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DIA DE ANCHIETA
Anchieta, literato (III)

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Situação literária de Anchieta (III)

Mello Nóbrega

Deixando de parte o exame objetivo mais aprofundado do valor literário da obra anchietana, e passando a considerá-la sob o ponto de vista crítico-histórico, procuremos situá-la no movimento cultural do tempo em que foi escrita. Essa questão parecerá alheia aos problemas de seu brasileirismo precursor e de sua significação artística; ao contrário, entretanto, a indagação é de importância capital por esclarecê-los e justificá-los.

Nascido em La Laguna, na ilha de Tenerife, José de Anchieta descendia, pelo ramo materno, de tronco nativo. As Ilhas Afortunadas dos antigos navegadores conservavam ainda, em pleno século XVI, hábitos e tradições imemoriais. Rodeava-as aquele mistério de terras perdidas nas brumas e abusões do Mar Oceano, em que se haviam situado os Campos Elíseos; onde Heródoto localizara o Jardim das Hespérides com os seus pomos de ouro; em que os fenícios punham seu Alizute, região de perpétua primavera... Numa dessas ilhas ergue-se a três mil e setecentos metros o pico vulcânico, em que os naturais viam a morada dos demônios - Echeyde (o Inferno). Essa montanha, Tener Ife ("monte branco"), na língua dos naturais da terra, foi, por muitos autores, identificada como o Atlas da geografia mitológica dos gregos.

Os primitivos habitantes das Canárias - guanchos -, povo de origem desconhecida e que muitos segredos ainda esconde à ciência etnográfica, eram gente rústica e pacífica. Viviam do pastoreio de cabras, do pequeno artesanato e de uma agricultura rudimentar. Cevada, raízes, carne caprina, frutos silvestres, leite e água - disso alimentavam-se. Nem sequer praticavam regularmente a pesca. Seus instrumentos de lavoura eram feitos de chifres de cabras, pois não conheciam o ferro ou qualquer outro metal. Suas facas eram lascas de pederneira; suas agulhas, fragmentos de ossos. Vestiam-se de peles curtidas, moravam em covas abertas nas encostas ou formadas pelo amontoamento de lavas. Embalsamavam seus mortos, valendo-se de processos tão eficazes que suas múmias chegaram até nossos dias, em imensas necrópoles subterrâneas.

Ignorando a arte de navegar, os guanchos isolavam-se até mesmo de grandes contatos com os habitantes da mesma raça, nas ilhas de seu arquipélago, sendo  ocasional e aventuroso o tráfico entre elas. Conservava-se cada grupo extreme de intercâmbios, o que lhes mantinha as características individualizantes de cultura, inscritas no quadro de uma origem comum, perdida nas névoas dos tempos. De modo geral, assemelhavam-se na língua e nos costumes, estes moldados num paganismo pré-clássico e aquela, ainda não bastante identificada, mas que os entendidos filiam a um subgrupo de dialetos berberes. Extinto no século XVII, o guancho perdura apenas em alguns indigenismos do castelhano falado nas ilhas Canárias e em inscrições em caracteres líbicos.

Adotando, embora, o regime de castas sociais, os guanchos, por uma aceitação consensual, havia paz e cordialidade entre nobres e plebeus, o que permitia vida tranqüila e operosa. Não existia a pena de morte; os crimes de maior gravidade eram punidos com a lapidação e o vergastamento, mas de maneira a não pôr em risco a vida dos condenados, cujas feridas eram cuidadosamente tratadas. Somente a Deus (Alcorac) era dado dispor da existência dos homens.

Negociavam-se os casamentos, entre os pretendentes e os pais das jovens e, apesar disso, era muito rara a infidelidade conjugal.

Como armas de defesa e de ataque, nem sequer o arco e a flecha: apenas calhaus, varapaus, dardos endurecidos ao fogo. Nas guerras, muito raras, observavam-se rigorosamente certos princípios: respeito aos lugares sagrados, aos velhos, às mulheres e às crianças; magnanimidade com os vencidos; nenhuma represália. No tagador, amplo recinto cercado de pedras, em que tomavam assento o rei, os sacerdotes e os grandes da corte, exerciam-se as atividades públicas: parlamento, tribunal e estádio; ali se resolviam os interesses coletivos, ministrava-se a justiça, praticavam-se jogos de força e destreza.

A arte era rudimentar, mas não desprovida de certa beleza: trabalhos de cerâmica, adornos femininos, obras em couro, feitura de armas. Dados à música e ao canto, eram os guanchos afeiçoados às danças. E também havia poetas entre eles. Conservam-se fragmentos de composições líricas e épicas a que não faltam encantos expressivos.

A educação das crianças processava-se por exortações e exemplos: qualquer falta de maior gravidade era apontada, com comentários a seus malefícios e à punição merecida.

Apesar dessa tradição de cordura, os guanchos tiveram de lutar em defesa da liberdade e o fizeram com altivez e denodo, contra invasões e conquistas: gregos, fenícios, cartagineses e romanos. Esquecidas durante a Idade Média, as Ilhas Afortunadas passaram para o lendário das terras edênicas ou maravilhosas, como Ofir, Is, Golconda e outras, em que a imaginação popular localizava paraísos e eldorados. Só no século XIV começaram as Canárias a aparecer em cartas geográficas. A fama de suas riquezas acendeu a cobiça dos navegadores que ali passaram a aportar, em busca de riquezas.

D. Luís de la Cerda, neto de Afonso o Sábio, conseguiu os direitos sobre o arquipélago, mas não chegou a exercê-los. Lá pelo ano de 1312, um comerciante genovês, Lancelotto Malocelli, apossou-se de uma das ilhas. Expedições evangelizadoras saídas de Malorca (1342 e 1352) e da Catalunha (1369 e 1384) estabeleceram nas Canárias alguns núcleos cristãos.

Só em 1402, entretanto, foram os guanchos, já então reduzidos a trezentos guerreiros, vencidos por Jean de Béthancourt, aventureiro normando, auxiliado pelos castelhanos. Dominando os piratas que se haviam estabelecido em algumas das ilhas, Béthancourt proclamou-se rei, prestando vassalagem a Castela. Seu parente Maciot, em 1430, cedeu seus direitos ao Conde de Niebla, que os repassou ao sevilhano Guillén de las Casas e ao infante D. Henrique, de Portugal (1448). De 1491 a 1494, os Reis Católicos consolidaram seu domínio. Os naturais da terra foram tratados com extremo rigor, a tal ponto que na própria Espanha movimentos generosos se levantaram para protegê-los. Foi em vão. Segundo se diz, no ano de 1620 morria o último guancho de raça pura, restando da raça apenas traços cada vez mais tênues, prolongados na mestiçagem.

A resistência dos naturais canarinos, apesar de sua inferioridade numérica, enfraquecida pela desigualdade de armas, foi heróica e demorada. Perto de La Laguna, em Orantapapa, há um lugar ainda hoje conhecido como Matanzas, que perpetua a memória de sangrenta derrota aí infligida aos conquistadores espanhóis.

Nossa digressão sobre os primitivos habitantes do arquipélago das Canárias não é, como poderá parecer, inteiramente descabida. Em nossa opinião, constitui argumento invocável para explicar a ação missionária de Anchieta entre os indígenas brasileiros. Como seus antepassados, nossos aborígines apresentavam-se nesse estado de primitivismo quase idêntico, revelando ao racionalismo renascentista a inocência da idade neolítica. Além disso, os dramas da conquista ameaçavam-nos do mesmo aniquilamento, pela escravidão e pelo extermínio, que haviam feito desaparecer a raça guancha. Diante do índio brasileiro, o canarino, em sua atividade catequética, punha, além de seus deveres de sacerdote, alguma coisa que lhe vinha dos sofrimentos e injustiças que havia presenciado e padecido também, indiretamente, pelo sangue que lhe corria nas veias.


A Casa Verdugo, como é conhecida em Tenerife a casa em que nasceu José de Anchieta

Quando nasceu José de Anchieta, em 1534, ainda eram muito recentes os acontecimentos que consolidaram a hegemonia castelhana sobre as terras guanchas. O espírito de resistência, manifestado no culto dos costumes tradicionais, a que não terá sido estranha sua formação infantil, por influência materna, ainda era muito vivo no povo canarim. É de admitir-se que, assim, algo lhe ficasse, a Anchieta, da mentalidade insular, que preservava hábitos imemoriais de que ainda perdura, apesar da assimilação, a tendência cavernícola da população mais pobre.

"Anchieta foi um insular e um jesuíta. O insular quase não tem pátria e o jesuíta não a tem absolutamente". Esta observação de Melo Morais Filho deve ser entendida em seu justo alcance. Os habitantes de pequenas ilhas têm, realmente, um anseio íntimo de evasão, que lhes despertam a vastidão e o mistério dos mares, a passagem dos barcos, indo e vindo, como convites de fuga, esse "desejo de estar além", que Vendérem denominou "exodismo".

Quanto aos discípulos de Santo Inácio, o voto de obediência, "perinde ac cadaver", desliga-os de apegos a pessoas e lugares, no exercício de sua atividade missionária. Lembremos, a propósito, a fórmula de profissão solene, dos dez primeiros companheiros de Loiola, pronunciada a 22 de abril de 1541, na basílica de São Paulo fora dos Muros, em Roma, e aprovada pelo Papa Paulo III: "...a tudo que nos ordenem os Pontífices Romanos, concernente à salvação das almas e à propagação da Fé, qualquer que seja a província a que para isso nos enviem, comprometemo-nos, no que de nós dependa, a obedecer imediatamente, sem tergiversações, sem escusas, quer entre os turcos, quer entre outros infiéis, até mesmo nessas regiões conhecidas como Índias, quer entre os heréticos ou cismáticos..."

Essa decisão missionária produziu resultados imediatos: em 1541, Francisco Xavier partia para as Índias, levando consigo apenas a Bíblia, o breviário e alguns manuscritos; quase ao mesmo tempo, Broet e Salmerón foram para a Irlanda e a Escócia, combater a insurreição anglicana provocada por Henrique VIII; às margens do Reno, Pierre Fabre defendia o catolicismo da campanha luterana... Quando Santo Inácio morreu em 1556, a Companhia já mantinha cerca de cem casas, repartidas por doze províncias, inclusive a do Brasil.

Três fatores concorreram decisivamente para a formação cultural do Padre Anchieta: o racial, o geográfico e o espiritual. Depois de passar a infância em sua terra natal, em contato direto com as tradições e os costumes locais, ingressou, aos dezessete anos, na Sociedade de Jesus, em Coimbra. Tinha dezenove quando veio para o Brasil, de onde nunca mais saiu. Pouco tempo teve, assim, para integrar-se no ambiente português, encerrado nas regras rigorosas de sua Ordem e dedicado à preparação da vida sacerdotal. Nota curiosa: Anchieta nascera quatro meses antes de Inácio de Loiola reunir alguns estudantes na igreja de Nossa Senhora de Montmartre, ligando-os por votos de castidade e de pobreza e pelo compromisso de fidelidade ao Papa.

Do meio acanhado, tradicionalista, em que se criara, à casa de formação religiosa e, daí, para a terra inóspita e distante de Santa Cruz, Anchieta não teve a oportunidade de assimilar a cultura profana de seu tempo. Afeiçoou-se intelectualmente pela doutrina eclesiástica, no espírito anti-reformista da Companhia e, aqui, sem o convívio de pessoas cultas, a não ser os irmãos de roupeta, lutando contra os desregramentos dos colonizadores e o primitivismo pagão dos indígenas, empenhado no estudo da língua e dos costumes nativos e no exercício de suas funções espiritual, didática e administrativa, não lhe sobraria lazer, ao Padre José, para interessar-se pela cultura leiga.

Di-lo o Padre Quirício Caxa, seu primeiro biógrafo: "O padre José não teve mais estudo, do que teve antes de entrar para a Companhia. Mas, contudo, teve suficiente doutrina, não somente para atender, mas também para resolver qualquer das ordinárias da Teologia, assim especulativa como moral, e para poder pregar, sem perigo de dizer alguma dissonância".

Essa falta de cultura profana, decorrente de circunstâncias individuais enquadradas no plano místico-reacionário de sua Ordem, situa a obra poética de Anchieta no âmbito dessa "estética jesuítica" a que se refere Joaquim Ribeiro e cuja estrutura estilística se baseia em três elementos: influxo bíblico, simplicidade medieval e exotismo brasileiro, que marcam "a primeira etapa da periodização de nossa história literária".

Importa precipuamente, em apoio de nossa tese, examinar os processos expressivos da poesia anchietana, de caráter medievalizante, para o qual convergem não apenas a finalística doutrinária e catequética, mas também, de modo particular, a formação psicológica e cultural de seu autor.

O medievalismo da poesia anchietana, entrevisto por Melo Morais Filho, é hoje aceito e defendido pelos que a estudam. Suas peças dramáticas, além dos recursos cênicos tomados aos mistérios representados ante ostium acclesiae, mostram, na técnica e na expressão, influências vicentinas denunciadoras de raízes medievais: "é... justo filiá-lo em linha reta, no que produz de melhor, à tradição religiosa e profana, de gosto popular, do teatro de Gil Vicente" (Péricles da Silva Pinheiro).

Nessa dramaturgia medievalizante manifesta-se a quebra das unidades aristotélicas, o que os autores renascentistas combatiam, reconduzindo o teatro à estrutura clássica; persistia o aproveitamento da montagem aparatosa, com os ingênuos truques usados nos mistérios; explorava-se a mistura de personagens reais, sobrenaturais e simbólicos ou alegóricos; e, como elemento novo, a par do aproveitamento dos mitos locais, o condicionamento piedoso do espetáculo aos fins catequéticos.

Muitas vezes, as intenções moralizantes envolviam críticas aos costumes dos colonizadores - o que, respeitadas as condições do meio e do objetivo visado, seguia a linha dos autos vicentinos. Essa aproximação, todavia, estava bem mais caracterizada nos processos dramáticos do que nos expressivos, por isso que Gil Vicente incluía em sua censura o próprio clero, valendo-se de linguagem por vezes bastante crua, o que seria incompatível com os intuitos edificantes de Anchieta e a suavidade de sua natureza, além de sua condição sacerdotal.

Divergem os estudiosos de nossa história literária quanto à situação da obra de nosso primeiro poeta nas correntes que conformaram a expressão e o conteúdo da arte escrita dos séculos XV e XVI. Para Joaquim Ribeiro, Anchieta revela-se poeta medievalizante; para Armando de Carvalho, escritor de cores clássicas. Para Eduardo Portela, figura de transição entre o medioevismo e o movimento renascentista; para Afrânio Coutinho, a mais alta expressão do espírito barroco, no meio e no tempo em que viveu.

Tais divergências, parece-nos, têm origem nas circunstâncias especiais da evolução literária de Portugal e da Espanha, que determinaram a falta de sincronismo nas manifestações do Renascimento. Nos dois países, essas reações foram tardias, o que reduziu o interregno entre elas e as do Barroco, abrindo um período sincrético, uma faixa de interpenetração. Eduardo Portela assim objetivou a questão: "Mesmo considerando que, já no século XII, Portugal possuía um humanista da importância de Pedro Hispano (o papa João XXI), e sabendo também da predominância de livros clássicos nas bibliotecas portuguesas ilustres, não se pode deixar de sentir a ausência de uma grande obra que, escrita na Península, estivesse direta e integralmente comprometida com a linha típica, específica, do Renascimento".

Excetuado o caso de Camões, que exige estudo particularizado, e levando em conta as matizações que o renascentismo italiano assumiu em outros países, sob influências históricas e culturais, o avisado crítico ressaltou que o retardamento desse movimento, em Portugal e na Espanha, prolongou, em sua literatura, os reflexos medievalizantes.

Situa-se Anchieta, por circunstâncias pessoais e ambientes, como figura transicional entre o Medievalismo e o Barroco, quase extreme de contágios renascentistas. Se, quanto à temática, dados a natureza e os objetivos de sua arte, o afastamento dos motivos mitológicos e eróticos é naturalmente explicável, o mesmo não se poderá dizer dos processos comunicativos, que não obedeceram a uma escolha circunstancial, revelando, ao contrário, uma involuntariedade oriunda da formação cultural do poeta. Já houve quem visse, na simplicidade da forma anchietana, uma adequação didática a fins edificantes e catequéticos, o que não excluiu suas cores medievalizantes, dando-lhes, apenas, novo processamento.

As notas barrocas encontráveis na poesia de Anchieta (o que se acentua nas obras mais recentes) explicar-se-iam por tardia influência, ainda não identificada, ou como simples manifestação de uma constante histórica, permanente e universal, a aceitar-se a tese do Pré-barroquismo, com raízes na literatura clássica latina.

O medievalismo anchietano não está apenas na temática, mas também na expressão literária. Ou, como disse Eduardo Portela, "é medieval não somente pelo seu comportamento, ao realizar uma poesia simples, de timbre didático, porém medieval também pela sua forma poética, seus ritmos, sua métrica... A sua própria linguagem apresenta, por vezes, traços nitidamente medievalizantes".

Nos autos de Anchieta patenteiam-se, em abono dessa afirmativa, elementos valiosos de estudo, tanto na técnica dramática, de corte vicentino, quanto na expressão verbal. Joaquim Ribeiro examinou-os, assinalando peculiaridades que os aproximam dos mistérios e mostrando que a sua arte "é simples, singela, desataviada, quase rústica" na ausência de recursos e enleios estilísticos. Fê-lo, entretanto, para compará-la com a linguagem de Camões, o que não permitiu conclusão válida criticamente, a não ser que os poucos pontos de semelhança apontados se expliquem pela reminiscência de certos caprichos verbais de autores latinos.

Ousamos acreditar, porém, que as alterações apontadas em alguns passos anchietanos é puramente casual, sem qualquer intuito retórico, recurso que destoaria da simplicidade elocutiva de nosso poeta. Mais improcedente, ainda, a nosso ver, a observação feita a um verso do Auto de Santa Úrsula (reconstituído por Joaquim Ribeiro), de intencionalidade de um cacófato grosseiro, que se admitiria em Gil Vicente, mas nunca em Anchieta, mesmo no intuito de ridicularizar a figura diabólica que o profere.

Para Leodegário de Azevedo Filho, a situação histórico-literária do Padre José de Anchieta é assim definida: "Com efeito, a visão do mundo que se encontra no jesuíta é puramente medieval, teocêntrica, sem contatos maiores com a época renascentista. Sua posição, fixada pela cultura e pela ação contra-reformista e acentuada no combate ao paganismo, situa-se no prolongamento do medievalismo, nesse Pré-barroquismo implícito, particularização da corrente literária definida por Eugênio D'Ors. A estética barroca viria a caracterizar-se, em nossa língua, no século XVII".

Nesse mesmo ponto de vista colocou-se Sérgio Buarque de Holanda, em ligeiro estudo sobre a literatura jesuítica: "Forçando um pouco o sentido das palavras, cabe dizer que, na arte, assim como na vida social, saímos da Idade Média para o Barroco, sem conhecer o Renascentismo".

A própria conceituação do Barroco afasta a obra de Anchieta de seus quadros temático e expressivo. Ou, como argumentou Afrânio Coutinho: "Seria destruir por completo o conceito (de Barroco) aplicá-lo à definição de manifestações distantes do século XVII, onde, e somente, as condições espirituais foram convenientes para o seu desenvolvimento, fazendo com que o aspecto formal encarnasse um estado de espírito que se lhe ajustava à maravilha".

Domingos Carvalho da Silva assim fixou a posição medievalizante de Anchieta: "A poesia anterior era ainda um reflexo do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende. Anchieta foi, no Brasil do século XVI, um poeta do fim da Idade Média, escrevendo trovas de arte menor e de arte maior, na medida antiga, como tinham feito, em Portugal, no fim do século XV e no começo do mesmo século XVI, um Diogo Brandão, um Luís Henriques, um Francisco de Sá Meneses, um D. Francisco de Portugal, Gil Vicente e o próprio Sá de Miranda, antes de sua viagem à Itália..."

Parece ao mesmo autor que, nos versos de arte maior, Anchieta apresenta alguma influência petrarquista, indiretamente recebida, pois não é de supor-se que em seu isolamento pudesse ter lido os raros livros de Petrarca chegados ao Brasil.

O apego às velhas fórmulas expressivas, que distanciam Anchieta de seus contemporâneos, já foi também atribuído a uma ligação com o cancioneiro popular ibérico, dos romances ouvidos na infância e na adolescência, tese que se entronca na do insulamento cultural do poeta.

O fato é que a poesia anchietana denuncia traços nítidos de medievalismo, chegando, por vezes, a lembrar o cavalheirismo trovadoresco. Leodegário de Azevedo Filho, em sua tese de concurso, A Poética de Anchieta, já citada, cingindo-se à poesia lírica de nosso primeiro escritor, examinou detidamente sua estrutura métrica e estrófica, pondo em ressalte seu caráter medievalizante. Suas conclusões, baseadas na análise técnica do verso, confirmam as opiniões anteriores, que se amparavam apenas em seus aspectos temáticos e estabelecem, definitivamente, a situação de Anchieta.

Místico medievalizante, pôde ele conservar, com a ingenuidade piedosa dos motivos, a simplicidade expressiva: nem as especulações humanistas, nem os retorcimentos estilísticos,  nem o intelectualismo neoclássico, nem as sutilezas barrocas. Essa preservação de sua ingenuidade original, de homem insuflado pelo nascimento, pela cultura e pela fé, essa individualização anacrônica - digamos assim - tirou-lhe qualquer tendência colonialista ou culteranista, vigente no seu tempo, permitindo-lhe a integração num meio primitivo, ainda no estado pós-edênico, à espera da redenção.

Esse barbarismo intelectual e moral não entenderia, certamente, a apelos formulados com argumentos dialéticos ou ilustrações retóricas, tomados diretamente aos textos evangélicos e doutrinários. Não bastaria pôr a fé cristã ao alcance dessas consciências inocentemente embrutecidas; impunha-se também comunicá-la em linguagem acessível, complementada por diretas representações.

Daí, a par do catecismo, os espetáculos piedosos que falassem à compreensão e à sensibilidade do gentio, na materialização didática da divindade e da santidade, do vício e do pecado, da salvação e do castigo, em cenas vivas, de efeitos um tanto sensacionalistas. Essa dramatização exigia, entretanto, além de movimentação impressiva, diálogos em linguagem desataviada e penetrante, que acentuassem sua significação aplicativa.

Não houvesse Anchieta escrito em seus autos de devoção com a singeleza que conservara, e a catequese dos nossos índios não teria produzido os efeitos que tanto influíram nos primórdios de nossa civilização.

Nosso primeiro santo está a caminho dos altares, levando pela mão o nosso primeiro poeta.

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