Uniforme de um cavaleiro de São
Paulo ou Minas Gerais para participar de uma Cavalhada
no Rio de Janeiro, quando da coroação de Dom João VI, em fevereiro de 1818,
em estampa de Jean Baptiste Debret
A Véspera de S. João
Por que pedirmos aos mitos dos astros, de
que se tem ocupado a crítica moderna, a corporação de lendas cristãs? Por que descobrirmos analogias em celebrações divergentes
por sua índole, quando entre elas cava-se um abismo, elevam-se montanhas, que separam crenças e raças?
Estas interrogações formulávamos nós, folheando páginas de uma erudição
pedantesca, que ajustava por fenômenos solares a comemoração do Precursor evangélico, festa litúrgica em toda a cristandade, e
do calendário popular em Portugal e no Brasil.
Retrogradando, porém, ao luar que amarelece as crônicas
do século XV, vimos desfilar as primeiras cavalhadas de S. João nas ilhas dos Açores (1), aos fogos de artifício e rufos de tambores. Com o tempo, essas
festas enriqueceram-se de superstições que desceram de suas religiosas origens, tendo para esclarecer-lhes a marcha os fachos de
resina e o luzir incendiado da pólvora em detonações fulminantes.
Qual a gênesis desse folguedo público nas terras de além-mar, onde ainda
perdura com suas fórmulas augurais e encantamentos, foi-nos vedado descobrir. O mesmo não sucede no Brasil que, aceitando o
legado na sua castidade primitiva, criou-lhe uma lenda, acrescentou-a na parte mítica, e o ampliou em relação ao concurso de
novas raças e diversos meios.
Entre nós a revolução foi rápida e pertence toda ao passado. O
estrangeirismo, que nos esmaga, tudo que é nosso vai levando consigo!... E quase nada nos resta!
É, pois, abrindo uma janela às tradições e a porta à gente antiga, que
suspenderemos às ruínas da casa paterna mais este quadro que trouxemos da infância, emoldurado dos espectros das rosas da nossa
primeira mocidade.
Para as festas de S. João eram múltiplos os costumados intróitos.
Recebiam-se convites dos grandes senhores, dos fazendeiros riquíssimos, da burguesia abastada e do proletário arranjado. No Rio
de Janeiro, lugares havia em que se festejava o Batista do modo mais estrondoso e fidalgo. Em Inhaúma, em Paquetá, em Campo
Grande, na ilha do Governador etc., o mastro plantado com a boneca, enfeitado com espigas de milho, laranjas e mais frutas,
indicava o festejo no sítio, as proximidades do dia.
Nos arrabaldes, as chácaras e palacetes, com o mesmo sinal, chamavam a
atenção dos vizinhos que propalavam indiscretos os nomes dos donos, comentando livremente a lista, às vezes imaginária, dos
convidados.
Antecipadamente, viam-se nas ruas pretos de ganho com cestos carregados
de foguetes e fogos de todo gênero, de canas e batatas-doces, de carás e milhos verdes, de galinhas, ovos e perus; de tudo
enfim, que dizia respeito à folia da noite e aos lautos jantares e ceias que então se davam.
Os fazendeiros despendiam largas somas, vestiam de novo
a escravatura, matavam reses em obséquio aos convidados da corte. Em casa da baronesa de Sorocaba, do barão de Meriti, do
Amaral, e do marquês de Abrantes (2), preludiavam-se os regozijos da noite desejada; no palácio de S. Cristóvão, as Princesas recomendavam às
companheiras de infância que comparecessem bem cedo; em vários pontos da cidade, os pais de família dispunham da lenha para as
fogueiras, colocavam sobre a mesa os livros de sortes, encordoavam-se os violões para os descantes.
As rodinhas, as pistolas, os foguetes, busca-pés, chuveiros, rojões,
cartas de bichas, girassóis, traques de sete estouros, bombas e uma diversidade enfadonha de fogos, alastravam as mesas,
entupiam as mangas de vidro, atravancavam as gavetas.
De par com tudo isso, as donas-de-casa atropelavam as escravas,
arrumando as provisões, ralando o milho verde e o coco para a canjica, fazendo os deliciosos bolos de S. João.
Nas antevésperas, na intimidade do lar, as moças reuniam-se à luz do
candeeiro, e os meninos, descendo aos pulos do sofá da sala, acercavam-se da avó, que tremendo com os lábios, rolando nos dedos
as contas do rosário, narrava, sentada numa esteira, a lenda do Batista e das fogueiras.
E as moças, acomodando as crianças, e as crianças esbugalhando os olhos,
a fitavam; uma vez resolvida, ela assim começava:
- Vou contar-vos, meus netinhos, uma história do princípio do mundo.
Um dia, Nossa Senhora, que trazia o Nosso Senhor Jesus Cristo, foi
visitar a sua prima Santa Isabel, que também trazia em seu bendito seio a S. João Batista. Apenas as duas sagradas primas se
avistaram, o divino Batista, que não tardava a nascer, se ajoelhara em adoração a Jesus.
Santa Isabel, que isto sentira, não tardou em comunicar o milagre à
Virgem, que, exultando, perguntou-lhe: "Que sinal me dareis, quando nascer vosso filho?" - "Mandarei plantar nesta montanha um
mastro com uma boneca e acender em torno uma grande fogueira", respondeu-lhe.
E de feito: na véspera de S. João, a Mãe de Deus, vendo de sua morada
uma fumacinha, labaredas e o mastro, partiu, indo visitar Santa Isabel.
Desde então - concluiu a boa velha - é que se festeja o santo com
mastros e fogueiras.
- Oh!... Que história tão bonita"... interrompeu um dos ouvintes.
- Já agora, escutem outra, meus filhinhos; tem o mesmo motivo e é da
mesma data: é do tempo em que nem eu nem vocês sonhávamos de nascer, e que a terra estava toda coberta de água.
- Conte, vovó, conte! Tão bonito!
E a velhinha, alisando os cachos de cabelos brancos, deixando pender os
braços sobre as pernas cruzadas, sorveu um pequeno ronco, abriu a boca desdentada, prosseguindo:
- É o resto da história.
Anos depois, quando Santa Isabel cantava, ninando o seu bendito filho,
este lhe perguntou: - "Minha mãe, quando é o meu dia?". - "Dorme, meu filhinho, dorme; logo que ele for, eu te direi". E S. João
dormiu.
Acordando, porém, na noite de S. Pedro, e ouvindo os foguetes e vendo
fogueiras acesas, insistiu: - "Minha mãe, quando é o meu dia:" - "O teu dia já passou", acudiu-lhe ela. - "Ora, minha mãe, por
que não me disse, que eu queria ir brincar na terra?"
- Sim, por que não disse - retorquiram pesarosos os meninos.
- Santa Isabel teve razão, meus netinhos; se São João descesse do céu, o
mundo se arrasaria em fogo!
Estas tradicionais histórias eram correntes em toda a parte, dando-lhe
inteiro crédito gerações que se foram e gerações que ainda existem.
Diariamente, encontravam-se aqui e ali grupos de famílias constituindo
pequenas tribos. Adiante iam as crianças, logo após as moças e os rapazes, depois os pais e os velhões, retirando-se para fora
da cidade ou para fora da corte.
A estes acompanhavam, em gradação oposta, os pretos e pretas idosas,
carregando latas de folha com roupa de uso; as mucamas, leves cestos de junco e embrulhos com objetos pertencentes às
sinhás-moças; e, na retaguarda, iam os molequinhos com o chapéu-de-sol e a bengala do sinhô-velho, um cachorrinho de estimação,
um sagüi, um papagaio, uma bugiganga qualquer.
Os que vinham pelo cais da Glória descortinavam o mar sulcado de botes e
canoas entrados n'água ao peso dos passageiros, sentados e de pé, que os enchiam acenando com lenços e em alegres vozerias.
Pendurado à proa dos barcos, um escravo ou um rapagão riscava um
fósforo, mordia o papel de um foguete, e, aprumando-se ao longo do corpo, atacava-o, estourando-o no alto, às repercussões do
eco.
Ao amanhecer, tudo se achava ordenado e previsto: a população
distribuída, as bandejas de fogos sobre os aparadores e cama do quarto de dormir; as canas, os cocos, os carás e os milhos
empilhados na cozinha; a fogueira abraçava o mastro; e Os dados da Fortuna, A Roda do Destino, O Cigano, e
outros livros de sortes, fornecidos pelas antigas livrarias Garnier, Fauchon e Laemmert, ficavam à escolha dos consultantes de
oráculos.
Apenas escurecia, as máquinas boiavam no éter úmido e
transparente; cabeças de alcatrão fumavam rubras nas ruas; e os busca-pés largavam-se atrás dos passantes, rabeando,
rolando, serpeando, em fúlgidos estouros.
E uma preta, perseguida, corria daqui; e um indivíduo, livrando-se,
pulando, encostando-se a um muro, avultava acolá; e os rapazes, no ardor do brinquedo, riam-se a bom rir do expediente das
vítimas e das descomposturas consecutivas.
Às badaladas do aragão
(3), o ar mostrava-se marchetado das
zonas luminosas das fogueiras que ardiam nos quintais e chácaras; e, dos sobrados, os combates a pistolas, ao mesmo tempo que
formavam das janelas às calçadas cachoeiras de fogo, adquiriam maravilhoso aspecto, à proporção dos tiros de cores, que
pontuando irirados as paredes, caíam em gemas fumegantes no chão dos lajedos.
Ao longo dos caminhos, com estranho e equívoco ruído, escutavam-se
descargas de cartas de bichas, que estouravam em potes de barro e barricas cobertas, colocados à distância pelos habitantes do
quarteirão.
Fazendo singular contraste com esta cena de apoteose teatral, à rótula
de pau da casa térrea, uma mulher embiocada segurava na mão de uma criança, sacudindo, na extremidade da flecha, indefluxada
rodinha.
Na totalidade das habitações e nas fazendas, o trono de S. João
deslumbrava de luzes e viçosas flores, ornado de sanefas caríssimas, e elevando-se de uma toalha da cor das neblinas, pregada
aos cantos do altar com laços de fita e prateados alfinetes.
Na roça, as fogueiras tinham no centro, ora o mastro,
ora uma árvore, que estalava minada pelas chamas, arriando-se com fragor (4).
Os escravos, de calça de algodão cortada ao joelho, de camisa branca do
mesmo pano e aberta no peito, batucavam com as escravas à roda do fogo, assando carás e batatas, tirando os do Norte os seus
cocos, dança e canto popular daqueles sertões:
Lá vai amor, lá se vai!
O amor lá se vai!
Pelas paredes arriba
Ninguém vai!
Onde vai, lavadeira?
- Vou lavar,
E eu vou aprender
A nadar.
Este João é um?
- Será ou não.
Tatu no mato
Com seu gibão
Um pé calçado
Outro no chão.
'Stava na praia escrevendo
Quando o vapor atirou,
Foi os olhos mais bonitos
Que as ondas do mar levou
Lá vai amor, lá se vai!
O amor lá se vai!
Pelas paredes arriba
Ninguém vai!
À porteira das fazendas e esclarecendo a entrada, as cabeças de
alcatrão queimavam toda a noite. Os fazendeiros, de rodaque de brim e de chapéu-do-chile, folgavam no terreiro, obsequiando
os hóspedes, que atacavam fogos à discrição, que faziam guerra a busca-pés facheados na mão calçada de luva de couro, e cujas
bombas eram lançadas aos arraiais contrários.
A fazendeira, atenciosa e distinta, mandava servir aos convidados pires
de canjica, manjar, roletes de cana assada e bolos de S. João.
As moças da corte, na elegante varanda, suspendiam acima da fronte
pistolas de lágrimas, chuveiros de chuva de ouro, que iluminavam, com os seus projéteis e faíscas, os tetos longínquos das
senzalas vazias. Outras, grupadas à mesa de jantar, deitavam dados, liam as quadrinhas da sorte, prorrompiam em gargalhadas, às
predições do destino:
Um velho torto e pançudo,
De nariz de palmo e meio,
Há de ser o teu consorte
Mui breve, segundo creio.
É ocioso dizer que nessas ocasiões confraternizavam-se os coronéis e
tenentes-coronéis do lugar, todas as forças dos partidos, desde o mais influente chefe eleitoral da Formiga até o mestre-escola
de Vassouras, ou de não importa que vila.
E as fogueiras do terreiro vomitavam grossas labaredas; as máquinas
sumiam-se na noite ou desfaziam-se em gotas de fogo; e as girândolas, as bombas, as ronqueiras estrugiam aos - Viva S. João! -
cujos ecos iam morrer na floresta.
Os negros despejavam nos braseiros carros de milho e carás, verdes canas
e tenras espigas; e os moços e moleques, pulando as fogueiras, apareciam no alto daquela atmosfera ígnea, abrindo a boca e
gritando:
- Acorda, João!...
Ao que muitos dos festejantes respondiam, cantando:
S. João 'stá dormindo,
Não acorda, não!
Dê-lhe cravos dê-lhe rosas
E manjericão!
Nessa noite, dentro e fora das grandes cidades, um pouco antes da
meia-noite, resvalava, aos clarões das fogueiras, o carro silencioso das superstições nacionais.
Fosse debaixo dos tetos de estuque ou da telha-vã da pobreza, essas
crenças abrigavam-se sem constrangimento, exercendo poderosa influência sobre as mulheres e pessoas simples.
Assim, ao estampido dos fogos, ao brilho decrescente das enormes lavas,
o movimento supersticioso iniciava suas práticas, cujos dogmas consistiam no seguinte, sempre executado ao toque fatídico da
meia-noite:
- Em louvor de S. João, plantava-se um alho; se amanhecia grelado,
obtinha-se o que se desejava.
Deixava-se ao sereno uma bacia d'água e ia-se, antes do nascer do sol,
mirar o rosto: se o indivíduo não via a sua sombra, era sinal de que não chegaria ao outro S. João.
Passava-se, em cruz, um copo cheio d'água por sobre a fogueira,
quebrava-se dentro do líquido um ovo com a clara e a gema. De manhã, se apareciam os lineamentos de um navio, significavam
viagem; se a forma de uma igreja, casamento; se um caixão, enterro.
De um outro copo, que também passava-se na fogueira, em louvor de S.
João, tomavam as moças solteiras um bochecho, e ficavam atrás da porta da rua. O primeiro nome de homem que ouvissem pronunciar,
seria o daquele que lhes estava destinado para marido.
Antes da meia-noite, devia-se ir ao quintal ou terreiro
onde houvesse plantado um pé de arruda com flores. Estendia-se no chão uma toalha e acendia-se nas pontas duas velas de cera. O
fim esse sortilégio era aparar as sementes que cairiam à meia-noite, sementes essas que ninguém conseguia obter, por isso que o
diabo era quem naquele momento as recolhia, assombrando o indivíduo que ousasse disputá-las (5).
Um dos preconceitos mais arraigados entre o povo era que as brasas da
fogueira ficavam bentas; e muitas pessoas as guardavam ou enviavam aos parentes ausentes, acreditando que quem as possuísse
viveria mais um ano.
Aos primeiros raios de sol - porque depois as águas perderiam sua
virtude - tomava-se o banho de São João, que gozava de propriedades preservativas e miraculosas.
Esses brinquedos prolongavam-se, às vezes, até São Pedro, com o mesmo
aparato e lentejoulado de abusões.
Por ora fechamos a janela às tradições
e nos despedimos saudosos da gente antiga, não nos importando de ser acoimado de nativista, sentimento sublime que herdei
de meu pai, e bebi no seio materno, que são as taças do bem e as fontes da vida.
NOTAS (de Luís da Câmara
Cascudo):
(1) Vitermo fala em documento da Câmara de Coimbra, em 1464, aludindo à cavalhada na véspera de S. João com sina
e bestas muares. No Brasil as festas joaninas foram trazidas pelos portugueses e popularizadas entre os indígenas. Os
cronistas coloniais, frei Vicente do Salvador, Padre Fernão Cardim, registram as alegrias dos silvícolas na época do S. João,
pelas fogueiras e palmas.
(2) A baronesa de Sorocaba, dona Maria Benedita de Canto e Melo, 1792-1857, era irmã da Marquesa de Santos. O
barão, depois visconde de Meriti, Manuel Lopes Pereira Bahia, faleceu em 1860, com 73 anos. Era sogro de Miguel Calmon du Pin e
Almeida, marquês de Abrantes. O Amaral é o dr. Joaquim Tomás do Amaral, visconde de Cabo Frio, diplomata, falecido em 1907.
Essas festas sociais, registrando os salões do Império, relações, elegância, esplendor, tiveram seu cronista no sr. Wanderley
Pinho, Salões e Damas do Segundo Império, ed. Livraria Martins, S. Paulo, 1942.
(3) "Antes de terminar, e já é tempo, lembrarei o toque do Aragão, muito sabido de todos nós, convindo apenas aqui
mencionar por extenso o nome do Intendente de Polícia, que em 1825 ordenou esse sinal de recolher; foi o desembargador Francisco
Alberto Teixeira de Aragão. Quando davam dez horas e o Aragão começava a tocar, era um fecha-fecha em toda a cidade, pois, para
os caixeiros que estavam prontos à primeira badalada, o sino de S. Francisco era como o maná que chovia no deserto".
Vieira Fazenda, Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 88, vol.
140, 31.
(4) Sobre as fogueiras de São João há literatura extensa. Participavam dos cultos agrícolas, herança da religiões
solares. Frazer compendiou muita notícia no seu Le Remeau d'Or, cap. II, livro III, 3º volume, na versão francesa de R.
Stiebel e J. Toutain, Paris, 1911.
(5) A arruda, Ruta graveolens, rue dos franceses, raute, gartentrauter ou weinraute
dos alemães, é substituída noutras regiões do Brasil pela samambaia, Pteridium aquilinum, na superstição que nos veio de
portugal, como quase a totalidade das que ambientam o ciclo de S. João. J. Leite de Vasconcelos, Tradições Populares de
Portugal, Porto, 1882, 110, registra as mesmas tradições portuguesas, referindo-se ao Feto Real, Osmunda regalis,
Linheu, como é na Rússia a Paporotnik, Aspidium felixmas. Em Frazer, opus cit., há uma imensidade dessas plantas
mágicas que só podem ser colhidas durante a Noite de S. João.
Uniforme de um cavaleiro de aldeia para participar de uma Cavalhada, por volta
de 1818,
em estampa de Jean Baptiste Debret |