A começar da véspera, o luto obscurecia o esplendor das igrejas. A
pirâmide ardente do altar-mor em dias de festa havia desaparecido, e a fisionomia consternada dos templos, em que luzes isoladas
bruxuleavam fúnebres, convidava os fiéis à penitência e à contrição.
Em épocas que a nossa lembrança descobre, a Quinta-feira Santa era um dos maiores dias do povo; dia
exclusivamente consagrado à expiação das faltas, aos sacrifícios propiciatórios.
Durante a semana, os templos transbordavam de devotos que iam
desobrigar-se; a voz eloqüente do orador sagrado retumbava nas naves como um paroxismo profético da eternidade; e os santos, em
seus nichos dourados, ocultavam-se por trás das cortinas roxas, apenas o sacerdote levantava a antífona das Trevas.
E quanto fervor! De quanta poesia a imaginação popular exornava esses
atos, esses deveres!... As superstições sucediam-se às práticas religiosas, o recolhimento da consciência serenava as paixões, e
as Endoenças como que colocavam a população na presença de um Deus agonizante.
O que se passava na Quinta e Sexta-feira Santa no seio das famílias era
de uma simplicidade primitiva e tocante. "Porque Nosso Senhor estava doente", a casa não se varria, os escravos não trabalhavam,
os meninos não faziam bulha. Não se cantava, não se dançava, não se tocava. As correções corporais eram abolidas; falava-se
baixinho, jejuava-se, rezava-se...
As donas-de-casa emprazavam-se para quando rompesse a Aleluia certo
ajuste de contas com as escravas delinqüentes e os filhos traquinas.
No corpo das igrejas e nos corredores, nas sacristias e nos claustros,
gente de toda a classe buscava os confessionários, desde o sábio e o alto funcionário público, até o homem obscuro e o cativo
humilde, cuja metafísica limitava-se a crer e orar.
O jejum, não obstante ser obrigatório, sofria restrições: eram excluídos
os doentes e enfermos, as senhoras grávidas e as crianças, os velhos e as mulheres que amamentavam. A abstenção de toda a casta
de jogos e divertimentos, e a continência, em qualquer condição, constituíam uma lei.
Durante a semana final comungava-se. O padre adiantava-se no
silêncio glacial das igrejas, acompanhado dos acólitos; e, diante da toalha imaculada, os fiéis, de joelhos, recebiam a
partícula sagrada.
E ao brilho do cibório magnífico e dos círios acesos, um cálice de prata
repleto d'água circulava na destra de um irmão de confraria, bebendo um gole cada um dos penitentes, absolvidos dos erros dos
dias implacáveis.
O ofício da Paixão, na Capela Imperial e no Carmo, era concorrido não só
pela multidão anônima, porém ainda pelo que havia de mais elevado e distinto entre a nobreza e o povo.
Especialmente na primeira destas igrejas o pontifical do bispo, o
comparecimento do Imperador e dos seus ministros, do mundo oficial enfim, adquiriam mais deslumbramento ao faiscar das gemas
brilhantes sobre o reflexo negro dos veludos e sedas das ricas damas que, das tribunas e do interior das grades laterais,
aguardavam, piedosas e belas, a cerimônia da Paixão e do Lava-pés.
Depois da missa, da sagração dos óleos místicos e de desnudados os
altares, arriavam-se os sinos, a hóstia era depositada no cofre ou túmulo; a música a vozes executava
arrebatadoras composições de José Maurício e de outros mestres, seguindo-se após as Lamentações - tudo o que há de mais
inspirado na poética sonora do cristianismo.
As notas repassadas de imprecações e angústias do doloroso e patético
drama das Lamentações, a multidão como que via, na série de plangentes antífonas, os profetas da antiga lei ressurgirem nas suas
proporções incomensuráveis, mas, no meio das apóstrofes, entornando a segurança e a fé nos corações desolados. E o coro,
respondendo às argüições soleníssimas, parecia o eco de uma ruína que desabava.
A estética daquele tempo tinha como forma de arte a beatitude d'alma e a
cristalização eucarística das lágrimas!
Absorvida no lutuoso motivo, a reunião dos fiéis tornava-se respeitosa e
sentida. E aos reflexos lívidos do santuário, aquela espécie de viajantes das terras austrais descobria o aspecto calmo e sereno
do céu. E a matraca, que desde a véspera substituíra nas Trevas o sino, atroava a sacristia. A arquibancada para o Lava-pés aí
estava sobre o mármore sagrado da igreja, para o mandato comemorativo.
O bispo, na majestade do seu porte, avultava com os seus sacerdotes e
comitiva; e doze padres, alinhando-se, sentados nos lugares determinados, indicavam o complemento do rito, quanto aos
oficiantes.
O venerando imitador do Cristo, identificado com o seu papel, patenteava
toda a humildade do Divino Mestre quando, interrompendo a ceia, lavara os pés aos seus discípulos, pressentindo já na face
pálida como as nuvens do inverno o beijo frio e viscoso da traição de Judas.
Durante a locão, o coro da Capela entoava umas harmonias de José
Maurício, tão inspiradas que enlaçavam em sua sublimidade maravilhosa o grandioso, o mistério, o amor e a prece! Quanto esta
cerimônia findava, celebravam-se as Trevas.
O altar do Sacramento, guardado por sentinelas com as armas em funeral,
ficava iluminado como uma montanha de fogo; e dividindo os quartos da noite, os irmãos velavam a hóstia consagrada. Ali estava à
luz - no resto da igreja rolavam as trevas.
O efeito conveniente dos acessórios destacava todo o Intermédio
de tristeza que ia desempenhar-se. No santuário, ocupava o centro um candeeiro triangular, com quinze velas de cera amarela, que
queimavam crepitando e fundiam-se em grossos fios. E o conto das visões proféticas, os lamentos e as orações, ecoavam
lugubremente no recinto e nos altares despidos dos adereços de outrora.
O simbolismo é o transcendente dos cultos. O candeeiro das Trevas tinha
essa expressão e esse caráter. À medida que findavam os salmos, a modo que a morte, aninhada em algum turbante de sombras,
alongava a asa por sobre uma daquelas luzes... Um acólito as apagava.
Adiantando-se o Ofício, mais se adiantava a negridão que peneirava-se no
templo, até que o círio do ápice do referido triângulo ficava único como um pensamento que não morre, como um santelmo de
náufrago aos frêmitos da tempestade. Um corista, porém, o retirava, e, levando-o para trás do altar-mor, aí o escondia.
Entre Deus e o sol há um ponto de contato: não é necessário que eles se
mostrem, para que sua luz ilumine os horizontes e o mundo. - Aquela vela simbolizava o Cristo morto rasgando com ondas de
esplendores o ar noturno do sepulcro! E os padres, como uma legião de sombras resvalando no caos, murmuravam: - Miserere.
Então, o círio misterioso reaparecia, o silêncio era substituído pelo alvoroço, pelo bater de livros nos bancos e o estalar
ensurdecedor das matracas.
Enquanto a Capela Imperial retinia dos últimos rumores das Trevas, no
paço o Imperador humilhava a sua fronte coroada diante de onze pobres e um sacerdote, na cerimônia do Lava-pés. Semelhando a
Vítima divina, e a exemplo dos papas, dos reis, dos mais imperadores, dos arcebispos e bispos, dos abades e provinciais, Sua
Majestade mantinha esses estilos, empanados presentemente por hálitos heréticos.
Este ato era concluído pelas esmolas de moedas de ouro aos pobres, e a
oferta de um ramo de flores ao padre que os acompanhava.
Desde o meio-dia o exército cingia de crepe as bandeiras, as músicas
calavam-se, as armas ficavam em funeral. À tarde, as consoadas nos conventos e domicílios privados...
Na Quinta-feira Santa, a partir de
seis horas, a população, vestida de luto, comprava amêndoas e visitava as igrejas.
***
Da multidão silenciosa ouvia-se nas
ruas o burburinho confuso e cadenciado. O farfalhar das sedas, o ruído da turba em caminho, palavras ao acaso, condensavam-se em
certa altura, numa ondulação única, porém larga e igual. A visitação, depois da desobriga, tornava-se com o que um respiradouro
àquela gente, enlevada no misticismo dos crepúsculos cristãos.
As igrejas soturnas atraíam nessa noite todas as classes populares; por isso
que os painéis da Paixão ou os Passos, e a exposição do Senhor Morto, se haviam preparado e disposto segundo a letra da
tradição.
Ao transpor-se o limiar de um templo, deparava-se ao olhar o santuário
quase ermo de luzes e coberto de panejamentos negros.
Habituando-se à escuridão, quem se aproximasse descortinaria a cena
mortuária preparada no fundo, cena comovente e destinada a impressionar os espíritos piedosos.
Na Lampadosa, por exemplo, armavam com folhagens um Horto
verdadeiramente tétrico, esclarecido com escassez, no meio do qual a imagem do Cristo morto, envolvido no lençol do jazigo, era
guardada por irmãos do Santíssimo, com tochas acesas, de opa vermelha, tendo a um lado uma grande salva de prata, onde cada
visitante depunha o seu óbolo.
Na generalidade, os Passos do Rosário e os Hortos eram pouco
comuns. Simplificando o aparato, a exposição na pluralidade das igrejas resumia-se em colocar o Senhor Morto embaixo do
altar-mor, do qual retiravam a face esculpida, ficando sobre o altar a Virgem das Dores, nas solidões intermináveis de sua
agonia sem tréguas.
Os irmãos da confraria - e mais ortodoxamente os do Santíssimo
Sacramento - velavam alternativamente com tochas ardentes o simulacro de túmulo do cadáver de um Deus.
Os fiéis, que deviam visitar, pelo menos, sete igrejas, dobravam o
joelho no topo dos degraus, inclinavam o corpo, abaixavam a fronte, beijando de preferência os dedos do pé ou o dorso da mão
ensangüentada, da imagem estendida. E, erguendo-se compungidos, sacudindo a poeira dos vestidos, deixavam na salva a esmola
espontânea, saindo em seguida.
Entre as famílias, entre as pessoas mais chegadas, entre o povo
finalmente, a frase: - "me perdoe alguns agravos" -, era própria do dia. E este dizer tão simples, que autenticava a desobriga
da quaresma, abrangia os derradeiros temores de uma alma purificada pela religião e pela penitência.
A exposição das baixelas de prata e de ouro, do paço da cidade,
disputava a concorrência com as mais esplêndidas igrejas. Até meia-noite, que durava a visitação, magotes de povo empreteciam as
ruas.
O comércio de amêndoas estava no seu auge, as confeitarias repletas de
compradores, e o luxo ofuscava. Ninguém havia que resistisse à tentação de comprar um presente de festas, um objeto qualquer
para uma oferta.
Os estabelecimentos especiais, como as confeitarias do Deroche,
Castelões, João Guimarães, Carceler, Castanino, do Felipe do largo da Carioca, e do Neves do largo do Capim, ostentavam-se
caprichosos, com suas cortinas de cassa nas portas da entrada, com suas galerias feitas em colunas e forradas de seda, com seus
candelabros e arandelas de gosto e preço.
O povo chusmava nessas casas, escolhendo à vontade caixinhas e cartuchos
de amêndoas, deliciosas empadas, cestinhas com asas, enfeitadas com fitas e papéis, confeitos de amêndoas, cravo, canela etc.
Por entre as soberbas jarras com flores das escadarias, a classe fina da
sociedade, as famílias importantes e ricas chegavam aos salões luxuosos do João Guimarães, em que os gelados, os doces
saborosíssimos e os sorvetes eram servidos por empregados luzidos e atenciosos. Ao movimento generalizado e incessante presidia
a boa ordem das nossa festas populares.
Felizes tempos aqueles em que o povo tinha crenças e expansões íntimas!
Mas esses tempos passaram... |