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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - J. LUSO
João Luso (10)

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Nascido em Lousã, em Portugal, em 12 de junho de 1875, Armando Erse de Figueiredo atuou como jornalista e escritor em Santos e na capital paulista usando, entre outros, o pseudônimo literário de João Luso. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1950, deixando grande número de obras publicadas.

Em maio de 1906, a revista Serões, publicada em Lisboa (Portugal), em seu número 11/páginas 380 a 385, publicou reportagem de João Luso sobre o Carnaval no Rio de Janeiro (acervo Hemeroteca Digital/Lisboa - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 6/6/2014):

Imagem: capa da publicação

O Carnaval no Rio de Janeiro

Temia-me que a catástrofe inolvidável do Aquidaban e outros desastres, menores quanto ao número de vítimas, mas, por tão próximos daquele, de dolorosíssimo efeito no espírito público, estendessem sobre as festas do Carnaval uma sombra e um frio desanimadores.

É que, desde o princípio do ano, assistimos apavorados a uma série de fatalidades, qual delas mais cruel. Mal nos refizemos do angustioso desespero de Jaquecanga, onde as águas pacíficas haviam tragado, com tão bravos e honrados chefes, uma mocidade tão brilhante, começavam a chegar de Campos, cidade do estado do Rio, a dez horas de viagem, as notícias da enchente do Paraíba, rio deleitoso e amado, onde os poetas têm bebido tão suaves inspirações e a cujos murmúrios Carlos Gomes pediu a alma da sua música imortal.

O Paraíba, quebrando, como frágil estacada, todas as suas tradições de doçura e amor, cresceu subitamente, num ímpeto de fera por longo tempo contida, ganhou ondas, cobriu-se duma fervilhação raivosa de espumas e atacou a cidade formosa que no espelho das suas águas se revia, faceira e descuidadamente.

E, com fúrias progressivas na sua arremetida, sepultou os habitantes ribeirinhos, trepou às ruas do comércio, galgou às altas moradas dos ricos, desalojou e pôs em fuga a população inteira, logo a princípio desvairada de pânico, perseguida afinal por todos os flagelos, a miséria, a doença, o frio, a fome...

Depois, aqui mesmo, no Rio, chuvas contínuas e torrenciais causaram estragos enormes, afogaram vidas sobre vidas. Dias houve em que, sob as casas desmoronadas, pereceram vinte e tantas criaturas.

Deram-se acidentes fatais nas estradas de ferro, nas linhas de bonde, nas fábricas; os jornais andavam cheios de mortos; e a mais recente lembrança de tão longa sucessão de desgraças, deixara-a a derrocada do Club de Engenharia, prédio que obedecia a um projeto grandioso e que, por uma sinistra ironia do acaso, fora o único a cair na Avenida já quase inteiramente edificada.

Só a gente ingênua, todavia, receava que o entusiasmo e os esplendores do Carnaval viessem a sofrer com a desconsoladora recordação de todas essas pragas que o ano de 1906 trouxera do berço e ainda sobre os seus dias futuros estendiam novas ameaças e agouros...

Porque, na verdade, o Rio adora o Carnaval com uma paixão suprema, incomparável; é decerto a sua única festa verdadeiramente popular; as outras, religiosas ou profanas, quer abalem as ruas com o estridor das bandas de música regimentais, quer encham de cânticos e incenso o recinto sagrado dos templos, mal o sacodem da sua amodorrada indolência dos grandes dias.

O Rio, quando não trabalha, fica em casa, de chinelos, a preguiçar; em regra - e quantas vezes, por isso, o têm os cronistas invectivado! - não quer saber de festas. Com o Carnaval, porém, é outra coisa; falem-lhe em Carnaval e te-lo-ão disposto a tudo - a encher as ruas do centro da cidade, a gritar e dar vivas até perder a voz ou ir para a cama, a rir como um perdido e a cantar como um herói, a gastar até ao último tostão das suas economias e a contrair dívidas até à última migalha do seu crédito.

Já não lhe sorri o repouso caseiro, já não o paralisa a tão falada indiferença da sua índole, já não quer saber de desgraças nem de preocupação alguma desta vida!

De resto, nem se pode bem explicar se o Carnaval deste ano tinha mesmo que ser dos mais barulhentos e esplendorosos, ou se exatamente porque o povo vinha há dois meses experimentando toda a sorte de amarguras e terrores, assim se atirou, soltando a alma inteira, aos prazeres e desvairamentos permitidos pelo deus Momo, para se atordoar, esquecer, lograr finalmente alguns dias de pura alegria e perfeita felicidade.

O fato é que há muito tempo não se vê - se já alguma vez se viu - a macambúzia capital tão disposta a se divertir e a estroinar; nunca lhe correu nas veias tão clara e crepitante chama de regozijo; nunca, na sua ajuizada gravidade, passou tão violento sopro de loucura.

Logo às primeiras horas da noite de sábado, as máscaras surgiram da Rua do Ouvidor, atirando, ao passar, o clássico Você me conhece? de quem se contenta com esse mistério e esse espírito; bandos entrudescos, com clarins e Zé-pereira, acudiram de todos os pontos, a anunciar à grande artéria que o reinado do rufo e do estrondo fora oficialmente inaugurado; e, quebrando todas as tradições, antecipando-se com delirante sofreguidão, o Club da Tijuca rompeu por ali abaixo com o seu préstito, entremeado de bandas de música, esplêndido de carros de fantasia entre fogos de Bengala - e mantendo orgulhosamente o seu princípio de que, com gente de sociedade e algumas lindas crianças, também se pode fazer uma passeata deslumbrante.

Escusado será dizer a quem leu o meu artigo sobre o moderno Rio e a sua moderna Avenida, que para esta convergiram todas as atenções e toda a animação. Pela primeira vez, a Avenida oferecia o seu vasto campo de luxo civilizado e garrida magnificência às lutas e folganças do Carnaval.

Todos os préstitos ali passariam, todos os cordões ali iriam batucar os seus pandeiros e saracotear as suas danças pitorescas, todos os mascarados ali guinchariam e intrigariam - e todos aqueles que se limitam à função e ao prazer de espectadores ali desejaram um camarote de gala.

Imarginar-se-ão então os fabulosos preços a que subiram as janelas e sacadas, para essas tardes e noites de domingo e terça, promissoras de tal espetáculo e tais fantasmagorias. Duzentos, trezentos, quinhentos mil réis, uma janela ou uma sacada; houve quem alugasse para realugar; quem especulasse, à última hora, com a aflição da gente abonada; quem se sujeitasse a meia janela ou a um quarto de sacada para os dois dias, pelo custo em que lhe fica a casa de moradia, para o mês inteiro.

E os carros? A fabulosa extorsão dos alquiladores? Quem queria figurar montado num razoável alazão ou num tordilho menos anguloso que Rocinante, dá para cá quinhentos mil réis - isto é, o preço pelo qual se compra no interior - na província, diríeis vós - um bicho de igual estampa e, porventura, superiores ações.

Ninguém, apesar de ser a época ferozmente consagrada à estatística, se lembrou ainda de calcular o dinheiro que o Carnaval faz girar nesta bela terra de S. Sebastião; deve andar por muitas centenas, milhares, talvez, de contos de réis.

No domingo gordo, reinaram superiormente os cordões. Instituição, para vós, completamente ignorada, bem sei. O cordão é um agrupamento e uma união para a vida e para a morte de sujeitos que fazem do Carnaval uma ideia à parte, porque não o consideram uma quadra de desenfreada folia, nem de tresloucado júbilo, e, muito menos que tudo isso, de simples e descuidada pagodeira.

Não, para eles significa alguma coisa de sublime, de respeitável, de sagrado; é um culto verdadeiro, uma verdadeira religião. Momo é um deus a sério; e o cordão não obedece a outro princípio senão ao de lhe render o culto mais fervoroso, com a mais convicta das devoções.

Para isso, se ajuntam mensalidades o ano inteiro; se compram tamborins, pandeiros, e aqueles instrumentos compostos duma tábua estriada sobre a qual se esfrega um pau curto e que dão pelo nome deliciosamente pitoresco onomatopaico de xequedês; para isso, se envergam pesadas vestimentas de Rei ou se enfiam maiôs cor de chocolate - com este calor da estação, faça-se ideia - de Guarany, encimando a fronte do altivo e rutilante cocar de penas e empunhando a flecha formidável das guerras e das caçadas; para isso, se compõem cantigas dolentes e nostálgicas na toada, embora a letra não raro seja jocosa e quase sempre disparatada; para isso, finalmente, se sai para a rua de manhã cedo e até à madrugada seguinte, sem descanso nem abatimento no ardor devoto, se tangem os adufes, se canta até enrouquecer e, mesmo depois, se dança repicada e freneticamente, ao longo das ruas, dos bairros, da cidade inteira! Só o fetichismo, na verdade, poderia inspirar tal heroísmo e impor tal sacrifício.

O batismo adotado pelos cordões representa outra especialidade em que todas as imaginações se surpreendem e ante a qual os Incríveis Almadenses só teriam que correr, envergonhados da sua sensaboria. Passo os olhos num jornal e, através da longa coluna que apenas os enumera, encontro estes, para oferecer ao vosso regalado espanto: Destemidos da Infância do Livramento, Filhos da Flor do Propósito, Filhos da Lua da Cidade Nova, Grupo Carnavalesco da Paz de Botafogo, Choro da Alegria, Terror dos Inocentes do Morro do Pinto, Caprichosos da Rainha do Mar - mas isto sem escolher, a seguir, todos assim!

E, já agora, não deixarei de vos dar algumas amostras dos poemas que eles trazem nos lábios e cuja música, heroica ou sentimental, se adapta sempre ao retetum, retetum, tum dos tamborins matraqueados a toda a força daqueles braços que trabalham na Alfândega, nas pedreiras, nos cais, nas oficinas. Um deles, que manda a multidão fender-se respeitosamente à passagem do bando, é clássico e adotam-no todos aqueles que no seu grêmio não contam algum legítimo afilhado de Apolo:

Oh! abre alas

que eu quero passar!

Eu sou da Lira,

Não posso negar.

Essa Lira, claro está, pode também ser Lua, ou Morro, ou Chamas, conforme o letreiro bordado no estandarte e sem nenhum compromisso de métrica ou de rima. A maior parte, porém, abalançam-se a compor os seus hinos, ora exaltando o próprio valor e grandeza e apregoando vitórias certas como este:

No largo de S. Francisco

Quando a corneta tocou,

Era o triunfo Rosa Branca

Pela Rua do Ouvidô.

ora alusivos e irônicos, visando irreverentemente o próprio Chefe do Estado:

O Doutô Rodrigues Alves

só bebe água fria,

depois que caiu

o Club de Engenharia.

líricos e amorudos como o da Papoula do Japão:

Toda a gente pressurosa

procura a flor em botão;

é uma flor recém-nascida

a papoula do Japão

 

Docemente se beijava

         uma rola,

atraída pelo aroma

         da papoula.

celebrizando alheios êxitos, como o dos Filhos do Relâmpago do Novo Mundo:

Sou o Ferramenta,

vim de Portugá;

o meu balão

se chama Nacioná.

e, finalmente, doloridos, associando-se às grandes dores da Pátria:

A 21 de janeiro

o Aquidaban se incendiou;

explodiu o paiol da pólvora,

toda a gente naufragou.

 

Coro

 

Os filhinhos choram

pelos pais queridos,

as viúvas soluçam

pelos seus maridos!.

É tempo, porém, de deixar os cordões, que, em número superior, talvez, a duzentos, constituem uma nota carnavalesca sem dúvida dominante, além de rigorosamente característica - para falar dos Clubes de grande monta, os aguerridos Fenianos, os audazes Democráticos e- que saudades não despertarei aos antigos portugueses do Rio, hoje brasileiros em Portugal! - os famosos Tenentes do Diabo.

O segundo, enfraquecido nos orçamentos pela mudança de prédio e outras reformas, anunciara prudentemente que só sairia à rua, para não deixar passar o Carnaval em branco, mas de modo nenhum entraria em competência com os préstitos dos outros.

De maneira que a luta se travava entre os Fenianos e os Tenentes e só entre eles se dividia a expectativa do público que na terça-feira se aglomerava na Avenida e Rua do Ouvidor, compacta e sufocantemente. Duas horas antes da passagem dos Clubes, já era impossível a qualquer senhor que não dispusesse dos ombros de Hércules atravessar por ali.

E manda a verdade dizer que as opiniões se inclinavam de antemão para os Fenianos, já por se saber que nos seus carros colaboraram o escultor Correia Lima e o pintor Fiuza, ex-alunos da Escola de Belas-Artes, premiados com a viagem à Europa, já porque os Tenentes, nestes últimos anos, tinham sofrido as mais lamentáveis derrotas, parecendo acusar uma decadência progressiva e desesperadora.

Ao anoitecer, apontou ao cabo da Avenida o primeiro préstito, o dos Fenianos, precedido da sua banda de clarins - trinta ou quarenta clarins - e já de longe recebido com aplausos delirantes. Trazia quatorze carros e entre eles alguns de execução verdadeiramente primorosa.

O chá das sextas, alusão às recepções do Ministério da Justiça, era um encanto de linhas e de cores: de enorme xícara japonesa inclinada sobre um pires surgia uma gueixa, fazendo a apologia do chá e dos seus efeitos na política oficial.

Em outro carro, o Poder do Mundo simbolizava-se numa colossal maçã, sustentada por quatro dragões e levando ao alto uma Eva... novo século. A Pátria vinha deliciosa, toda engrinaldada, couraçada de flores, levando a ré uma fanfarra a tocar os mais queridos fados de Portugal. E outros belos carros figuravam ainda no préstito, de fantasia ou de crítica, em que os dois artistas haviam posto a sua imaginação moça e esmerado a sua técnica perfeita.

Mas, quando o primeiro carro dos Tenentes, a Avenida Central, se ostentou em toda a sua beleza, correu pela multidão um oh! de assombro. Era todo movimentado, todo ele girava, numa profusa cintilação de luz elétrica. Tiravam-no oito cavalos, em cujos arreios ardiam outras lâmpadas coloridas; e os cocheiros, sotas e batedores traziam ainda no boné ou no chapéu armado luzes do mais garrido efeito.

Começou logo aí a vitória inesperada dos Tenentes. Depois, a cada carro, rebentavam as palmas e aclamações do povo inteiramente conquistado. É que este clube entregara o seu préstito a um hábil cenógrafo, Marroig, que é também um hábil maquinista. E as suas composições venceram, pela aparência vistosa entre os fogos de Bengala, e o efeito giratório, o que os belos trabalhos de Correia Lima e Fiuza possuíam de correção artística. Paciência; é sempre assim.

Além da Avenida Central, os Tenentes apresentaram um Pombal aparatosíssimo, uma Fantasia de Sèvres de grande merecimento cenográfico, as Estrelas cadentes, verdadeiramente feéricas. E, como isso vos será especialmente grato, aí vos dou o vibrante soneto distribuído pelos tripulantes do carro da Pátria:

Patria, formoso nome, ó Lusitânia altiva!

Toda a glória do mar, a epopeia brilhante

Dos Gama e dos Cabral ressurge neste instante,

E é cada vez maior e cada vez mais viva!

 

A grande raça antiga, a gente primitiva,

Cujo heroico valor e gênio fulgurante

Passeou desde a Guiné a Cipango distante,

Ainda hoje é o mesmo sol que os outros sóis cativa!

 

Brasil e Portugal! E tu'língua formosa,

De Bocage e Camões, dá-me os teus sons divinos

Para que eleve e cante os sentimentos sãos!

 

Canhoneira gentil da maruja amorosa,

Vê como um pai e um filho, entre aplausos e hinos,

Se transformam na História em perfeitos irmãos.

Conclusão, que já bem longo o meu artigo: Carnaval extraordinariamente animado, imenso regozijo, préstitos de primeira ordem - e à última hora, pelas nove da noite de terça-feira, uma chuvarada diluviana. por falar nisto, não deixarei de vos mandar ainda uma nota da minha carteira de repórter:

Defronte da casa onde eu estava, na Avenida, parou de repente um automóvel com a máquina desarranjada. O sujeito que o alugara bracejava, sob a bátega formidável, rodeado da família igualmente desesperada. Nisto aproxima-se um landau, por incrível felicidade, vazio. O homem o chama, atira esta pergunta ansiosa:

- Pode me levar ao Catete?

- Às ordens! responde o cocheiro.

- Quanto?

Tratava-se duma curta corrida, um quarto de hora de bom trote, no máximo.

- Quatrocentos mil réis.

O homem bracejou ainda um momento - e tomou o landau.

João Luso.

* A estas fotografias, tiradas nos telheiros onde os trabalhos foram executados e não na rua, pois que os préstitos saíram já noite fechada, falta o adorno principal dos carros: as formosas hetairas que, apesar dos escandalizados protestos do sr. Arthur Azevedo e outros cronistas da imprensa diária, nem os clubes, nem o público, dispensam.

Imagens: páginas da revista Serão com a matéria de João Luso

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