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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - RANULPHO
Ranulpho Prata (2)

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Médico e escritor, como consta obrigatoriamente em placas nessa rua de Santos, Ranulpho Prata nasceu em Lagarto/SE a 4 de maio de 1896. Viveu a maior parte de sua existência em Santos, onde exerceu a clínica médica. Estreou na Literatura em 1918 com o romance O Triunfo, em 1934 publicou no Rio de Janeiro a obra Lampião, e se destacou em 1937 com a publicação de Navios Iluminados. Faleceu em Santos a 24 de dezembro de 1942.

O jornal Correio Paulistano, da capital paulista, publicou em 20 de fevereiro de 1938 esta análise de seu livro Navios Iluminados, pelo crítico Nelson Werneck Sodré (ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014):

Imagem: detalhe da página 25 do jornal Correio Paulistano de 20/2/1938

Livros novos

Nelson Werneck Sodré

NAVIOS ILUMINADOS - Ranulpho Prata - Livraria José Olympio Editora - Rio - 1937

Navios Iluminados é o romance do nortista que vem ao Sul em busca de trabalho. A história de Severino é a mesma de todos os outros. A pobreza do meio nordestino, a lenda fulgurante dos elevados salários existentes no Sul, a ânsia de melhorar de sorte e de amparar as famílias numerosas - impelem os habitantes daquelas plagas a buscarem os grandes centros em que o desenvolvimento da riqueza permite maiores oportunidades aos trabalhadores.

Uma ilusão, em suma, como outra qualquer. Ilusão de que os adventícios se desfazem logo ao chegar às novas terras, quando verificam a dificuldade na obtenção dos empregos e na falsidade do salário aparentemente elevado, que se dilui na alta do preço da vida. Todas as esperanças se desfazem nesse contato áspero com a realidade. O velho desespero de socorrer aqueles que ficaram nos recantos de origem, enviando-lhes as sobras do minguado salário, fica frustrado ante as necessidades da própria subsistência.

No romance do sr. Ranulpho Prata esses detalhes surgem em toda a plenitude. A história de José Severino é igual à história de todos os seus companheiros que demandam os centros maiores do país. Na partida, o mundo das esperanças e das ilusões, a mentira dos conselhos daqueles que, tendo provado o amargor da realidade, temem confessar o erro em que incidiram e que disfarçam através das falsas palavras. Na travessia, ante o desconforto ainda subsiste o amparo da confiança numa rápida melhora, tão logo cheguem à terra prometida. Na chegada, o espanto ante os novos hábitos e a visão dum progresso que os deixa atônitos.

Após os primeiros dias, as primeiras nuvens. Os primeiros desenganos obscurecendo a confiança primitiva. As dificuldades surgindo. As necessidades aumentando. As economias se esvaindo. A busca tenaz dos empregos. A repetição das mesmas negativas. os primeiros desânimos. Os primeiros desenganos.

Com José Severino aconteceu tudo isso. Levado pela fala mansa de Felício, no intuito de ajudar a mãe, os irmãos, o pai, trabalhadores todos, larga a terra natal e acompanha o amigo, com destino a Santos, onde trabalhará na estiva. Traz algum dinheiro, para os primeiros dias. De resto, Felício arrumará tudo. Tem o desembaraço dos que possuem a prática da vida. Anima-o uma tranquila filosofia. Tudo para ele é fácil. Tem uma confiança absoluta na sua fala, nas suas relações, no seu prestígio. Não veio ao Sul para "enricar". O dinheiro, gasta-o todo nos seus pequenos prazeres.

Severino acredita na conversa do outro. Ronda, diariamente, os escritórios de empregos, nas docas. Já conhece, pelas informações do companheiro, o gênero de trabalho que vai frequentar. Na impossibilidade de conseguir o almejado emprego, com as economias findas, lança mão do recurso derradeiro: a carta de apresentação do chefe político, obtida por Felício, com o endosso do voto prometido para as futuras eleições.

É o argumento valioso do cabo eleitoral. Num país em que todos os cargos se preenchem segundo o mesmo processo, o critério eleitoral, desde os mais altos, não é de se admirar que, para obtenção de um posto, na estiva, seja necessária a clássica carta de apresentação, sanção de um regime em que a hierarquia social assenta nos mesmos hábitos.

Neste ponto, o livro, que já continha a acusação mais tremenda, que já constituía um verdadeiro libelo, adquire os dons e as notas maravilhosas da ironia, quando narra o complicadíssimo processo burocrático, com o requerimento, a estampilha, o retrato e a carteira policial, por que tem de passar o infortunado candidato a um meio de vida que lhe assegure a alimentação.

O sertanejo costuma dizer, no seu conformismo com os males que o assaltam, que desgraça pouca é bobagem. José Severino pensa assim. Atolado nas dívidas provocadas pelos compromissos que assumiu para conseguir o emprego almejado, sobrecarregado de trabalho, impossibilitado de socorrer a família distante, por não haver sobras no seu dinheiro - resolve casar-se. Com o casamento, vêm os filhos. Com os filhos, novas despesas. Com as despesas, mais trabalho.

São navios e navios que chegam ao porto imenso. Mercadorias de toda sorte para embarcar e desembarcar. Algumas pesadas, outras cujo transporte prejudica a saúde dos mais vigorosos. Sob os sacos, sob as caixas, sob os fardos congelados, o nordestino arrasta a sua existência de pária e de infeliz. A alimentação dos filhos, os cuidados com a esposa, obrigam-no aos serões, aos trabalhos extraordinários, em que a sua saúde se desfaz.

Um dia, chega o momento decisivo, a hora que não se espera: sofre o primeiro baque, fraqueja pela primeira vez. Vai ao médico. Precisa de repouso. Repouso com salário, só lhe dão por algum tempo. Depois, vem o descanso obrigado com sacrifício de meia parte daquilo que ganha. A mulher entra a contribuir com as suas forças.

Mais adiante, os dias de convalescença obrigam ao último dos sacrifícios: perde o direito ao dinheiro que assegura a sua subsistência e a dos seus. Volta ao serviço, contra as indicações do médico. E sofre a queda última, que o inutiliza. Vítima da pior das enfermidades, das que conservam o homem no convívio dos seus semelhantes, para que sinta maior a sua desgraça, vai de fraqueza em fraqueza até à cama do hospital, para permitir a saúde das crianças.

No trecho em que aparecem as cenas da Santa Casa, adivinha-se, no doutor Luciano, a figura de Martins Fontes. Na sua larga bondade, na sua expansividade, no seu ateísmo, na larga dose de compreensão humana, que foi um dos traços principais da luminosa existência do poeta de Verão.

A luta dos trabalhadores do porto contra as máquinas que, com a sua força, dispensam o trabalho braçal, lembra certas páginas, cheias de colorido e de movimento, dos livros de Panait Istrati.

O romance do sr. Ranulpho Prata guarda o interesse contínuo, da primeira à última página. A língua em que foi escrito é simples e correntia. As suas descrições são semelhantes à realidade. O panorama que traçou da existência dos trabalhadores do porto, na sua estreiteza e na sua miséria, guarda as linhas precisas e só se afasta do comum e do cotidiano no episódio da viagem de Felício a Buenos Aires.

Os dotes de romancista, já revelados pelo autor em outros livros, surgem, neste, mais fortes e mais nítidos. O sr. Ranulpho Prata como que se encontra na plenitude da sua força de escritor. O fundo trágico e revoltado da sua obra é amenizado por uma larga dose de sentimento que a anima e lhe infunde mais cor e mais beleza.

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