Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, o proclamador da República
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O cinqüentenário da Proclamação da República
Há meio século, na data de hoje, o Exército, a Armada e o
povo brasileiro realizavam uma grande aspiração nacional, implantando o regime republicano e democrático no país
O Brasil comemora hoje o
cinqüentenário da proclamação da República. Os acontecimentos que se produziram na capital do país há meio século correspondem a
uma transformação radical no regime político do Estado. O que essa transformação trouxe, se não contou com estrita permanência
na vida nacional, ainda aí subsiste, estruturando basicamente as Constituições que se sucederam.
Depois da declaração da independência política, a data da
proclamação da República, no Brasil, assume nos fastos da história pátria a maior significação. O progresso que com esse
acontecimento se obteve, desde a data da independência, era singularmente grande. Atuando sob fatores os mais diversos, a
nacionalidade assumiu, por movimento próprio, a direção política e administrativa do país, realizando profundos anseios, tantas
vezes expressos nos movimentos libertadores do Brasil colonial, e mesmo depois, nas subversões da ordem imperial.
A proclamação da República, na verdade, não se prende tanto a
sucessos de caráter subversivo limitado, mas vinha de mais longe, e de mais fundas razões do que qualquer outra aspiração
nacional. Por mais de uma vez, a idéia republicana se incluiu nas conspirações da independência, antes do 7 de setembro, e se
produziu também depois em diversos movimentos dispersos, acabando por cristalizar-se nas organizações de clubes e partidos,
cujos princípios se consubstanciaram no manifesto de 1870. Estava-se apenas nos primeiros vinte anos do segundo Império...
Hoje, que se podem ver com firme nitidez traçados os caminhos
percorridos pela idéia republicana, a comemoração deste cinqüentenário é sumamente útil. Ela fará evidente, ao nos recordarmos
das lições da História, que a consciência brasileira sempre pediu a República.
As manifestações desse imperativo vêm de um longínquo passado, o
que compensa, enormemente, a sua aparente falta de extensão popular. Nem se poderia exigir, de um país sem pensamento político
fortemente disciplinado - circunstância irremediavelmente ligada a todas as deficiências do meio - uma idéia política, por mais
generosa que fosse, embebendo todos os matizes da opinião pública.
E é preciso ver, na análise deste ponto, que essa mesma opinião
pública, com todas as suas restrições, era informe naquele tempo, e muito mais fracionada do que hoje, se se a considera em
função das massas populares, que povoam as nossas cidades do litoral e do interior, em todas as distâncias. Além das
dificuldades de comunicação que constituíam entraves insuperáveis, o analfabetismo, o reduzido nível de vida, a desordem
econômica trazida pela abolição, tudo concorria para aumentar a diversificação daquela opinião pública, para dispersá-la, para
torná-la impotente, naquilo que se pensa ser a indiferença do povo brasileiro pela vida política do país.
Sempre, porém, que se pensou e se fez acompanhar de ação o
pensamento, na independência e no progresso da terra brasileira, a consciência nacional dos conspiradores e dos revolucionários
se apresentava denunciadora do que enunciamos: a idéia da República vivia larvada na inteligência e na vontade dos nossos
índices de ação política.
Se já no século XVIII as tendências libertadoras e republicanas se
prenunciam, no século XIX todos os movimentos, quer os de reduzida proporção, locais, deficientes, ou os de mais larga e efetiva
concretização, quase todos ingloriamente abafados nas execuções e nos combates exauridores, todos, repetimos, indistintamente,
se apresentam iluminados pela reverberação democrática, visando a republicanização do Brasil.
Era, aliás, muito compreensível, desde que, por todas as
circunstâncias do meio e da época, as idéias avançadas do tempo, na América, giravam em torno da República e da democracia. A
independência dos Estados Unidos, vazando-se em República, a grande revolução francesa, a evolução industrial e econômica, os
moldes em que se formavam os Estados hispano-americanos, tudo isto propiciava a aspiração republicana. Foi ela que fez de nossos
heróis políticos somente heróis republicanos, "de Bernardo Vieira a Tiradentes, aos esquecidos
executados de 1799, na Bahia, ao padre Pessoa, a frei Caneca, Sabino, Pedro Ivo", como recentemente
o recordava o professor Hermes Lima.
O Império aumentou todas aquelas
razões históricas, sentimentais e econômicas. Transplantara para a colônia, ao fim de um século de decadência da mineração, uma
nobreza que aqui artificialmente se reproduziu, na ausência de bases tradicionais e de raça. E o Segundo Império, herdeiro das
deficiências do Primeiro, acentuaria todo o drama de sua incompatibilidade, pela incompreensão da atualidade econômica, pela
insistência nos erros de nossa formação nacional, desde as soluções dadas ao problema da educação brasileira, até e
principalmente o alheamento com que deixou escoar diante de si as condições do trabalho, ou sejam as da produção. O Segundo
Império falhou por não ter uma base orgânica com estabilidade econômica.
***
Comemorando o 50º aniversário da
proclamação da República, não iremos além da significação do fato, do histórico de acontecimentos que precederam a Proclamação,
da evocação do amadurecimento da idéia, entre os sucessos históricos paralelos. Esta edição destina-se, pois, nas páginas
dedicadas à grande data de hoje, a pôr em foco fatos e personalidades, todas objetivando o 15 de novembro. Não cabe,
efetivamente, abordar mais do que isto.
A data lembra e celebra a mudança do regime, o que dá origem ao meio
século das nossas instituições. Os cinqüenta anos decorridos puseram à prova a Constituição de 1891, as emendas a essa Carta,
consubstanciadas na Constituição de 1926, a de 16 de julho de 1934, cuja vigência foi apenas de três anos, e, finalmente, a de
10 de novembro de 1937, outorgada pelo atual governo da República.
Não penetraremos na análise do período histórico que essas
Constituições compreendem. Acresce que, ao lado da inoportunidade de um balanço geral, meio século nada é, na história, e que os
homens que viveram a República, em grande parte, ainda aí estão, participando das atividades contemporâneas. Nem a distância deu
nitidez ao recente passado, ensejando um julgamento... Protagonistas e testemunhas dos sucessos destes cinqüenta anos, acham-se
ainda vivos, ou mal fechadas as campas em que repousam. As paixões, os entusiasmos, a fé que despertaram, bem como o ódio e a
oposição que arrostaram, ainda palpitam em torno de sua memória.
Explicado o fim destas páginas comemorativas do 15 de novembro de
1889, cabe-nos alongarmos ainda, fora da evocação cronológica de datas, de homens e de episódios, aos motivos por assim dizer
essenciais que determinaram, no conteúdo e no fundamento da história da decadência do Império, a transformação operada.
Esse estudo das causas será feito aqui, para que o leitor tenha
uma idéia mais precisa de como se processou o movimento da republicanização do país, desde que se impôs a iniciativa
organizadora, com partido, clubes e jornais de propaganda, abrangendo o país todo, e sem a dispersão e a localização regional
que se distingue, tão nitidamente, em outras fases da evolução da idéia republicana, como no movimento da Inconfidência, da
revolução pernambucana de 1817, na da Confederação do Equador, na Sabinada ou na guerra dos Farrapos.
A história, como a entendia
notável polígrafo patrício, não deve ser colocada a serviço da apologia gratuita ou da crítica póstuma. A história deve
explicar... Apresentando aqui um exame retrospectivo, de um largo período do Brasil independente, sem nos afastar dos moldes
jornalísticos, tencionamos, cingido às melhores fontes, explicar o mais possível.
***
Não só a vida dos homens mas
também a vida dos povos decorre da satisfação de necessidades orgânicas. O desaparelhamento econômico do Segundo Império está na
base de seu depauperamento. Toda a vida parlamentar imperial, copiada da Inglaterra, é o produto exótico de uma adaptação
formalista. Na frase de um historiador moderno, ao império brasileiro faltava o que os navios não transportavam: a ação. Daí o
desaparecimento econômico e a inocuidade das medidas tomadas para conjurar as crises, para extinguir o trabalho escravo, para
organizar a produção, vivificando a exploração da terra.
Não viu Pedro II os sinais da grande transição econômica do século.
Escapou ao imperante a magnitude da mudança formidável que a indústria introduziu, nesse surpreendente século XIX, nas
realidades básicas das sociedades humanas. Nunca transição alguma operara tão violentamente um plano econômico.
Desde a Grécia de Aristóteles, a existência do escravo estava
condicionada como uma necessidade das sociedades humanas. O século XIX, por intermédio do carvão e da máquina, veio dispensar o
escravo. A pioneira da economia moderna, a Grã Bretanha, surge, no panorama mundial, como vanguardeira da emancipação dos
escravos. E, entretanto, nas últimas décadas do século anterior ela importara dois milhões de negros.
A transição explica porque a Inglaterra liderou a substituição da
base da economia aristocrática, situada no ouro e no escravo, pela base moderna do século situada no carvão e na máquina, como
resultado da revolução industrial.
Os interesses feridos pela política emancipadora, cuja expressão
mais nítida é o "bill" Aberdeen, em 1845, deveriam reagir acompanhando uma transformação que se impunha em toda a
economia mundial. O Império brasileiro não o compreendeu. Premido pela transição econômica conduzida pela Inglaterra, tendo sido
obrigado a extinguir o tráfico porque a lei do conde Aberdeen colocara um cruzeiro inglês contra o comércio de escravos nas
águas do Atlântico, o Brasil continua, inconscientemente, com a sua política parlamentar imperial, com os seus condes e
viscondes, seus barões e conselheiros... Não se compreendera a célebre frase do odiado e combatido Bernardo de Vasconcellos: "A nossa civilização vem da Costa d'África"... Ora, suspenso o tráfico, deixou-se de
importar esse elemento de civilização, ou seja, essa base do império, principal fator que era da produção nacional.
Cinco anos depois da lei de Aberdeen, quando a Inglaterra, em nome
de uma cruzada humanitária, passa a intervir nos mares contra os navios negreiros, é decretada a extinção do tráfico. A lei de
Eusébio de Queiroz é de 1850. O comércio resiste, porém, ainda mais três anos, extinguindo-se só em 1853.
Essa data será tomada algum dia como início da história da
decadência do Império. Efetivamente, sem o seu fator orgânico essencial, o trabalho escravo, não resta mais justificação ao
Império. Prova-o o fato de terem daí em diante os partidos políticos perdido a sua justificação, pois diante do fato consumado
os conservadores abandonaram o Trono... Este procurou o apoio dos liberais, e surge a fórmula de conciliação. Os agrupamentos
liberais e conservadores, sem programa, passam assim pela crise bancária de 1864, o índice mais evidente do mal-estar econômico,
que a extinção do tráfico determinara.
Denunciaram-se as más colheitas que haviam seguido à extinção do
tráfico. A denominação de "crise bancária" revela, porém, que o fenômeno levara os seus estremecimentos até a cidade.
Examinando retrospectivamente a situação, Mauá dirá, em 1878, que a denominação de "crise bancária" era imprópria, porque
na raiz das dificuldades comerciais sentidas no Rio estava a "crise da lavoura".
Antonio Ferreira Vianna, estudando naquele mesmo ano a situação,
pintava o quadro assim: "A crise veio de um grande número de operações mal concebidas, de empresas
temerárias, do jogo dos fundos públicos, das ações das companhias e dos graves transtornos por que passou a lavoura".
Colocava, como se vê, o fator principal no fim da enumeração de
motivos... Porque, na verdade, foi a crise agrícola que serviu de fator básico da crise. Interrompido o tráfico, deixando de
entrar no país a média de 30.000 escravos por ano, os capitais aí empregados foram deslocados abruptamente. No desequilíbrio
verificado, não contando com capitais fáceis como os tiveram o Canadá e a Austrália (a política dos juros altos até agora
persiste), observa-se uma verdadeira corrida dos lavradores para a Corte, e a partir daí as propriedades se entregam
desbragadamente à hipoteca.
Um fato a notar é que nem mesmo as casas bancárias, o alto
comércio que dispunha de capitais, era nacional. Formava a maioria dessas casas a colônia portuguesa, e portugueses haviam sido
os dirigentes do comércio de negros. Se neste setor a influência britânica esmagara os lucros, com a extinção do tráfico, no
financiamento à lavoura iriam eles desforrar-se das perdas, minando as bases da produção nacional. A desorganização da lavoura
acha-se expressa na marcha do café, que se transfere através o território brasileiro, descendo do Ceará até São Paulo, à procura
de produção agrícola organizada.
Por sentimentalismo, por humanitarismo, Pedro II era
abolicionista. A solução do problema se lhe apresenta, entretanto, com toda as características de um lento suicídio do Trono.
Através da Lei do Ventre Livre, e até a abolição, o que o Trono fez foi destruir a base econômica da classe dos latifundiários
escravocratas, que o apoiava.
Depois da crise de 1864, o país
é lançado à guerra do Paraguai. E o grande problema da organização livre da produção fica adiado.
***
Dir-se-á: e anteriormente? Por
que não se previra e não se cuidara, antes da Maioridade do Príncipe, na Regência e no Primeiro Império, da questão do trabalho
livre no país?
Parece um contra-senso indicar que antes, no Primeiro Império, ainda
mesmo nos pródromos da Independência, o país vira grandes homens do tempo empenhados na extinção do trabalho escravo. Outro não
era pensamento do gênio político de José Bonifácio, que organizou o projeto de lei contra a escravatura. Examinando essa
atitude, Joaquim Nabuco dirá de José Bonifácio que o seu ostracismo derivou das idéias que ele mantinha contra a escravidão ("O
Abolicionismo").
O interesse pela colonização aparece-nos em d. João VI, tentando a
organização de colônias de estrangeiros; em Pedro I, quando pedia "a entrada de braços úteis e a
distribuição de terras incultas". Diogo Feijó encarou de face também a extinção do tráfico. A lei
de 7 de novembro de 1831, "declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo
penas aos importadores de escravos", foi assinada por Feijó. E também aí, como Nabuco o suspeitava
de José Bonifácio, talvez por essa lei tenha o severíssimo e formidável ministro da Justiça adquirido tantos ódios e aberto
caminho ao ostracismo e à desgraça em que caiu. Mas a lei de 1831 nunca foi cumprida, donde então se justificarem as
objurgatórias que o nosso governo teve de ouvir no Parlamento inglês, antes do "bill" Aberdeen.
Lord Brougham e Peel traduziram por mais de uma vez a condenação
ao não cumprimento da lei. Traduziram, é verdade, "o imperialismo inglês" da época, em luta contra a escravatura, mas
defendiam a previsão de Feijó, que em 1831 decretara a extinção do tráfico, a qual, vinte anos depois, necessitou ser novamente
assinada por Eusébio de Queiroz, diante do cruzeiro inglês que apresava os navios negreiros viajando sob a bandeira nacional...
O pensamento republicano dos revolucionários de antes da
independência e dos que se levantaram no Primeiro Império não se conciliava com a escravidão. Nabuco exumou, em sua obra já
citada, o manifesto dos revolucionários de Pernambuco em 1817. Nele se vê a identidade entre o ideal republicano e a abolição,
já naquele afastado período da história. Mesmo agindo contra os senhores rurais, os revolucionários de 1817 confessavam a sua
vergonha diante da escravidão e, embora advogassem uma supressão lenta, diziam bem claro considerar ilegítima a "propriedade" de
escravos.
Acoimados de abolicionistas, eis como recebiam a insinuação e a
rebatiam: "Patriotas pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles
crêem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor e escravos.
O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em sentimentos generosos, não pode jamais acreditar que os homens, por
mais ou menos tostados, degenerassem do original tipo de igualdade..."
Por tudo isto, antes do Segundo Reinado, pode-se afirmar que o
interesse pela abolição da escravatura foi enorme, nos que foram governo ou nos que pretendiam sê-lo. O Segundo Império, porém,
deixou-se levar protelando a extinção da propriedade do escravo como esteio da produção. Retardou as soluções o mais possível.
Não viu as tendências revolucionárias da transição econômica. Declarou o Ventre Livre, mas não tinha a simpatia pelo elemento
humano de cor negra que José Bonifácio manifestava em seu projeto de lei, ao prever o ensino profissional para os libertos e a
entrega de pequenas sesmarias aos escravos libertados, a fim de lhes ser dado também um amparo econômico.
Os que legislavam no Império de
Pedro II eram os condes e marqueses, os barões e senadores vitalícios... E embora o sentimentalismo intelectual do imperador
desejasse a abolição, ele não via o aspecto econômico do problema. Ao decretar-se a abolição, o negro é solto ao léu das
circunstâncias, para que se arrume. Aliás, a única preocupação de ensino profissional que aparece nos cuidados do imperante é a
de ministrar noções de ofícios aos cegos e aos surdo-mudos...
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Um dos últimos retratos de D. Pedro II, deposto pelo movimento de 15 de
novembro
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Vimos que antes do Segundo Império se cuidara da extinção do
tráfico e da organização do trabalho agrícola livre. Vimos que o governo imperial teve de adotar a proibição do tráfico, e que
se fosse respeitada a lei semelhante de Feijó, em 1831, teria ficado inteiramente resolvido o problema da escravidão negra.
Entretanto, nos últimos anos antes da extinção do vergonhoso comércio, avultara enormemente a importação. De 1841 a 1851
entraram 325.000 escravos. O comércio negreiro crescera, e ao imperador se impunha uma medida complementar. A guerra do
Paraguai, como vimos, cobriu a repercussão da crise agrícola.
Em plena guerra, o regime parlamentar imperial sofre um colapso
tremendo, quando se abre a chamada "questão Caxias". O comandante brasileiro era conservador, e o gabinete liberal de
Zacharias encontra-se diante de um dilema proposto pelo Imperador ao Conselho de Estado. Como Caxias acreditava ter o gabinete
lhe retirado a força moral, demitia-se do comando; entretanto, o imperador queria saber se devia dar a demissão do generalíssimo
no Paraguai, ou a do gabinete. Qual seria o menor mal, dadas as condições especialíssimas da situação, perguntava o imperador: a
demissão do general ou a do ministério?
A crise, surgida em fevereiro, só tem solução em julho, quando o
imperador encontra, afinal, um meio de sacrificar o ministério a Caxias. É o chamado "golpe de Estado" de 1868. Cai
Zacharias, e sobem os conservadores com Itaborahy... Recebendo no Senado o ministério conservador, Nabuco de Araújo, líder
liberal, pronuncia o seu famoso "discurso de sorites", no qual se faz a primeira grande crítica da insanidade das
instituições do Império. O discurso é de 17 de julho de 1868, e pela primeira vez no país um senador e conselheiro de Estado
tacha de "ilegítimo" o uso, pelo imperador, da atribuição constitucional da escolha de seus ministros.
É uma curta peça o "discurso de sorites", mas desde as suas
primeiras palavras, no seu segundo período, Nabuco de Araújo dizia: "... tenho apreensões de um
governo absoluto: são de um governo absoluto de direito, porque não é possível neste país que está na América, mas de um governo
absoluto de fato". A substituição dos liberais pelos conservadores, na emergência, é julgada pelo
eminente homem público "uma fatalidade para as nossas instituições". E
perguntava: "Ora, dizei-me: não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado
em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do
sistema representativo - o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa fez a eleição
porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema representativo do nosso país!".
Escrevendo na biografia de seu pai sobre a significação do
discurso de 17 de julho, diz Joaquim Nabuco acertadamente: "com ele começa a fase final do Império".
Daí a dois anos, era publicado o primeiro manifesto republicano, e
em 1873 reunia-se a Convenção de Itu.
Se ao lado da desorganização
econômica que lavrou desde a extinção do tráfico necessitamos colocar, como causa do enfraquecimento do Império, a sua inanidade
política, onde, ao contrário do que queria Nabuco, falando perante o imperador, o "rei reinava e
governava", merecendo a definição de "Poder irresponsável" - é porque estes dois aspectos, o econômico e o político, concorrem para abrir a clareira da propaganda
republicana. O manifesto dos republicanos em 1870 ampliará a acusação, dizendo que o rei reinava, governava e administrava.
***
O "mal-estar
generalizado", que Vicente Licínio Cardoso denuncia na vida econômica do fim do Império, é um
recorte verdadeiro da nossa situação de inferioridade, que iria, primeiro, provocar a transformação do regime político. Diz esse
historiador, no seu estudo à margem do Segundo Império: "Certo, houve progresso, houve aumento
valioso das energias econômicas do país. Apenas esse aumento não foi o que deveria ter sido. O confronto com a evolução do
Canadá, da Argentina, da Austrália, não nos é de modo algum favorável. Os dados estatísticos de Rio Branco, na obra de Lavasseur
(1889), são verdadeiros: mostram, de fato, grande aumento, quando confrontados com os de 1840 ou 1822. Mas exigem pontos de
referência. E, sem eles, as estatísticas tornam-se geralmente perigosas". E cita o único escritor
da época que estudou a situação em sua verdade insofismável (Carvalho Moura, Estudos Econômicos, 1885).
"Em um período de 38 anos (1844-1882), não
pudemos nem ao menos aumentar a nossa exportação na razão de 85%, ao passo que a nossa população cresceu em uma razão de 125%,
segundo os cálculos mais possíveis, e as exigências do Estado se elevaram na razão de 514,99% no mesmo período". E noutro lugar: "Em Pernambuco, a província mais adiantada do Norte, sob o ponto
de vista agrícola, uma quarta parte, pelo menos, de seus produtos, estava onerada de compromissos muito superiores à totalidade
de todos os seus haveres".
E Licínio Cardoso detalha: "Demais,
tão crítica fora a situação comercial no Recife, em 1882, que o governo imperial fora obrigado a suprimir os impostos
provinciais de consumo". A crise era geral. Os dados são impressionantes. "Os capitais empregados no Norte do Império em terras, engenhos, escravos, maquinismos agrícolas e instrumentos
de trabalho, acham-se onerados com um débito médio nunca inferior a 60% de sua totalidade". "Nas províncias de S. Paulo, Minas e Espírito Santo, existiam 773 fazendas de café, das quais 726 se achavam
hipotecadas pela quantia primitiva de 42.000 contos..."
O 36º gabinete do Segundo Império, formado a 7 de junho de 1889,
sob a presidência do visconde de Ouro Preto (Affonso Celso de Assis Figueiredo), quando se apresenta a Câmara com o seu programa
de governo, aponta a maré montante da propaganda republicana, afirmando ser necessário "não
desprezar essa torrente de idéias falsas e imprudentes, cumprindo enfraquecê-la, inutilizá-la, não deixando que se avolume".
Não queria empregar os meios de violência ou repressão para vencer
a propaganda, mas fazer a "demonstração prática de que o atual sistema de governo tem elasticidade
bastante para admitir a consagração dos princípios mais adiantados, satisfazer todas as exigências da razão pública esclarecida,
consolidar a liberdade e realizar a prosperidade e grandeza da pátria". Apresentara já Ouro Preto
ao imperador a sua definição do momento brasileiro: "Necessidade urgente e imprescindível de
reformas liberais". Tão longe vai a enumeração das reformas apresentada à Câmara, que um deputado,
o sr. Pedro Luiz, aparteia, dizendo: "É o começo da República". Ao que
Ouro Preto responde: "Não: é a inutilização da República".
A moção de desconfiança
apresentada pelo deputado sr. Gomes de Castro, a 11 de junho, dizia: "A Câmara dos Deputados,
informada do programa do gabinete, recusa-lhe a sua confiança". A 17 de junho é lido o decreto que
dissolve a Câmara, convocando outra para 20 de novembro do mesmo ano. Cinco dias antes dessa data, seria proclamada a República.
***
Procuramos dar aqui uma visão
exata de certos aspectos culminantes das grandes causas que nos trouxeram a República. O desejo expresso pelo Trono em várias "falas",
durante muitos anos, para apressar-se o abolicionismo, ignorava a crescente desorganização do trabalho, agravada pela lei do
Ventre Livre, que produziu a "reação conservadora". Assim, os proprietários de terras e de escravos se mostravam
incapacitados para compreender a "evolução agrícola de Antonio Prado"
(que troca a escravidão pela imigração). Mesmo de Antonio Prado, fora tardia a iniciativa na apresentação do projeto de lei de
abril de 1888, o mês anterior à abolição, estipulando "a abolição imediata, mas sob a condição de
trabalharem os libertos nas propriedades em que se achem, pelo prazo de dois anos e mediante retribuição pecuniária".
A decretação pura e simples da abolição servira para precipitar a
República. Nos Pensamentos Brasileiros, em 1924, Vicente Licínio Cardoso comenta, desta forma, o fim da monarquia diante
do fator que para isso representou a abolição da escravatura:
"Na vida dos fenômenos, a
estabilidade se funda e se concretiza, as mais das vezes, pelo embate de forças antagônicas. O escravo é o sustentáculo da
nobreza; a magnificência do trono depende, de outro lado, da humildade do elemento servil. E, por isso, a abolição dos escravos,
no Brasil, trazia em si mesma a própria alforria dos senhores de terras. A subserviência ao rei é o reflexo apenas da escravidão
do homem da gleba ao senhor da terra. Escravo é também quem escraviza. Bem pensado, portanto, a lei de 13 de maio contém o
próprio decreto da extinção da realeza".
Escudado nos dados de Tobias Monteiro (Pesquisas e Depoimentos
para a História), o mesmo historiador denunciara o inócuo ato da abolição, quando a emancipação, em realidade, estava mais
próxima do que se pensava. De um milhão e meio em 1873, dez anos depois, em 1883, havia apenas um milhão e duzentos mil. E em
1888 apenas havia meio milhão de escravos... Mas a abolição era liberal, e o Trono, movido pelos abolicionistas, lançou-se a
esse remendo de seu desmoronamento. Obteve apenas enfraquecer-se mais...
Se bem que o manifesto de 1870 prudentemente não falasse na
abolição da escravatura, em 1872 o manifesto paulista insinuava:
"Sendo certo que o Partido
Republicano não pode ser indiferente a uma questão altamente social, cuja solução afeta todos os interesses, é mister,
entretanto, ponderar que ele não tem, nem terá, a responsabilidade de tal solução, pois que antes de ser governo, estará ela
definida por um dos partidos monárquicos".
Quando se discutia a questão do
elemento servil, sob o gabinete Dantas, os deputados republicanos, por intermédio de Campos Salles, já eram mais peremptórios: "... a bandeira da República não pode cobrir o reduto da escravidão".
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Os republicanos aproveitaram a
ruína do regime monárquico, precipitada pelo abolicionismo, mas não há dúvida que o Império era insubsistente, por si, na
debilidade de sua estrutura econômica. A propaganda da República vinha de dantes da independência, reatava as tradições liberais
e democráticas que a monarquia não podia viver porque seu conteúdo era conservador, escravocrata, reacionário. Essas forças, na
palavra de um escritor moderno, "sempre foram tão poderosas que acabaram fazendo do regime
monárquico um bem exclusivo delas, um bem de classe, e, decretada a abolição, era natural que a coroa não apresentasse mais
nenhum interesse para a classe dos ex-senhores".
Contudo, não seria pelo desapontamento de tais despeitados que a
República ia ser proclamada. O movimento republicano, desde a guerra do Paraguai, ganhara influência no Exército. O apostolado
de Benjamin Constant se fizera no seio das classes armadas. A questão militar ia decidir o mais.
Entretanto, um fundo de sadio idealismo, de integração do Brasil
no concerto da América, um pensamento democrático generoso, percorre e vivifica a obra da propaganda. É o único patrimônio
político brasileiro que palpita em mais de um século de história, desde a colônia ao fim do Segundo Império. É ele que faz
heróis em todos os movimentos políticos da vida nacional. Pela sua força criadora, esse idealismo republicano, eloqüentemente
democrático, precisa e deve ser preservado através do presente e do futuro, alargando-se, espraiando-se de acordo com as
condições dos tempos novos, atendo-se à natureza complexa dos problemas sociais e das soluções adequadas e progressistas que
lhes cabem. |