A Véspera de S. João
(Sergipe)
Na véspera de S. João nas belas
plagas do Norte, como foram alegres outrora aqueles sítios, aquelas vilas e povoados incultos, aqueles sertões vastíssimos e
maravilhosos, comemorando em tradicionais festejos o nascimento do Batista!...
Aquele povo, religioso e altivo, votado por índole às superstições
e aos folguedos, influía-se por tal forma nessa festa ânua, caracterizava-se por tal modo com colorido próprio, que a descrição
desses personagens e costumes constitui um verdadeiro quadro do gênero a suspendermos aos muros do passado, onde as inscrições
de nossa nacionalidade se apagam quase a olhos fitos.
Apesar de generalidades quase em pouco dessemelhantes em todo o
Norte do Brasil, era em Pernambuco e em Sergipe, onde a véspera de S. João primava pelos aprestos e pela promiscuidade dos tipos
que figuravam em grupos, pelas apoteoses verdadeiramente teatrais que adornavam a noite de flamas intensas ou moribundas, que lá
se iam refletir nos horizontes matinais como largos borrões violáceos e alaranjados.
Recolhendo mais diretamente da Bahia a nota capital dos festejos,
era em Sergipe e particularmente na Vila do Lagarto que a tradição se perpetuava com o verdor primitivo, enfeixando num momento
dado o elemento lendário e o elemento popular, na quinta-essência do seu perfume e de suas pitorescas exibições.
O local escolhido nessa vila para o grosso dos festejos era a
Praça da Matriz, onde desembocavam várias estradas da Estância e Simão Dias, campeando a garrida esplanada entre a mata e o
sertão, entre a lagoa dos Missionários e a do Padre Pacheco.
Daí as alvas torres da Piedade e do Rosário erguiam-se absolutas
às vistas crentes dos sertanejos, contornando estes templos ampla cintura de pequenas casas, rudemente arquitetadas e dispostas.
Desde o amanhecer tornava-se esse largo curioso e encantado pelo
movimento que se desenvolvia, pelo antecipado regozijo dos habitantes, por uma dezena de coisas outras que atraíam a muitos e em
que se empenhavam não poucos.
Dias antes longos bambus cortavam-se no mato para os foguetes em
preparo; os principais da folia acondicionavam em alforjes rojões, pistolas, ronqueiras, craveiros, busca-pés etc., entrando em
várias casas carregadores com cestos de milho verde, carás, batatas, aipins, cocos, inhames, ovos e o mais necessário às
tradicionais ceias de S. João.
Nas salas arrumadas, acercados de velas de cera, lá se achavam os
oratórios e os tronos, que descansavam em custosas toalhas de crivo a pequena imagem de São João, em frente da qual as gentis
matutas, os escravos e as famílias haviam rezado as clássicas novenas e ladainhas.
Aos primeiros clarões do dia, diversas árvores, com especialidade
palmeiras, barulhavam arrastadas por foliões em tropa, que cavando oportunamente a terra as plantavam, amarrando-lhes em volta
do topo carás, milhos, cocos e feixes de cana, ao mesmo tempo que tabaréus possantes arriavam do ombro pesados troncos e a
precisa lenha, contornando-as em fogueiras.
Barricas repletas de combustíveis, cabeças de alcatrão fincadas ao
acaso, mastros encimados de boneca, todos os acessórios enfim descortinavam-se de um olhar, não sendo raros no lufa-lufa os
vivas as S. João, as resingas, as quedas no atropelo, as cantarolas e as gargalhadas, que amenizavam a lida e consagravam o dia.
Eis senão quando, para mais acentuar o ritual da noite, à
semelhança de saltitantes pombas ao alvorecer dos ninhos, moças e crianças ornadas de floridas capelas, vestidas de branco e
enfeitadas de fitas transpunham alvissareiras as salas festivas, dançando cadenciadas e belas, cantando populares trovas:
Capelinha de melão
É de S. João;
É de cravos, é de rosas,
E de manjericão.
E isso lhe dava entrada nos folguedos do lar e ao relento,
continuando em langoroso e ardente ritmo mais outros cantares:
Anda à roda, candeeiro,
Anda à roda sem parar,
Que aquele que errar
Candeeiro há de ficar.
Candeeiro... ô!...
Está na mão de ioiô!
Candeeiro... á!...
Está na mão de iaiá!...
Essas cenas, esses preparativos iam até o entardecer, em que as
máquinas (balões) pontuavam de fogo o ar obscuro, e a molecada e os moradores acendiam as secas achas das fogueiras e os
primeiros rojões faziam-se ouvir, levantando os ecos de além.
Pouco a pouco, animando-se os brinquedos, das janelas abertas as
moças e os rapazes acendiam pistolas, rodinhas e craveiros, que formavam, sustidos em braços rompentes, lençóis de fogo, tiros
cujas lágrimas caíam, quais gemas líquidas nas paredes fronteiras e no chão da praça, ao passo que moradores, visitas,
gente que vinha de longe tumultuava fora. Dispersos ou alinhados em partidos, empenhando-se até por adiantadas horas da noite
singulares combates a busca-pés, facheados em destras enluvadas de couro, sendo comum verem-se mulheres tomando parte na luta,
ao fervor da qual, aos clarões do fogo, arrepanhando as saias e erguendo a perna, os arremessar por baixo, indo as tabocas
fumegantes cair nos arraiais hostis, onde rebentavam com estrondo.
E no meio da algazarra, da confusão sem termo, dos estalos das
árvores que ruíam crestadas pelas chamas, dos assovios e das gargalhadas, ouviam-se intermitentes tradicionais cantigas,
entoadas pelos meninos e moleques beirando os braseiros:
- S. João é um?
- Será ou não!
Tatu no mato
Com seu gibão
Um pé calçado
Outro no chão.
- Viva S. João!...
E ao lado das pretas velhas, nos espaçosos quintais, no lar das
famílias, aos estalos das bichas, aos espirros das rodinhas, ao estourar das bombas, ao efeito das carretilhas e
de outros fogos, cantavam os felizes convivas a conhecidíssima quadra popular:
Se S. João soubesse
Que era hoje o seu dia,
Descia do céu à terra
Com prazer e alegria.
E os bacamartes e as ronqueiras estrugiam na praça e nas estradas,
os alforjes refaziam-se de provisões, a tiracolo dos lutadores, e os cocos, as canas e os inhames começavam a cair do cimo das
imbaúbas nas fogueiras crepitantes, que tinham por guarda de honra os meninos traquinas e os endiabrados moleques, que os
retiravam dos leitos de brasas dos tições, para comer aos pinotes, soprando, queimando-se.
No mais intenso do folguedo escutavam-se, de par com os ecos das
ronqueiras, tropéis de cavalos nas estradas, e em breve, tomando fabuloso aspecto, senhores de engenho e seus pajens transpunham
a praça da Matriz, trajados de branco, de botas e luvas de couro, talhando a escuridão com busca-pés acesos, e pulando a cavalo
colossais fogueiras, ao lado das quais, estendidas ao longo, incendiadas palmeiras semelhavam cometas abatidos no campo da luta.
Nos domicílios francos as matronas rusgavam com as escravas,
preparando as mesas; e graciosas moças, os primos e primas, lançavam os dados consultando os livros de sortes, os cartões do
Oráculo das damas, e cogitavam de predições obtidas à meia-noite.
De vez em quando, uma cadeira caía daqui, a mesa revirava dacolá,
uma manga de vidro partia-se no chão; e espavoridos bandos corriam em alarido, barafustando pelos quartos, pelos corredores,
pelo interior da casa; era algum busca-pé desgarrado que chiava junto das saias da mulata velha, que espevitava devota os
morrões nas banquetas do santo.
Passado o incidente, tudo entrava na ordem habitual, recrudescendo
incessantes no Largo as rumorosas justas, as repetidas vaias a um busca-pé encovado, ao desastre de um chibu.
Animados destarte os tradicionais brinquedos, repletas as mesas da
fina canjica de milho verde, manauês, carás, melado, excelentes garrafas de vinho do Porto, e o mais de que serviam-se os
convidados e a família entre entusiásticos vivas e estrepitosas saúdes, apenas o relógio da torre batia meia-noite, novas
e múltiplas cenas iam ter lugar, invariáveis em todo o Brasil.
Entre a luz - S. João, e as trevas - o demônio, desdobrava-se um
crepúsculo que a imaginação popular ilustrava de superstições.
E tarde, bem tarde, aos incêndios do Largo, montado em seu cavalo
negro, como o terceiro cavaleiro do Apocalipse, o último senhor de engenho arrojava-se fantástico, saltando duas e mais
fogueiras, aos clamores vitoriosos dos festejadores em turmas, ao assombro das famílias atentas às janelas.
"Ao nascer do sol - porque depois as águas perderiam de sua
virtude - tomava-se o banho de S. João, que gozava de propriedades miraculosas".
E festivos em bandos, povoando as estradas ermas, moças e rapazes
lá iam banhar-se nas fontes, ouvindo-se entremeados de danças, de pequenas corridas, de expansivas risadas, nativos trovares:
Ó meu S. João,
Eu vou me lavar;
Se eu cair no rio
Mandai me tirar.
No mesmo diapasão, aos frios matinais, as tabaroas e os matutos
descantavam de volta quadrinha adequada:
Ó meu S. João,
Eu já me lavei;
As minhas mazelas
No rio deixei.
No vastíssimo cenário de infantis crendices do povo brasileiro,
uma se destaca tão bela, tão perfumada de inocência e candura que nos leva direito aqui reproduzi-la.
Era de crença popular que, nessa noite, S. João, a pedido de seus
devotos e festejadores, baixava do céu, vindo ver sua festa e abençoar as fogueiras. Para esperá-lo, as casas deviam
conservar-se abertas e em divertimentos, ficando marcadas as que fossem encontradas às escuras...
E a ortodoxia da lenda era respeitada e seguida em quase todo o
Norte, derradeiro refúgio dos nossos costumes e das nossas tradições. |