A Procissão do Enterro
O perdão das injúrias, o bem pelo mal, eram neste dia os orvalhos que
reverdeciam as flores que se fanavam da fé. A morte do Cristo dissipava o horror da imortalidade e fazia cintilar a esperança
nas plagas nebulosas da vida eterna. A crença pública imobilizava-se nas raias contemplativas, onde as ações boas conferenciavam
entre si.
Como uma repercussão das palavras que o filho de Deus deixara cair dos
lábios no alto do Gólgota, o Imperador perdoava a criminosos. Inimigos vinham de longe reconciliar-se; as famílias reatavam
relações partidas; o filho rebelde inclinava diante do pai a fronte já obediente; e o escravo fugido comparecia indultado
perante o senhor.
Nas fazendas, o eito e o tronco não gotejavam sangue, as gargalheiras
não maceravam as vítimas, as correntes do cepo não mordiam o pé do cativo nas torturas das senzalas. Era o reinado da paz e do
perdão; o único dia talvez em que se consideravam bem-aventurados aqueles que choravam!
E a penitência e a devoção encaminhavam à casa de Deus a turba pacífica.
Na Capela Imperial, as velas gastas na vigília ao Santíssimo fumavam, avivando o lume dos morrões esbraseados e longos. A igreja
conservava as portas cerradas em sinal de dó, o interior era sombrio, e os sacerdotes, aparecendo da sacristia, tomavam o
altar-mor: o ofício da Paixão começava abrupto.
A adoração da cruz, deitada ao longo no chão do presbitério, o bispo e o
cabido faziam prosternados, findo o que, a comunhão derradeira da semana celebrava-se solene.
A Paixão, que iniciava-se por uma profecia, era o Evangelho dialogado em
canto gregoriano. Os Judeus, o Cristo, Pilatos e os Apóstolos exibiam-se na cena sagrada, tendo por intérpretes o coro e três
padres, que, de dois púlpitos e da laje do templo, entretinham a ação, combinando trechos bíblicos com as cadências sublimes de
antigüidade remota. No desempenho da tragédia divina, os padres, elevando os braços, alteavam a voz, - Eram os bradados.
A paixão concluía-se pelo ofício de Trevas, que, em tempos afastados, precedia de pouco à saída da procissão do Enterro.
Das oito para as nove horas da noite, duas dessas procissões percorriam
as ruas da cidade; a do Carmo e a de S. Francisco de Paula. Escolhendo como tipo a do Carmo, a sua descrição é curiosa,
resistindo severa a confrontos longínquos.
Na primitiva, os personagens do
cortejo eram menos numerosos; porém, uma espécie de prólogo, de intermédio dramático, numa encenação de efeito, dava a conhecer
os principais caracteres.
***
Em 1831, por volta das quatro horas da
tarde, a procissão do Enterro estava na rua, sendo utilizados, para se encarregarem de diversos papéis, cantores e músicos do
ofício de Trevas.
Esgotadas as práticas de sexta-feira na Capela Imperial, o Carmo enchia-se de
povo para observar uma verdadeira cena de teatro. A um sinal convencionado, abriam-se as cortinas de damasco do coro, e as
figuras que tinham de formar o préstito fúnebre apareciam agrupadas, causando grande sensação.
Minutos depois, cerrava-se o pano, e aqueles personagens incorporavam-se
nas ruas populosas ao cortejo admirável. A procissão do Enterro, como se fazia mais recentemente, suprimira esta cena histórica,
acrescentando, como compensação, novas figuras e mais avultados acessórios.
A procissão do Carmo saía às oito horas da noite. A multidão, apinhada
no largo do Paço, defronte da igreja, e na rua Direita, movia-se em massa, aqui e ali, como uma onda de asfalto fervente, negra
e espelhante.
O luar batia ao longe no mar e polia as paredes brancas e as sacadas dos
edifícios, de onde centenas de famílias debruçavam-se sôfregas. As luminárias douravam das janelas e sacadas, as colchas
flutuantes ao vento, produzindo os reflexos irisados uma perspectiva brilhante.
Com os tambores forrados de preto, a bandeira enlaçada de crepe e as
armas em funeral, um batalhão da guarda nacional postava-se a um lado da praça para as honras fúnebres do saimento.
A um momento inesperado, súbito clarão golfejava da porta principal da
igreja que se abria. A gente que ocupava o adro, descia; o povo separava-se em alas na rua Direita; os sineiros, no alto da
torre, despencavam o corpo, abraçando a cabeça dos sinos; e todos voltavam o rosto, estirando o pescoço, para o alpendre do
templo. As pessoas mais sisudas e discretas colocavam-se a maior distância, o que deveras convinha à apreciação do aparatoso
ato.
Bem como enorme pedaço de veludo negro, cortado por dois galões de fogo,
assim era aquela trilha, serpeada pelas luzes das tochas em profusão. A procissão havia saído... De há tantos anos passados,
falemos do préstito, revivendo recordações.
Rompendo a marcha e levando adiante de si a multidão que se atropelava,
seis soldados da cavalaria da polícia, com espadas desembainhadas, alinhavam o povo.
As mulheres suspendiam nos braços as criancinhas sonolentas, o chefe de
família dispunha, segundo a idade e o tamanho, os filhos e as senhoras, para que bem vissem; e nas portas escuras, trepados em
mochos, os escravos procuravam, da melhor forma, espiar o que se passava. O rebuliço e os arremessos eram infalíveis, como se
pode deduzir. E a matraca, batida por um indivíduo vestido de balandrau, troava...
Equilibrado por um irmão do Carmo, o Lábaro romano campeava nas
alturas com a vistosa inscrição em letras de ouro: S. P. Q. R. À sua sombra, o Farricoco, envergando uma túnica escura, com
capuz sobre a cabeça, e máscara aberta para os olhos e boca, simbolizando os Novíssimos do Homem, tocava uma trombeta, sustendo
na mão esquerda uma comprida e fina vela de cera, da qual a instantes sacudia os pingos.
Com este personagem bizarro começavam a passar os Terceiros da
confraria, com seus hábitos próprios, empunhando grossas e pesadas tochas, conduzindo alguns, pela mão, um anjinho, cada qual
com um instrumento da Paixão.
Nessa procissão, como nas demais, os comerciantes portugueses que
representavam as riquíssimas irmandades adornavam-se de suas condecorações nacionais, cravejadas de finíssimas pedras e de
brilhantes de raro valor.
Pode-se dizer que a confraria do Carmo comparecia toda, preenchendo os
irmãos os grandes claros, os intervalos prolongados, entre a aparição dos personagens que a crença daquela época supunha haverem
acompanhado o enterro do Cristo.
O préstito parava amiúde; os anjinhos, fatigados, iam quase de rastos; e
o guião, com o seu séqüito de irmãos da Misericórdia, com castiçais de pau e velas acesas, obscurecia os ares,
azuladamente transparentes pelo brilho da lua cheia.
E nem mais se ouvia a matraca... O Farricoco perdera-se de vista. A
este, porém, vinte minutos mais tarde, seguiam-se os quatro Profetas maiores, em costumes de mouros, perfilando ao ombro
escadinhas de pinho, marchando imperturbáveis. Este grupo, barbado e de cabelos cacheados, não passava isento de motejos. E os
irmãos prosseguiam, os anjinhos mais desenvolvidos marchavam, balançando a perninha, e os Profetas lá iam...
Um destacamento da guarda romana, com alabardas, lanças e escudos
raiantes, assomava após, capitaneado por um Centurião, homem colossal e resoluto. De viseira e capacete de couraceiro, com sua
banda de seda franjada de ouro, levantava o passo graduado, deixando assentar a pesada e enorme alabarda nas pedras, que
estrondavam à pancada. Os rapazes gostavam desta figura e aplaudiam o desgarre.
Os anjinhos, portadores da coluna, da cana e da coroa
de espinhos, indicavam que o sarcófago do Senhor passaria em breve. Então, as três Marias, que eram músicos vestidos de
dominós pretos e de máscara, avizinhavam-se, com as suas auréolas em volta da cabeça, fazendo leves mesuras, e murmurando
lugubremente: - Behu! Behu!
A estes figurantes, que tornavam-se às vezes ridículos a espíritos
imprudentes e pouco refletidos, sucedia o coro dos músicos da Capela e o Anjo-cantor. O Anjo-cantor era uma beleza de dezesseis
a dezoito anos, ricamente vestida e cingindo um diadema de ouro e brilhantes.
Subindo uma escada de degraus largos, quando entoava, desenrolando o
sudário ensangüentado, a antífona - O vos omnes qui transitis per viam - sentia-se que por ali ia passar alguma coisa de
divino. As flores, atiradas das janelas, forravam-lhe o caminho; o esquife do Senhor aparecia.
À semelhança de um lago de estrelas frias, o sarcófago de prata maciça
oscilava ao ombro de frades do Carmo, de alva e estola atravessada, coroados de espinhos. O religioso silêncio que dominava as
multidões era apenas quebrado pelos rufos abafados de tambores, e pela marcha fúnebre que se executava longínqua.
Em seguida, vinha o andor de Nossa Senhora, carregado por irmãos do
Carmo. Como o esquife, este andor era todo de prata esculpida, mas guarnecido nas quatro faces por estreitas cortinas cor de
violeta e douradas, que terminavam em ricas franjas de ouro. A sagrada imagem no seu pedestal rodeado de ciprestes, impunha-se
como santa, como virgem e como mãe!
Este cortejo era fechado pelo batalhão, cuja música tocava, durante o
trajeto, marchas fúnebres. Só depois das onze horas a procissão recolhia-se à igreja de onde saíra, ficando por mais algum tempo
as imagens expostas à adoração do público.
Pouco depois, o sermão de lágrimas, outrora verdadeiro primor de
eloqüência, era declamado pelo orador mais célebre aos fiéis reunidos naquele sacrário de dor. Muita gente do povo percorria os
Passos, visitava os Hortos, ficava estacionada nos adros das igrejas expostas ao público.
Igual procissão, que saía de S. Francisco de Paula, tinha seus
partidários, seus devotos, mas itinerário diverso.
Sentadas nas calçadas, ao longo das ruas, dos degraus das igrejas, as
vendedeiras de doces e confeitos arriavam os tabuleiros, dentro dos quais uma lanterninha de folha-de-flandres, com uma vela
acesa, alumiava os mostradores ambulantes.
À distância, essa miríade de luzes movediças dava a idéia de uma noite
clara dos trópicos, com as suas moitas cheias de luz e suas campinas chuviscadas de vaga-lumes.
Da Semana Santa, cujo livro de costumes o nacionalismo brasileiro atirou
ao olvido, salve-se ao menos esta lauda da tradição. |