconhecer que a recusa é
pelo menos expressa de forma não grosseira, nem mesmo franca, de fato (o que alguns preferem, no entanto; eu mesmo, aliás). Se
eu receber um convite para fazer uma palestra e se não puder aceitar, agora sei como responder. Antigamente, eu dizia "não posso
ir/aceitar", ou "não vou poder ir/aceitar". A segunda forma é notoriamente mais gentil do que a recusa seca expressa na
primeira. Mas doravante direi, e imagino que soarei muito mais civilizado e moderno, que "não vou poder estar aceitando o
convite", ou que "não vou poder estar deixando de dar aulas nesta data".
Além dos aspectos acima, seria certamente interessante investigar
se a enorme aceitação desta nova locução não se deve a uma cultura da falta de compromisso. Não seria a primeira vez que se
estabeleceria uma relação estreita entre um aspecto da língua e um traço de cultura ou de ideologia.
Assim, pode-se pensar qualquer coisa desse tipo de expressão,
exceto: a) que não serve para nada, já que expressa aspecto (da ação), é sinal de deferência, pois se trata de uma fórmula
gentil e talvez seja um indício revelador de um traço de nossa cultura atual; b) que é simples, bobo. De fato, como vimos, é
algo bastante sofisticado. É necessária uma enorme sofisticação para dar conta da sintaxe da locução e para empregá-la na hora
certa.
Uma coisa é não gostar da construção (de gustibus et coloribus
non est disputandum). Isto é democracia. Outra é achar que isso não é português ou que não serva para nada. Aí já é falta de
análise.
(*) Sírio
Possenti é professor de Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. |