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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - J. LUSO
João Luso (6)

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Nascido em Lousã, em Portugal, em 12 de junho de 1875, Armando Erse de Figueiredo atuou como jornalista e escritor em Santos e na capital paulista usando, entre outros, o pseudônimo literário de João Luso. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1950, deixando grande número de obras publicadas. Um de seus textos foi publicado no número 11/ano 1 da publicação paulistana A Novella Semanal, de 9 de julho de 1921, páginas 3 a 5. Note-se que a capa da publicação se refere ao texto. (ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 5/6/2014):

Imagem: capa da publicação

A Ressalva

(A D. Francisca Júlia da Silva)

Ele na rua, ela no balcão, os namorados conversavam no silêncio da noite, sob um céu crivado de estrelas.

- Também, diz a moça, ruins pecados hemos de nós ter pra tal castigo… Eu sei! Pois Nossa Senhora não se porá de nossa banda?

- Enfim… Mas qual! Olha, Joaquina, eu estou a ver o número, a vê-lo como se já o tivesse nas mãos; além do 6 não vou. Enfim, Deus sobre tudo; mas esta maldita coisa que se meteu na cabeça…

- Ah, agora, pra longe seme
[lha]ntes agouros.

Calaram-se pensando no dia seguinte. Apurado pelos médicos como um valente soldado, o Maia partiria de manhã cedo para Coimbra, a tirar as sortes e num bocadinho de papel, saído duma urna, estaria a grande ventura ou a grande desgraça – voltar à terra, continuar vivendo nas doçuras daquele amor puríssimo e leal, ou ficar por lá um rebanho de anos, de fardeta e arma às costas, a servir o rei, curtindo a amargura duma saudade imensa. E no espírito da rapariga já se estendia, minuciosa e nítida em seus detalhes, toda a dolorosa estrada a percorrer, se a fortuna lhe fosse avessa; lembrava-lhe já o transe despedaçador do último adeus, mais tarde a falta de notícias de que outras se queixavam; a tortura da dúvida; a notícia duma doença no hospital; e já o coração se lhe apertava à lembrança de ver o João afastado da sua beira, talvez para nunca mais, esquecido ou morto no decorrer dos anos, que se arrastariam vagarosos, vagarosos até parecerem eternos. Um só raio de luz brilhava no seu triste cismar. Não estaria Nossa Senhora da banda deles naquela aflição?

- Olha, ó 'quele.

O Maia, abismado também a matutar no futuro, esburacava a terra com o ferrão do varapau. Ergueu a cabeça.

- Ahn.

- Não é possível que tu vás p'ra soldado. Não vais!

- Hom'essa! Tu lá adivinhas, doida?

- Parece que tenho aqui o dedo mendinho a dizer-mo…

Apesar dos pesares, ele riu.

- Tinha qu ver! Eu dava cabo de mim! Posso lá crer em semente desgraça? E bonito seria ver essas lambisgóias a rirem-se de mim, a chamarem-me "viuvinha" conforme uma já se atreveu… Ai, por pouco a não esgano! Eu bem as ouço, cá me chegam aos ouvidos certos ditinhos, tratam-me de presunçosa, de soberba. Que era muito bem feito tu tirares mau número, pra eu abater a proa… Mas há de o Senhor ser servido que lhe quebraremos os olhos.

A Joaquina começava a dar largas ao forte gênio que lhe valia os remoque das companheiras; quase esquecia o seu amor pelos seus ódios…

Certamente iria mais longe a apóstrofe, mas a voz do pai fez-se ouvir dentro de casa, chamando-a:

- Então, Cachopa, isto vão sendo horas de acabar o paleio; façam lá as despedidas de uma vez!

- Bem, disse o Maia, adeus. Se lá eu ficar, até…

- Olha, João, eu vou pedir ao meu pai pra ir à cidade contigo.

- Mas assim ainda te é mais custoso…

- Qual, também eu sei mais depressa a notícia. Até amanhã, sim? Vou rezar. O que Deus quiser, mas pra soldado não vais.

Deram-se as boas noites; ela atirou uma flor do alegrete, que foi cair nas mãos do Maia; ele em paga atirou-lhe um beijo, afastou-se. A cachopa entrou em casa.

No corredor ia pensando no meio, num meio por extraordinário e difícil que fosse, para livrar o seu conversado das correias militares.

Relampejou-lhe no cérebro uma ideia rápida e viva como a língua dum relâmpago penetrando numa toca. Ó Mãe do Céu, e se… Correu ao quarto do pai, já deitado àquela hora.

- Senhor pai, dá licença?

- Entra.

- Eu queria pedir-lhe uma coisa…

- Venha de lá.

- Que me deixasse ir amanhã à cidade.

- Adeus minhas encomendas! Pois que vais tu lá fazer, cachopa? Se o rapaz tiver sorte, muito bem, que volta; se não tiver…

- Ainda queria outra coisa.

- Mais alguma das tuas. Dize.

- O João não pode ir p'ra soldado.

O velho embasbacou.

- Hein, não pode? Pois se os médicos disseram que sim…

- Mas eu não quero!

- Hom'essa cá me fica! Pois tu não queres. Hás de lhe ir agarrar c'um trapo quente!

- Não senhor, mas…

E, debruçando-se sobre o rosto do velho, tomou-lho nas mãos, falou-lhe ao ouvido, entre dois beijos.

- Ó filha, que isso já é loucura! Não, senhora, não consinto.

- Mas eu não posso ver o João ir-se embora. Não sei: eu sou capaz de me botar ao rio, eu endoideço, morro!

- Temos o caldo entornado, resmungou ele. E vendo-a chorar de rijo: - O caldo entornado, e música p'ra toda a noite! Olha, Joaquina, o rapaz não vai p'ra forca. São três anos, passam depressa; depois ele volta, há de haver foguetes, um pagode; e então casais. E ainda pode ser que ele tire número alto…

- Mas se não tirar? Deixa-me fazer aquilo que eu pedi, deixa?

- Pensa no que estás a pedir, cachopa de não sei que diga, e terás a resposta que te posso dar! E p'ra mais, isto são horas e mais que horas; vai-te deitar, anda; vai com Nossa Senhora e deixa-me em sossego.

Ajoelhou-se a moça à beira da cama, tomou-lhe as mãos, cobriu-as de lágrimas. O coração do velho amolecia aos poucos; em boa verdade, à vista de tal espalhafato; nem mais sabia de que maneira negar.

- Deixa-me, cachopa, que me fazes doido!

E pensava entre si: Isto que é bonito; se me dá outro beijo, não tenho remédio senão…

Mas nem o pensamento acabou, que já um chuveiro de beijos lhe acariciava as barbas brancas.

- Senhor pai, senhor pai…

Cedeu; cedeu como um tirano fracalhão, como um juiz que dá mais ouvidos à alma do que à consciência; cedeu como um pai…

- Está bem, rapariga, está bem, disse, fingindo má vontade. Quebra lá a cabeça a teu gosto, asneia bastante. Depois se te arrependeres…

- Não senhor, não me hei de arrepender. A sua bênção; nós vamos cedo num rancho.

E a Joaquina saía do quarto, já alegre. Ai, agora estava descansada. Se o Maia tirasse mau número…

A Joaquina acordou no outro dia, ao primeiro cantar dos galos; ergueu-se, fez as suas orações, abriu de par em par a janela. Nos campos e azinhagas a vida acordava também; já um carro de bois chiava ao longe o seu ramerrão monótono e rangido, e já a cantiga d'algum almocreve madrugador subia ao ar de mistura aos sons das campainhas da récua; a manhã era fresca, tocada a tons primaveris; os olhos adelgaçados oscilavam sob o afago do nordeste, e a passarada ia às folhas cheias de orvalho tomar regaladamente o seu café do almoço.

A Joaquina, aperaltando-se como para uma festa, penteou devagar os cabelos fortes, cruzou no peito o mais belo lenço, grande, com florões vermelhos no fundo cor de ganga, enfiou sobre as outras a saia de lã com barra azul; e, para que nada faltasse, foi buscar ao fundo da arca o cordão d'ouro maciço – uma fortuna! – pô-lo ao pescoço em quatro dobras folgadas, encostando o medalhão que tinha uma Nossa Senhora esculpida, a prumo sobre o seio alto.

- Joaquina?

Era o namorado na rua, a chamá-la.

- Hein, lá vou.

E já entre a porta do quarto, não podendo conter-se, voltou de novo ao pé da cama, para se mirar no espelho.

Gostou de si e teve um sorrisinho de presunção – a tal que as vizinhas notavam; deu ainda um jeito ao vestuário; pôs um pouquito mais à banda o chapelico de veludo, guiou para traz da orelha duas madeixas de cabelo teimosas, que faziam empenho em tapar-lhe o rosto. Galgou a escada, foi dar a mão ao conversado.

- Ih, como tu vens…

- Como?

- Bonita!

Caminharam a par. No largo havia outras moças, outros rapazes que marchavam para a cidade a tirar o número.

Irmãs, namoradas, rara a que disfarçava o temor dum azo infeliz, que "dele" privasse. Houve cumprimentos, festas à nova companheira, por quem ninguém esperava, e o rancho abalou finalmente, já dividido em pequenos grupos, já todo um, ora silencioso, ora gargalhando e palrando.

- A Joaquina parece que se vai casar de alegre que tem a cara, observou uma – Não que até dá gosto a gente olhar p'ra ela.

- Ai vida, não que tristezas são securas! Respondeu alegremente a moça. E lá para si: - Bem te conheço, meu pau de laranjeira…

- Pois olhem, eu, disse o Maia, levo o coração do tamanho dum grão de milho.

- Vale bem a pena!

E foi tal o desprendimento da Joaquina isto dizendo, que ele ficou de pé atrás, intrigado.

- Então não é coisa de grande monta se eu for p'ra soldado?

- Ora, tudo tem remédio; tudo tem remédio, só à morte não.

E como visse a companhia murcha, caminhando em silêncio:

- Ó cachopas!, gritou. – Isto assim mais parece um enterro do que outra coisa. Vá lá uma cantiga p'ra animar.

Ele mesmo começou; quase todos cantaram; o Maia, calado, ia parafusando no 6.

Chegaram a Coimbra. A rapaziada, à vista do Civil, esmoreceu como um rebanho de bois, à vista do açougue. Bateram as dez horas, entrou tudo. O João quis que a namorada ficasse fora, poupando-a de um espetáculo que iria talvez magoá-la.

- Nada, eu vou também. Escuta, quando meteres a mão na urna olha p'ra mim. Talvez te dê sorte…

Em breve um contínuo fez a chamada; os rapazes iam respondendo – pronto! presente! – e por uma porta do fundo entravam autoridades, oficiais do exército, os regedores de cada freguesia. Procedeu-se ao sorteio.

Os três primeiros foram felizes; a cada número que um major gritava, havia cá fora reboliço, muitos parabéns.

- João da Maia!

O rapaz, muito pálido, adiantou-se; ao passar pela Joaquina, murmurou: - É o 6, aquele raio do 6, como quem o está vendo! – Passou as grades, foi enfiar a mão trêmula no interior da urna. E trouxe dois papelicos entre os dedos.

- Só um! Berrou-lhe o major.

E João, mais atarantado, mergulhou de novo a mão na urna; arquejava, parecia sufocar; finalmente, caçou no canto uma sorte mais bem embrulhada e deu-a ao major, voltando a cara.

- 6!

O raio de 6! Bem lhe dizia o coração agoureiro; era aquele maldito, aquele excomungado número, que se lhe não tirava da cabeça há três dias.

Saltaram as lágrimas dos olhos da Joaquina, tão fortes que lhe foram regando as faces. Enxugou-as depressa. Dirigiu-se logo ao contínuo, querendo saber, se a pergunta não era atrevida, em quanto poderia andar uma ressalva. O homem riu, indicou-lhe a administração.

Momentos depois, a Joaquina, sem esperar o namorado, ganhava a rua, pediu a uma rapariga que a acompanhasse, levaram sumiço as duas. O Maia procurou-a por todos os recantos do Civil. Que é da Joaquina? Viram-na? Deram fé? Nada.

Quase meia hora depois é que a viu voltar muito apressada, inquieta, numa agitação em que havia a febre temerosa de chegar tarde, como quem vai ao encalço duma ventura que foge.

- Que é isso, ó 'quela?

- Espera aí, disse, quase sem lhe dar atenção. – Espera um instantinho.

E subiu as escadas do Civil; outras raparigas curiosas seguiram-na, entraram atrás dela na administração; e ali, pedindo a ressalva de João da Maia, a Joaquina fez cantar um punhado de libras sobre a mesa do administrador, batendo-as uma atrás da outra, até a última. Depois, olhando as mãos:

- Nossa Senhora, se custa um pouco mais aro, estava perdida!

Um amanuense começou com indiferente pachorra a encher de rabiscos a página dum talão. Palpitante, a moça esperava, seguindo com o olhar as viagens do papelucho, que ia de mão em mão, para este assinar, para aquel'outro fazer o assento nos livros. Parecia-lhe que tais formalidades não tinham fim; a todo o passo estendia as mãos suplicantes.

- Tenha paciência, criatura, gritavam-lhe.

Quando lhe entregaram a folha assinada, carimbada, coberta de garatujas, a Joaquina apertou-a ao peito, como receosa de que outras (as tais que a tratavam de presunçosa) lh'a arrebatassem.

Com que estouvada alegria ela atravessou os corredores do Civil! Tropeçando, cá e lá, com um grito a voar-lhe do peito, assim foi cair nos braços do seu João. Apertou-o muito, muito, num longo amplexo amoroso, a chorar e a rir.

- Ó Joaquina, mas que é isto! Eu cá de mim…

- Toma a tua ressalva! (E metia-lhe nas mãos o papelucho). Toma-a. Tu não vais p'ra soldado. Não. Eu o que dizia, hein?

O rapaz desvencilhou-se-lhe dos braços, recuou, pôs-se a fitá-la. E teve um brado ao notar-lhe o pescoço nu…

- Ó doida, e o teu cordão, a tua Nossa Senhora d'ouro?

- Vai lá agora atrás do cordão à Rua dos Ourives…

- Pois tu vendeste…

- Qual vender, troquei-o por ti!

O João, apalermado, benzia-se com as mãos ambas, mas ela segredou-lhe ao ouvido.

- Bem te jurei que havia de quebrar os olhos a estas seresmas.

Olhou o Civil, grande e branco, com os seus nichos onde os santos encafuados liam em grossos livros ou empunhavam evangelicamente enormes palmas recurvas. Às portas, mulheres choravam.

- Fica lá com quantos quiseres, cão danado. O meu amor cá o levo! Exclamou a Joaquina. Toca p'r'á aldeia.

E já fora da cidade, como os pássaros cantassem muito nos ramos que o sol dourava!

- Ó João, olha os melros tocando à forma! Ande lá p'rá frente, seu militar!
 

JOÃO LUSO.

Imagem: detalhe da página 3 com o sumário e início do texto

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