Situação literária de Anchieta (III)
Mello Nóbrega
Deixando de parte o exame objetivo mais
aprofundado do valor literário da obra anchietana, e passando a considerá-la sob o ponto de vista crítico-histórico, procuremos
situá-la no movimento cultural do tempo em que foi escrita. Essa questão parecerá alheia aos problemas de seu brasileirismo
precursor e de sua significação artística; ao contrário, entretanto, a indagação é de importância capital por esclarecê-los e
justificá-los.
Nascido em La Laguna, na ilha de Tenerife, José de Anchieta
descendia, pelo ramo materno, de tronco nativo. As Ilhas Afortunadas dos antigos navegadores conservavam ainda, em pleno século
XVI, hábitos e tradições imemoriais. Rodeava-as aquele mistério de terras perdidas nas brumas e abusões do Mar Oceano, em que se
haviam situado os Campos Elíseos; onde Heródoto localizara o Jardim das Hespérides com os seus pomos de ouro; em que os fenícios
punham seu Alizute, região de perpétua primavera... Numa dessas ilhas ergue-se a três mil e setecentos metros o pico vulcânico,
em que os naturais viam a morada dos demônios - Echeyde (o Inferno). Essa montanha, Tener Ife ("monte branco"), na língua dos
naturais da terra, foi, por muitos autores, identificada como o Atlas da geografia mitológica dos gregos.
Os primitivos habitantes das Canárias - guanchos -, povo de origem
desconhecida e que muitos segredos ainda esconde à ciência etnográfica, eram gente rústica e pacífica. Viviam do pastoreio de
cabras, do pequeno artesanato e de uma agricultura rudimentar. Cevada, raízes, carne caprina, frutos silvestres, leite e água -
disso alimentavam-se. Nem sequer praticavam regularmente a pesca. Seus instrumentos de lavoura eram feitos de chifres de cabras,
pois não conheciam o ferro ou qualquer outro metal. Suas facas eram lascas de pederneira; suas agulhas, fragmentos de ossos.
Vestiam-se de peles curtidas, moravam em covas abertas nas encostas ou formadas pelo amontoamento de lavas. Embalsamavam seus
mortos, valendo-se de processos tão eficazes que suas múmias chegaram até nossos dias, em imensas necrópoles subterrâneas.
Ignorando a arte de navegar, os guanchos isolavam-se até mesmo de
grandes contatos com os habitantes da mesma raça, nas ilhas de seu arquipélago, sendo ocasional e aventuroso o tráfico
entre elas. Conservava-se cada grupo extreme de intercâmbios, o que lhes mantinha as características individualizantes de
cultura, inscritas no quadro de uma origem comum, perdida nas névoas dos tempos. De modo geral, assemelhavam-se na língua e nos
costumes, estes moldados num paganismo pré-clássico e aquela, ainda não bastante identificada, mas que os entendidos filiam a um
subgrupo de dialetos berberes. Extinto no século XVII, o guancho perdura apenas em alguns indigenismos do castelhano falado nas
ilhas Canárias e em inscrições em caracteres líbicos.
Adotando, embora, o regime de castas sociais, os guanchos, por uma
aceitação consensual, havia paz e cordialidade entre nobres e plebeus, o que permitia vida tranqüila e operosa. Não existia a
pena de morte; os crimes de maior gravidade eram punidos com a lapidação e o vergastamento, mas de maneira a não pôr em risco a
vida dos condenados, cujas feridas eram cuidadosamente tratadas. Somente a Deus (Alcorac) era dado dispor da existência dos
homens.
Negociavam-se os casamentos, entre os pretendentes e os pais das
jovens e, apesar disso, era muito rara a infidelidade conjugal.
Como armas de defesa e de ataque, nem sequer o arco e a flecha:
apenas calhaus, varapaus, dardos endurecidos ao fogo. Nas guerras, muito raras, observavam-se rigorosamente certos princípios:
respeito aos lugares sagrados, aos velhos, às mulheres e às crianças; magnanimidade com os vencidos; nenhuma represália. No
tagador, amplo recinto cercado de pedras, em que tomavam assento o rei, os sacerdotes e os grandes da corte, exerciam-se as
atividades públicas: parlamento, tribunal e estádio; ali se resolviam os interesses coletivos, ministrava-se a justiça,
praticavam-se jogos de força e destreza.
A arte era rudimentar, mas não desprovida de certa beleza:
trabalhos de cerâmica, adornos femininos, obras em couro, feitura de armas. Dados à música e ao canto, eram os guanchos
afeiçoados às danças. E também havia poetas entre eles. Conservam-se fragmentos de composições líricas e épicas a que não faltam
encantos expressivos.
A educação das crianças processava-se por exortações e exemplos:
qualquer falta de maior gravidade era apontada, com comentários a seus malefícios e à punição merecida.
Apesar dessa tradição de cordura, os guanchos tiveram de lutar em
defesa da liberdade e o fizeram com altivez e denodo, contra invasões e conquistas: gregos, fenícios, cartagineses e romanos.
Esquecidas durante a Idade Média, as Ilhas Afortunadas passaram para o lendário das terras edênicas ou maravilhosas, como Ofir,
Is, Golconda e outras, em que a imaginação popular localizava paraísos e eldorados. Só no século XIV começaram as Canárias a
aparecer em cartas geográficas. A fama de suas riquezas acendeu a cobiça dos navegadores que ali passaram a aportar, em busca de
riquezas.
D. Luís de la Cerda, neto de Afonso o Sábio, conseguiu os direitos
sobre o arquipélago, mas não chegou a exercê-los. Lá pelo ano de 1312, um comerciante genovês, Lancelotto Malocelli, apossou-se
de uma das ilhas. Expedições evangelizadoras saídas de Malorca (1342 e 1352) e da Catalunha (1369 e 1384) estabeleceram nas
Canárias alguns núcleos cristãos.
Só em 1402, entretanto, foram os guanchos, já então reduzidos a
trezentos guerreiros, vencidos por Jean de Béthancourt, aventureiro normando, auxiliado pelos castelhanos. Dominando os piratas
que se haviam estabelecido em algumas das ilhas, Béthancourt proclamou-se rei, prestando vassalagem a Castela. Seu parente
Maciot, em 1430, cedeu seus direitos ao Conde de Niebla, que os repassou ao sevilhano Guillén de las Casas e ao infante D.
Henrique, de Portugal (1448). De 1491 a 1494, os Reis Católicos consolidaram seu domínio. Os naturais da terra foram tratados
com extremo rigor, a tal ponto que na própria Espanha movimentos generosos se levantaram para protegê-los. Foi em vão. Segundo
se diz, no ano de 1620 morria o último guancho de raça pura, restando da raça apenas traços cada vez mais tênues, prolongados na
mestiçagem.
A resistência dos naturais canarinos, apesar de sua inferioridade
numérica, enfraquecida pela desigualdade de armas, foi heróica e demorada. Perto de La Laguna, em Orantapapa, há um lugar ainda
hoje conhecido como Matanzas, que perpetua a memória de sangrenta derrota aí infligida aos conquistadores espanhóis.
Nossa digressão sobre os primitivos habitantes do arquipélago das
Canárias não é, como poderá parecer, inteiramente descabida. Em nossa opinião, constitui argumento invocável para explicar a
ação missionária de Anchieta entre os indígenas brasileiros. Como seus antepassados, nossos aborígines apresentavam-se nesse
estado de primitivismo quase idêntico, revelando ao racionalismo renascentista a inocência da idade neolítica. Além disso, os
dramas da conquista ameaçavam-nos do mesmo aniquilamento, pela escravidão e pelo extermínio, que haviam feito desaparecer a raça
guancha. Diante do índio brasileiro, o canarino, em sua atividade catequética, punha, além de seus deveres de sacerdote, alguma
coisa que lhe vinha dos sofrimentos e injustiças que havia presenciado e padecido também, indiretamente, pelo sangue que lhe
corria nas veias.
A Casa Verdugo, como é conhecida em Tenerife a casa em que
nasceu José de Anchieta
Quando nasceu José de Anchieta, em 1534, ainda eram muito recentes
os acontecimentos que consolidaram a hegemonia castelhana sobre as terras guanchas. O espírito de resistência, manifestado no
culto dos costumes tradicionais, a que não terá sido estranha sua formação infantil, por influência materna, ainda era muito
vivo no povo canarim. É de admitir-se que, assim, algo lhe ficasse, a Anchieta, da mentalidade insular, que preservava hábitos
imemoriais de que ainda perdura, apesar da assimilação, a tendência cavernícola da população mais pobre.
"Anchieta foi um insular e um
jesuíta. O insular quase não tem pátria e o jesuíta não a tem absolutamente". Esta observação de
Melo Morais Filho deve ser entendida em seu justo alcance. Os habitantes de pequenas ilhas têm, realmente, um anseio íntimo de
evasão, que lhes despertam a vastidão e o mistério dos mares, a passagem dos barcos, indo e vindo, como convites de fuga, esse
"desejo de estar além", que Vendérem denominou "exodismo".
Quanto aos discípulos de Santo Inácio, o voto de obediência, "perinde
ac cadaver", desliga-os de apegos a pessoas e lugares, no exercício de sua atividade missionária. Lembremos, a propósito, a
fórmula de profissão solene, dos dez primeiros companheiros de Loiola, pronunciada a 22 de abril de 1541, na basílica de São
Paulo fora dos Muros, em Roma, e aprovada pelo Papa Paulo III: "...a tudo que nos ordenem os
Pontífices Romanos, concernente à salvação das almas e à propagação da Fé, qualquer que seja a província a que para isso nos
enviem, comprometemo-nos, no que de nós dependa, a obedecer imediatamente, sem tergiversações, sem escusas, quer entre os
turcos, quer entre outros infiéis, até mesmo nessas regiões conhecidas como Índias, quer entre os heréticos ou cismáticos..."
Essa decisão missionária produziu resultados imediatos: em 1541,
Francisco Xavier partia para as Índias, levando consigo apenas a Bíblia, o breviário e alguns manuscritos; quase ao mesmo tempo,
Broet e Salmerón foram para a Irlanda e a Escócia, combater a insurreição anglicana provocada por Henrique VIII; às margens do
Reno, Pierre Fabre defendia o catolicismo da campanha luterana... Quando Santo Inácio morreu em 1556, a Companhia já mantinha
cerca de cem casas, repartidas por doze províncias, inclusive a do Brasil.
Três fatores concorreram decisivamente para a formação cultural do
Padre Anchieta: o racial, o geográfico e o espiritual. Depois de passar a infância em sua terra natal, em contato direto com as
tradições e os costumes locais, ingressou, aos dezessete anos, na Sociedade de Jesus, em Coimbra. Tinha dezenove quando veio
para o Brasil, de onde nunca mais saiu. Pouco tempo teve, assim, para integrar-se no ambiente português, encerrado nas regras
rigorosas de sua Ordem e dedicado à preparação da vida sacerdotal. Nota curiosa: Anchieta nascera quatro meses antes de Inácio
de Loiola reunir alguns estudantes na igreja de Nossa Senhora de Montmartre, ligando-os por votos de castidade e de pobreza e
pelo compromisso de fidelidade ao Papa.
Do meio acanhado, tradicionalista, em que se criara, à casa de
formação religiosa e, daí, para a terra inóspita e distante de Santa Cruz, Anchieta não teve a oportunidade de assimilar a
cultura profana de seu tempo. Afeiçoou-se intelectualmente pela doutrina eclesiástica, no espírito anti-reformista da Companhia
e, aqui, sem o convívio de pessoas cultas, a não ser os irmãos de roupeta, lutando contra os desregramentos dos colonizadores e
o primitivismo pagão dos indígenas, empenhado no estudo da língua e dos costumes nativos e no exercício de suas funções
espiritual, didática e administrativa, não lhe sobraria lazer, ao Padre José, para interessar-se pela cultura leiga.
Di-lo o Padre Quirício Caxa, seu primeiro biógrafo: "O padre José não teve mais estudo, do que teve antes de entrar para a Companhia. Mas, contudo, teve suficiente
doutrina, não somente para atender, mas também para resolver qualquer das ordinárias da Teologia, assim especulativa como moral,
e para poder pregar, sem perigo de dizer alguma dissonância".
Essa falta de cultura profana, decorrente de circunstâncias
individuais enquadradas no plano místico-reacionário de sua Ordem, situa a obra poética de Anchieta no âmbito dessa "estética
jesuítica" a que se refere Joaquim Ribeiro e cuja estrutura estilística se baseia em três elementos: influxo bíblico,
simplicidade medieval e exotismo brasileiro, que marcam "a primeira etapa da periodização de nossa história literária".
Importa precipuamente, em apoio de nossa tese, examinar os
processos expressivos da poesia anchietana, de caráter medievalizante, para o qual convergem não apenas a finalística
doutrinária e catequética, mas também, de modo particular, a formação psicológica e cultural de seu autor.
O medievalismo da poesia anchietana, entrevisto por Melo Morais
Filho, é hoje aceito e defendido pelos que a estudam. Suas peças dramáticas, além dos recursos cênicos tomados aos mistérios
representados ante ostium acclesiae, mostram, na técnica e na expressão, influências vicentinas denunciadoras de raízes
medievais: "é... justo filiá-lo em linha reta, no que produz de melhor, à tradição religiosa e
profana, de gosto popular, do teatro de Gil Vicente" (Péricles da Silva Pinheiro).
Nessa dramaturgia medievalizante manifesta-se a quebra das
unidades aristotélicas, o que os autores renascentistas combatiam, reconduzindo o teatro à estrutura clássica; persistia o
aproveitamento da montagem aparatosa, com os ingênuos truques usados nos mistérios; explorava-se a mistura de personagens reais,
sobrenaturais e simbólicos ou alegóricos; e, como elemento novo, a par do aproveitamento dos mitos locais, o condicionamento
piedoso do espetáculo aos fins catequéticos.
Muitas vezes, as intenções moralizantes envolviam críticas aos
costumes dos colonizadores - o que, respeitadas as condições do meio e do objetivo visado, seguia a linha dos autos vicentinos.
Essa aproximação, todavia, estava bem mais caracterizada nos processos dramáticos do que nos expressivos, por isso que Gil
Vicente incluía em sua censura o próprio clero, valendo-se de linguagem por vezes bastante crua, o que seria incompatível com os
intuitos edificantes de Anchieta e a suavidade de sua natureza, além de sua condição sacerdotal.
Divergem os estudiosos de nossa história literária quanto à
situação da obra de nosso primeiro poeta nas correntes que conformaram a expressão e o conteúdo da arte escrita dos séculos XV e
XVI. Para Joaquim Ribeiro, Anchieta revela-se poeta medievalizante; para Armando de Carvalho, escritor de cores clássicas. Para
Eduardo Portela, figura de transição entre o medioevismo e o movimento renascentista; para Afrânio Coutinho, a mais alta
expressão do espírito barroco, no meio e no tempo em que viveu.
Tais divergências, parece-nos, têm origem nas circunstâncias
especiais da evolução literária de Portugal e da Espanha, que determinaram a falta de sincronismo nas manifestações do
Renascimento. Nos dois países, essas reações foram tardias, o que reduziu o interregno entre elas e as do Barroco, abrindo um
período sincrético, uma faixa de interpenetração. Eduardo Portela assim objetivou a questão: "Mesmo
considerando que, já no século XII, Portugal possuía um humanista da importância de Pedro Hispano (o papa João XXI), e sabendo
também da predominância de livros clássicos nas bibliotecas portuguesas ilustres, não se pode deixar de sentir a ausência de uma
grande obra que, escrita na Península, estivesse direta e integralmente comprometida com a linha típica, específica, do
Renascimento".
Excetuado o caso de Camões, que exige estudo particularizado, e
levando em conta as matizações que o renascentismo italiano assumiu em outros países, sob influências históricas e culturais, o
avisado crítico ressaltou que o retardamento desse movimento, em Portugal e na Espanha, prolongou, em sua literatura, os
reflexos medievalizantes.
Situa-se Anchieta, por circunstâncias pessoais e ambientes, como
figura transicional entre o Medievalismo e o Barroco, quase extreme de contágios renascentistas. Se, quanto à temática, dados a
natureza e os objetivos de sua arte, o afastamento dos motivos mitológicos e eróticos é naturalmente explicável, o mesmo não se
poderá dizer dos processos comunicativos, que não obedeceram a uma escolha circunstancial, revelando, ao contrário, uma
involuntariedade oriunda da formação cultural do poeta. Já houve quem visse, na simplicidade da forma anchietana, uma adequação
didática a fins edificantes e catequéticos, o que não excluiu suas cores medievalizantes, dando-lhes, apenas, novo
processamento.
As notas barrocas encontráveis na poesia de Anchieta (o que se
acentua nas obras mais recentes) explicar-se-iam por tardia influência, ainda não identificada, ou como simples manifestação de
uma constante histórica, permanente e universal, a aceitar-se a tese do Pré-barroquismo, com raízes na literatura clássica
latina.
O medievalismo anchietano não está apenas na temática, mas também
na expressão literária. Ou, como disse Eduardo Portela, "é medieval não somente pelo seu
comportamento, ao realizar uma poesia simples, de timbre didático, porém medieval também pela sua forma poética, seus ritmos,
sua métrica... A sua própria linguagem apresenta, por vezes, traços nitidamente medievalizantes".
Nos autos de Anchieta patenteiam-se, em abono dessa afirmativa,
elementos valiosos de estudo, tanto na técnica dramática, de corte vicentino, quanto na expressão verbal. Joaquim Ribeiro
examinou-os, assinalando peculiaridades que os aproximam dos mistérios e mostrando que a sua arte "é
simples, singela, desataviada, quase rústica" na ausência de recursos e enleios estilísticos.
Fê-lo, entretanto, para compará-la com a linguagem de Camões, o que não permitiu conclusão válida criticamente, a não ser que os
poucos pontos de semelhança apontados se expliquem pela reminiscência de certos caprichos verbais de autores latinos.
Ousamos acreditar, porém, que as alterações apontadas em alguns
passos anchietanos é puramente casual, sem qualquer intuito retórico, recurso que destoaria da simplicidade elocutiva de nosso
poeta. Mais improcedente, ainda, a nosso ver, a observação feita a um verso do Auto de Santa Úrsula (reconstituído por
Joaquim Ribeiro), de intencionalidade de um cacófato grosseiro, que se admitiria em Gil Vicente, mas nunca em Anchieta, mesmo no
intuito de ridicularizar a figura diabólica que o profere.
Para Leodegário de Azevedo Filho, a situação histórico-literária
do Padre José de Anchieta é assim definida: "Com efeito, a visão do mundo que se encontra no
jesuíta é puramente medieval, teocêntrica, sem contatos maiores com a época renascentista. Sua posição, fixada pela cultura e
pela ação contra-reformista e acentuada no combate ao paganismo, situa-se no prolongamento do medievalismo, nesse
Pré-barroquismo implícito, particularização da corrente literária definida por Eugênio D'Ors. A estética barroca viria a
caracterizar-se, em nossa língua, no século XVII".
Nesse mesmo ponto de vista colocou-se Sérgio Buarque de Holanda,
em ligeiro estudo sobre a literatura jesuítica: "Forçando um pouco o sentido das palavras, cabe
dizer que, na arte, assim como na vida social, saímos da Idade Média para o Barroco, sem conhecer o Renascentismo".
A própria conceituação do Barroco afasta a obra de Anchieta de
seus quadros temático e expressivo. Ou, como argumentou Afrânio Coutinho: "Seria destruir por
completo o conceito (de Barroco) aplicá-lo à definição de manifestações distantes do século XVII, onde, e somente, as condições
espirituais foram convenientes para o seu desenvolvimento, fazendo com que o aspecto formal encarnasse um estado de espírito que
se lhe ajustava à maravilha".
Domingos Carvalho da Silva assim fixou a posição medievalizante de
Anchieta: "A poesia anterior era ainda um reflexo do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende.
Anchieta foi, no Brasil do século XVI, um poeta do fim da Idade Média, escrevendo trovas de arte menor e de arte maior, na
medida antiga, como tinham feito, em Portugal, no fim do século XV e no começo do mesmo século XVI, um Diogo Brandão, um Luís
Henriques, um Francisco de Sá Meneses, um D. Francisco de Portugal, Gil Vicente e o próprio Sá de Miranda, antes de sua viagem à
Itália..."
Parece ao mesmo autor que, nos versos de arte maior, Anchieta
apresenta alguma influência petrarquista, indiretamente recebida, pois não é de supor-se que em seu isolamento pudesse ter lido
os raros livros de Petrarca chegados ao Brasil.
O apego às velhas fórmulas expressivas, que distanciam Anchieta de
seus contemporâneos, já foi também atribuído a uma ligação com o cancioneiro popular ibérico, dos romances ouvidos na infância e
na adolescência, tese que se entronca na do insulamento cultural do poeta.
O fato é que a poesia anchietana denuncia traços nítidos de
medievalismo, chegando, por vezes, a lembrar o cavalheirismo trovadoresco. Leodegário de Azevedo Filho, em sua tese de concurso,
A Poética de Anchieta, já citada, cingindo-se à poesia lírica de nosso primeiro escritor, examinou detidamente sua
estrutura métrica e estrófica, pondo em ressalte seu caráter medievalizante. Suas conclusões, baseadas na análise técnica do
verso, confirmam as opiniões anteriores, que se amparavam apenas em seus aspectos temáticos e estabelecem, definitivamente, a
situação de Anchieta.
Místico medievalizante, pôde ele conservar, com a ingenuidade
piedosa dos motivos, a simplicidade expressiva: nem as especulações humanistas, nem os retorcimentos estilísticos, nem o
intelectualismo neoclássico, nem as sutilezas barrocas. Essa preservação de sua ingenuidade original, de homem insuflado pelo
nascimento, pela cultura e pela fé, essa individualização anacrônica - digamos assim - tirou-lhe qualquer tendência colonialista
ou culteranista, vigente no seu tempo, permitindo-lhe a integração num meio primitivo, ainda no estado pós-edênico, à espera da
redenção.
Esse barbarismo intelectual e moral não entenderia, certamente, a
apelos formulados com argumentos dialéticos ou ilustrações retóricas, tomados diretamente aos textos evangélicos e doutrinários.
Não bastaria pôr a fé cristã ao alcance dessas consciências inocentemente embrutecidas; impunha-se também comunicá-la em
linguagem acessível, complementada por diretas representações.
Daí, a par do catecismo, os espetáculos piedosos que falassem à
compreensão e à sensibilidade do gentio, na materialização didática da divindade e da santidade, do vício e do pecado, da
salvação e do castigo, em cenas vivas, de efeitos um tanto sensacionalistas. Essa dramatização exigia, entretanto, além de
movimentação impressiva, diálogos em linguagem desataviada e penetrante, que acentuassem sua significação aplicativa.
Não houvesse Anchieta escrito em seus autos de devoção com a
singeleza que conservara, e a catequese dos nossos índios não teria produzido os efeitos que tanto influíram nos primórdios de
nossa civilização.
Nosso primeiro santo está a caminho dos altares, levando pela mão
o nosso primeiro poeta. |