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DIA DE ANCHIETA
Anchieta nativista

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Anchieta: precursor do nativismo

Guilherme de Almeida [*]

No princípio, a terra amorfa, com tudo o que era seu - gentes, bichos e coisas - pasmou o homem branco do achamento, da catequese e da colonização. Aberta, como um leito, aos seus sentidos e ao seu sonho, a terra perturbou-o voluptuosamente. Tudo aí era novo para a sua percepção sensorial: o macio quente daquela pele morena exaltou-lhe o tato; o canto fresco daquelas muitas águas e daqueles muitos ventos desnorteou-lhe os ouvidos; o cheiro abafado daquela clorofila virgem e suada enlouqueceu-lhe o olfato; o gosto bravo daquelas frutas fortes embriagou-lhe o paladar; a cor vertiginosa de todo aquele cenário iluminado entonteceu-lhe os olhos. E tudo, aí, abria perspectivas infinitas ao seu sonho de ambições desmesuradas e cobiças inconfessáveis.

Então, na sua língua ariana, já complicadamente mestiçada na Península, o forasteiro possessor exprimiu o seu êxtase tonto, mandando à sua velha terra novas da descoberta da terra nova. E desta disse que "em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo" (Caminha); que "é tão grande que, dizem, de três partes em que se dividisse o mundo, ocuparia duas" (Nóbrega); que "toda ela é um jardim em frescura e bosques e não se vê em todo o ano árvore nem erva seca" (Anchieta).

Ao que estas últimas palavras proferiu - um santo missionário, moço jesuíta de fé, saber e vontade, apenas saído da adolescência e já arfante do desejo místico de devotamento e martírio - estava destinado o papel de precursor de uma literatura nova. Porque, insular, nascido no isolamento colonial das Canárias e, mais desnacionalizado pelos preceitos severos de uma ordem religiosa e por um exílio voluntário e definitivo, Anchieta teve a pátria que quis ter. E porque ele foi o único que amou a terra. Foi a exceção à dura regra do Padre Nóbrega: "Nenhum tem amor à terra: todos querem fazer em seu proveito porque esperam de se ir... Não querem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal!"...

E porque ele, nenhum outro até então, foi o que sentiu até fisicamente na sua carne nova e ciliciada, trêmula de amor e pronta para o sacrifício, a precisão de aprofundar o mistério fascinante da grande coisa informe e desconhecida; de entrar a terra e tateá-la com carinho; de experimentar de perto a violência excitante da sua luz quente e da sua cor brutal; de provar a convivência difícil da gente solta e bronca e inculta que aí vegetava; de afazer-se ao ambiente monstruoso e nele e por ele viver e morrer.

Desse contato múltiplo e direto com o meio físico nasceu, no Brasil, a primeira palavra escrita e ritmada - o primeiro verso. Que o que os pobres brasis de Anchieta cantavam em danças, não era poesia. Heterogêneos na raça, na língua e nos costumes, não possuíam a coesão precisa para formar um povo; astrólatras na imaginação, ainda em puro naturalismo animista, não tinham chegado ao grau de cultura do politeísmo, nem mesmo do fetichismo - bases de uma mitologia criadora. Nacionalidade e crença: eis onde vai sorver alento a poesia de um povo.

Mais que a impenetrabilidade da sua selva hostil, mais que os seus hábitos temíveis, a língua estranha que falava o gentio - diversa, irregular, vacilante e pobre - era uma barreira opaca entre ele e o colonizador. O tupi-guarani, o abañeenga, o omágua, o chiriguano, o apiacá, o nhengatu, o quiriri... precisavam de ser uniformizados para o efeito do mais fácil contato entre brancos e índios.

Na alegoria, Anchieta, com a cruz, pacifica as ferras e, com elas, a própria terra brasileira.
Anchieta e as feras, de Benedito Calixto, acervo do Seminário da Glória, na capital paulista
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Entre outros de sua Ordem, Anchieta, primeira e principalmente, foi quem, estudando esses idiomas selvagens, selecionando-os, fundindo-os, criando por derivação alguns vocábulos, disciplinando formas gramaticais, chegou a fixar, na chamada "língua geral", um como idioma eclético, mais ou menos estável, e utilíssimo, sem dúvida, aos serviços da catequese e da colonização.

E, tanto em português, latim e espanhol, como nessa nova língua, com igual facilidade, compôs o taumaturgo hinos, farsas autos, cantos sacros ou profanos que, sem constituírem, é verdade, uma obra íntegra onde devesse começar a nossa literatura, têm por si, não só o mérito da prioridade, como o de haverem dado metro e rima a uma língua bárbara, e aberto à língua branca do conquistador uma porta para o mercado selvagem onde ela mais tarde iria se abastecer de riquezas novas, as quais, mescladas com o subsídio negro, formariam a marca original que vai distinguindo das portuguesas as letras brasileiras.

Era cedo ainda para que nessa poesia incipiente se manifestasse qualquer sentimento nacionalista, qualquer característica que não fosse a de um simples naturalismo objetivo, de um mero deslumbramento ante a beleza fabulosa do ambiente novo. Só muito mais tarde a magnificência da terra entraria a influir mais fundamente no ânimo de seus filhos legítimos. E essa influência irresistível, insistentemente exercida, tornar-se-ia, com o decorrer do tempo, um distintivo da poesia brasileira.

À voz portuguesa do santo nacionalizado, que levava, em cartas, ao mundo antigo notícias do mundo novo, juntou-se logo a voz francesa do aventureiro protestante que, inconscientemente, profeticamente, revelava à sua pátria, "en langage sauvage et françois", na figura bruta de um Tupinambá, o fundo nativista, o entusiasmo pela terra: isso que seria a marca-de-fábrica de todo bom brasileiro. Foi esse Jean de Léry que, lá "où Willegaignon print terre", sonhou, com o flibusteiro, o sonho doce e efêmero de uma "France Antarctique". O curioso francês mantém com o Tupinambá o colóquio que está na sua Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. E o selvagem diz: "Exultemos das gentes que nos procuram. O mundo é o nosso bem; ele é que nos dá os seus bens"...

Ora, essa índole nativista, esse apego à terra, de que Léry dá pormenorizada conta no mais de sua obra, Anchieta tinha superiormente compreendido e sabido aproveitar. Enxertou nesse sentimento a idéia de um Deus novo, protetor e forte, senhor de um exército invencível de anjos e de santos, pronto a auxiliar o crente na luta e socorrê-lo no perigo. Insinuou a nova crença no ânimo do silvícola e, com isso, fortaleceu-lhe a confiança em si, o amor ao torrão, a fé na vida, a convicção de ser dono.

Anchieta foi mais um herói do que um poeta. Por isso, menos nos seus versos do que na sua ação admirável, sobejam exemplos de amor ao solo e de abnegação à gente. Maior poesia é a da sua vida que a do seus versos. Não será um poema o seu papel na conjuração de 1562 entre os chefes Tamoios?

Mesmo assim, nunca em suas composições negou ele aos seus catecúmenos os incitamentos de adoração à gleba e de respeito à obra civilizadora da colonização. No auto Santa Úrsula, por exemplo, fala esta a S. Maurício:

"E com vossa companhia
Faremos mais grossa armada
Com que seja bem guardada
A nossa Capitania".

E São Maurício a São Vidal:

"Ditosa Capitania
Que o Sumo Pai e Senhor
Abraça com tanto amor,
Aumentando cada dia
Suas graças e favor!".

E, mais adiante:

"Se os nossos portugueses
Nos quiseram sempre honrar,
Sentirão poucos revezes
De ingleses e franceses
e seguros podem 'star"...

Missionário cristão, fundiu num só o amor de Deus e o amor das criaturas. Os seus poemas eram profissões coletivas de fé, pedidos de auxílio divino para a gente bruta, incitamentos fervorosos à prática do bem.

É de alta poesia o quadro brasílico da catequese. A sotaina negra do homem frágil e só num imenso mundo ignorado, todo verde de árvores, tramado de cipós, agitado de feras, sonoro de aves, colorido de frutas; a seus pés, nos aldeamentos nascentes, o milagre de indomáveis tribos guerreiras, quebradas de pasmo, mansas de adoração, suspensas aos seus lábios e ao seu gesto, vencidas, convencidas, magicamente... E a invocação cristã subindo ao céu na língua pagã que Deus nunca ouvira... E o apóstolo-poeta entregando ao seu Deus e aos seus santos a gente convertida, implorando proteção, exterminando demônios ruins e expurgando de pecados as tabas abertas. Ele é aquele Anjo da Aldeia de Guarapari falando aos Diabos:

"Vinde cá, entrai e ouvi:
Esta aldeia que aqui está
Dos filhos de Deus é terra,
Não ouseis fazer-lhes mal,
Nem quero lhes façais dano,
Eu sou o guarda desta aldeia..."

Além, em Riritiba, um índio ensinado canta, em tupi, invocando a Virgem:

"Lembrai-vos de nossa terra!"

E, nesta terra achada e querida, meio século durou a ação forte, desvelada e serena do meigo Apóstolo do Novo Mundo. Negado por uns, por outros sustentado - que tal é a sorte dos homens de valia - como criador da literatura brasileira, se o não foi o ameno canarim, o que se lhe não pode sem muita má fé recusar, é o papel de iniciador, ou, pelo menos, de precursor de um nativismo que outra coisa não é senão um nacionalismo embrionário, puramente exterior no seu tempo, mas que cresceria de vulto no Século XVII, predominaria no XVIII e chegaria, nos séculos XIX e XX, a formar, por simples prolação histórica, esse nacionalismo superior, que se presume criação original de nossos dias.

[*] Excerto de uma tese de concurso.

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