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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.PRADO
Almeida Prado (2)

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Entrevista publicada em 2007 no portal cultural Cronopios (acesso: 18/1/2014):

Imagem: captura parcial de tela do portal Cronopios, em 18/1/2014

 

17/06/2007 21:56:00

Almeida Prado — música acima das referências

Por Ana Lúcia Vasconcelos [*]

Pianista, compositor de música erudita contemporânea, José Antonio de Almeida Prado, 63, é doutor em Música pela Unicamp, onde lecionou até o ano de 2000. Titular da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Música e membro da Foundation Nadia e Lili Boulanger, na França, ganhou entre outros o prêmio Carlos Gomes pelo conjunto de sua obra – que soma mais de quatrocentas composições.

Na música ele começou cedo: aos nove compôs sua primeira peça, tendo sido aluno de Dinorah de Carvalho, Camargo Guarnieri e Osvaldo Lacerda no Brasil. Viajou para Santiago de Compostela aos 24 anos e aos 26 foi para Paris, onde estudou com os grandes compositores e professores de música erudita contemporânea: Messiaen e Nadia Boulanger durante cinco anos.

De volta ao Brasil, dirigiu o Conservatório de Musica de Cubatão, sendo que em 1974 foi convidado a lecionar na Unicamp - Universidade de Campinas, onde foi professor de composição até 2000. "Imagine você sair de Paris para dar aulas em uma escola que ficava em cima de um supermercado, numa das cidades mais poluídas do mundo. É como se formar na universidade e então ser diretor de uma tribo em Angola! Se você não tem formação de missionário, você entra em crise. Porque tudo o que você aprendeu não representa nada. Foi inútil! Mas, nessa decepção, eu promovi uma reforma no conservatório. Convenci o prefeito a construir um prédio, implantei métodos didáticos e preparei as professoras. Após um ano, deixei Cubatão, com um sentimento maravilhoso de missão cumprida, e fui convidado para a Unicamp."

A esta altura, segundo conta, começou a desenvolver uma técnica em que tentava misturar elementos tonais, seriais e o que chamou de transtonal que é, segundo diz, "a utilização consciente dos harmônicos superiores e inferiores de uma fundamental, mesmo que artificialmente, já que os harmônicos inferiores são muito contestáveis". Na sequência recebeu uma encomenda da prefeitura de São Paulo para compor a trilha sonora do Planetário do Ibirapuera. "Comprei, então, um livro chamado Atlas Celeste, de Ronaldo Mourão, que ilustra o céu do Brasil e suas constelações em todos os meses do ano. Criei um acorde para cada estrela e fiz os acordes se seguirem como indica a linha imaginária que une as estrelas de uma constelação naquele livro."

"Em Cartas Celestes, usei pela primeira vez o transtonalismo em 1981, retomei estes acordes e compus mais cinco Cartas Celestes. Ao longo deste trabalho, fui me cansando daquele material sempre atonal e, aos poucos, fui introduzindo elementos tonais nas peças. Ao final delas, eu já me dava liberdade de encaixar um minueto à forma, pois eu já estava muito seguro e muito amadurecido neste processo. Essas peças foram gravadas, venderam muito bem e eu fiz meu doutorado sobre elas. As Cartas Celestes acabaram por se tornar um marco na música do Brasil. Até Messiaen e Boulanger diziam que era uma coisa nova. E elas estavam em sintonia com o espectralismo, de Murail e Grisey, embora eu não conhecesse o que eles faziam e nem eles o que eu fazia."

"Ai então eu me tornei um compositor rotulado de transtonal quando isso não me interessava mais. E já na última das seis Cartas Celestes, comecei a compor num estilo que eu classifico como pós-moderno, por ter como característica revisitar texturas e mecanismos do repertório do passado, tomando elementos dele e adaptando à minha linguagem, ou ainda fazendo colagem mesmo. Eu queria sair daquela atmosfera cósmica e mística. Eu queria estar com os pés no chão."

Sua obra vasta publicada pela Tonos Verlag de Darmstadt (Alemanha), percorre uma variedade de formas musicais, dos estudos as sinfonias passando pelos oratórios e missas, sonatas, mas sempre dando preferência a obras para piano e percussão.

Entre as mais de quatrocentas composições, algumas merecem citação especial: Pequenos Funerais Cantantes, composta a partir de um poema da Hilda Hilst, Cartas Celestes, que hoje conta com 14 volumes e é considerada uma de suas obras mais importantes, ao lado de centenas de outras, entre elas: Lettres de Jerusalém - considerada pelo critico Claver Filho "uma das mais impressionantes da musica brasileira do século XX", Missa da Paz, Villegagnon ou Les Îles Fortunèes, Momentos de Cubatão, Rosário de Medjugorje, As 14 Palavras de Cristo na Cruz, Amavisse, também sobre poemas de Hilda Hilst, entre centenas de outras.

Duas de suas composições: Sinfonia dos Orixás - composta para comemorar os dez anos da Orquestra Sinfônica de Campinas e Missa de São Nicolau tiveram estreia na Suíça. Sinfonia dos Orixás estreou em outubro de 1987 no Grande Theâtre de Genebra e Missa de São Nicolau foi apresentada na Igreja Villars-sur-Glâne e na Catedral e São Nicolau em Fribourg. Esta obra, dedicada ao Coro da Matriz de Villars e ao seu diretor George Rubaty, foi inspirada, segundo o compositor "num sentimento romântico e descritivo de emoção religiosa".

O critico do jornal La Liberté, Bernard Sansonnens, considerou esta missa uma obra prima que ficará nos anais da história do condado e da música. "Isso porque, podem-se contar nos dedos das mãos a criação de missas para coro, orquestra e solistas na produção musical do século XX." Almeida Prado considera esta sua melhor obra, a mais densa, a mais longa que escreveu e que depois da sua morte, será o seu testamento. "Ela acumula todas as minhas experiências anteriores de composição."

A obra sendo estudada

A esta altura, muitos musicistas têm se debruçado sobre sua obra para estudá-la (até agora são vinte e sete teses de mestrado e doutorado) entre outros, a pianista Adriana Lopes que escolheu para seu mestrado os 16 Poesilúdios, inédita tanto nos palcos quanto em gravações e que ela interpretou em estreia mundial quando defendeu sua tese de mestrado na Unicamp no dia 10 novembro de 2002.

Adriana conta que quando foi pesquisar a obra do compositor, cujas partituras estão sendo catalogadas no Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC) do Instituto de Artes, observou que a obra de Almeida Prado era comumente dividida em sete fases. "A obra de Beethoven é dividida em três fases. Achei sete um exagero, mesmo considerando a diversificação do século XX", diz Adriana Lopes.

Daí que ela optou por dividi-la em três fases, acrescentando uma quarta a pedido do próprio Almeida Prado: a primeira corresponde ao estudo do folclore com Camargo Guarnieri, sob a estética de Mário de Andrade, resgatando a brasilidade com temas na sua maioria nordestinos. A segunda fase surge quando se senta com Gilberto Mendes para ouvir Schoenberg, Stockhausen, Messiaen, Stravinsky, e parte para a França a fim de descobrir algo que não conhecia além-mar.

E a terceira e quarta fases, já de volta ao Brasil, têm várias tendências que correm paralelas: a astrológica, ecológica, brasileira, mística e livre. Na quarta, que se chamou de pós-moderna, acontece uma autorreleitura e uma mesclagem das diversas tendências dentro de uma mesma obra, que se inicia com os Poesilúdios.

Para que pudesse conceber uma interpretação embasada dos Poesilúdios, Adriana afirma que contou com o apoio do pianista Maurícy Martin, atual coordenador do Departamento de Música do Instituto de Arte da Unicamp e com a orientação da professora Maria Lúcia Pascoal, que participou "de todos os passos do trabalho".

O CD que acompanhou a dissertação de mestrado da pianista foi gravado na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, sendo que a verba da Fapesp permitiu a produção de 40 cópias. Adriana pretende ainda um possível lançamento comercial do CD, que pode trazer um livreto contendo análises de cada peça. E para que seu trabalho não fique numa prateleira e ninguém o veja, a pianista vem interpretando e analisando as peças para professores de piano e alunos em várias cidades.

Esta divulgação também contribuiu para a lembrança dos 60 anos do compositor Almeida Prado, completados em 2003 (ele nasceu em 8 de fevereiro de 1943) e comemorado no dia 5 de outubro, com um concerto da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, no Teatro Sérgio Cardoso (região central de São Paulo), com a estreia do Concerto para Oboé e Orquestra de Cordas, com solo de Alexandre Ficarelli e regência do maestro Wagner Polistchuk, titular da Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina.

Entre suas obras mais recentes ele cita: Variações Sinfônicas para orquestra, composta oficialmente para o Festival de Campos do Jordão em novembro de 2005; Hiléia, Um Mural da Amazônia que deve estrear no próximo ano nos Estados Unidos e vai marcar o lançamento de uma nova campanha internacional pela preservação da Amazônia, sendo que a renda do concerto será destinada a instituições ligadas a programas ecológicos na região. E atualmente ele prepara, a convite do governo do Rio de Janeiro, uma obra para piano e orquestra para comemorar o bicentenário daquela cidade e a chegada de Dom João VI e que deve estrear em 2008. Será baseada em algumas gravuras de Debret e terá o título: Gravuras Sonoras.

Ao longo de sua carreira, Almeida Prado teve várias de suas obras executadas por importantes nomes da música brasileira, como Eleazar de Carvalho, Camargo Guarnieri e, mais recentemente, John Neschling (à frente da Osesp) e Antônio Menezes, que estreou sua Sonata para Cello e Piano. Obteve ainda alguns dos mais importantes prêmios no Brasil e no exterior: Prêmio APCA de Melhor Obra de 1967 com Paixão Segundo São Marcos, peça para coro, órgão e piano e cravo e atores; Prêmio Lili Boulanger com Sinfonia nº. 1, Prêmio Fontainaibleau do Primeiro Concurso de Minas Gerais do Coral Ars Nova com a cantata sacra Jesus de Nazaré.

Além desta atuação e da criação de novas obras Almeida Prado dedica-se a cursos em diversos centros culturais de São Paulo, onde mora atualmente, não apenas para músicos como para apreciadores de música em geral. Seu último curso foi sobre a obra de Johannes Brahms nos seus múltiplos aspectos divididos em dez encontros na Casa do Saber, que começou no dia 28 de março e terminou em 30 de maio de 2007. Ali ele interpretou e analisou diversas obras de Brahms – os dois concertos para piano, o concerto para violino, as sinfonias, as músicas de câmara, as canções e outras obras para piano. E, além disso, faz um programa de grande sucesso na FM Cultura, o Caleidoscópio.

Nesta entrevista, publicada com cortes na revista Artes (SP) de novembro/dezembro de 1988 e janeiro de 1989, Almeida Prado fala da sua infância, seus professores, sua vocação, seu processo criativo, sua religiosidade, suas influências. Para atualizá-la falei com ele ao telefone e decidimos publicá-la como está - já que é um documento importante de determinada fase de sua vida. Há disponível, para quem quiser saber mais sobre sua vida e fértil e inovadora obra, muitas outras matérias aqui na internet.

ALV. - Tive a impressão, lendo o seu Memorial-resumo de sua obra e vida até o ano de 1989 elaborado para sua livre docência, que você teve uma infância feliz. Você foi uma criança feliz?
Almeida Prado - Era feliz e não era, porque eu era o ultimo filho, eu nasci meu irmão mais velho tinha 18 anos, e minha irmã mais próxima tinha cinco anos mais que eu. Meu irmão que nasceu depois de mim, morreu então eu fiquei o último super mimado e super carente. Porque parece que há uma alquimia quando você é muito minado fica também carente porque não tem proporção. Eu só vim a perceber isso agora com a psicanálise que o fato de me mimarem muito as proporções eram desengonçadas. Então não tinha aquele carinho justo na hora certa: não era nada ou era demais. Então ficam aqueles buracos.

ALV - E depois você estudava...
AP - A musica era tudo para mim...

ALV - E o Almeida Prado, o sobrenome ajuda ou atrapalha?
AP - É aristocracia rural, família de quatrocentos anos como eles falam. Ajuda para a vaidade de você chegar num banco e assinar um cheque e as pessoas perguntarem: ah você é Almeida Prado, parente de fulano, mil fazendas e você diz: não, não tenho, sou dos pobres...

ALV - O que, aliás, ninguém acredita...
AP - Ninguém acredita. Mas é bom para empréstimos porque você é riquíssimo... (risos)

ALV - Sei que você começou a ouvir música erudita muito cedo. Sua irmã estudando piano, Mozart, Beethoven. Você diria que foi ai que começou a despontar a vocação para o piano, as composições etc.?
AP - Eu acho que o dom a gente recebe de Deus e só cresce se você rega. Não adianta você ter um dom de físico, de químico ou de bailarino se desde criança não te colocam numa escola, não fazem florescer este dom. Tenho a impressão que quando Deus escolhe alguém para uma missão ele já coloca os pais certos, a cidade, latitude, a longitude, o clima, tudo já concorre para que aquela pessoa dê naquilo.

ALV - Você começou com quantos anos? Tenho a informação que aos nove compôs Adeus...
AP - Com menos, com sete. Então eu tinha que ter uma irmã que tocava como uma louca para eu ficar ouvindo.

ALV - Como você sentiu que era um compositor? Começou a estudar piano com quantos anos?
AP - Senti que era um compositor porque para mim quando eu ia estudar a musica alheia queria mudar o texto, queria brincar. Aí as pessoas não deixavam, diziam que eu estava brincando com o Beethoven. Então como eu não podia brincar com o Beethoven eu começava a brincar fora do Beethoven. Então eu lia uma história de criança sobre o Saci, João e Maria, etc. Eu ia para o piano e fazia a história na música.

ALV - Então surgiram suas primeiras composições: Adeus, Os duendes na floresta, Dança Espanhola, Procissão do Senhor Morto, O Saci, O gato no telhado. Se hoje você analisar essas musicas com o olhar critico de um professor, como as definiria? Elas apresentam alguma novidade?
AP - Elas não apresentam novidades porque são reminiscências de Villa Lobos ou do que eu ouvia. Mas se chegasse uma criança com essas músicas eu diria: este cara é um gênio (risadas). Bem você vê que eu não tenho modéstia...mas duas delas estão publicadas agora na Alemanha num álbum que eu fiz para minhas filhas: O Saci e O gato no telhado.

ALV - Você começou a fazer sucesso muito cedo. Ao lado das obras do Bach, Mozart nos concertos que dava em Santos, você tocava suas próprias composições. Como fica na cabeça de uma criança o sucesso?
AP - Eu adorava o sucesso, porque era o único momento em que eu era aceito, porque eu era uma criança magrinha, feinha, e não podia rivalizar com os colegas que eram jogadores de futebol, eram atletas, másculos. E para mim a masculinidade sempre foi outra coisa - a retidão, a integridade. Eu já estava todo mergulhado em Deus e me lembro que tinha sete anos e queria ser santo. Não sabia o que era isso, mas ficava quieto e queria pensar em Deus. Aí eu ia para debaixo de uma árvore e ficava alguns minutos ou mesmo meia hora tentando rezar completamente vazio, quer dizer que fazia a oração mais zen sem saber o que era... Ou seja, meu discurso não tinha nada a ver com o dos meus colegas. E eu não tinha culpa de ser assim como eles não tinham obrigação de me aceitar: um animal raro no zoológico deles. Então caçoavam me humilhavam e a única revanche que eu tinha era minha genialidade. E na hora em que eu ia aos nove anos tocar na televisão nenhum deles ia e a professora dizia: ah José Antonio vi você e tal e todos ficavam com inveja... Era a única hora em que eu tinha um pouco o troco... Enfim eu não tinha o clichê necessário para viver naquela tribo.

ALV – E sua família como reagia? Porque eram pessoas de cultura, havia musicistas.
AP - Sim eles aceitavam porque me ouviam tocar e sabiam que eu era uma pessoa rara.Mas de qualquer forma eles queriam que eu levasse uma vida segundo os clichês deles e eu era obrigado a passar por humilhações e provações. E assim fui ido até a adolescência.

ALV - E esta questão da religiosidade. Parece que sempre foi inerente. Não tem nada a ver com influencias da família ou tem?
AP – Também, porque eu tenho uma irmã freira que me marcou muito. Enfim ter uma irmã que entrou para o convento, aquela coisa austera, nunca mais vê-la em casa. Eu achava bonito.

ALV - E como ficaram as figuras dos maestros Camargo Guarnieri, Tabarin, Caldeira Filho e evidentemente Dinorah de Carvalho, os professores com que você estudou até os 23 anos?
AP - Bom eles eram os melhores da época. Mas quem me pegou desde criança foi a Dinorah de Carvalho a quem devo tudo e foi uma mãe para mim. Ao mesmo tempo em que foi boa, ela tinha a síndrome da não maternidade e tratava as crianças que estudavam lá como seus filhos. Então era uma fábrica de crianças-prodígio. Todos tocavam com orquestra aos oito, nove anos.

ALV - Você se lembra de algumas dessas crianças?
AP – Ah. Flávio Varani, grande pianista que mora nos Estados Unidos e Maria Regina Luponi, professores da Academia de Viena. Ela dava para o aluno a Dinorah, a síndrome de Peter Pan, quer dizer não se podia ficar adulto para não perder a magia. E isso, este lado maléfico que era inconsciente foi muito prejudicial acho que para todos que estudaram lá.

ALV - Como foi sua primeira experiência no exterior: o curso de música em Santiago de Compostela na Espanha que você fez aos 24 anos? Conte as sequências disso, as repercussões na sua carreira.
AP - Foi muito interessante porque eu vi que sabia mais do que imaginava e muito menos também. Por exemplo, eu tinha coisas da minha formação de compositor muito mais avançadas que os colegas americanos e tinha falhas enormes também que é essa coisa cultural brasileira e que me faziam ver que eu ainda não estava no ponto. E esta desigualdade eu só vim a sanar dois anos depois com a Nadia Boulanger e o Messiaen.

ALV - Você diria que sua vivência-aprendizado com Gilberto Mendes com quem analisou Schoenberg, Berg, Webern. Stockhausen, Boulez, Messiaen, Villa Lobos, Stravinsky foram decisivos para sua opção pela musica serial ou isso já era anterior?
AP – Bem, Guarnieri foi meu professor cinco anos e ele me deu o artesanato sonoro nacionalista de acordo com a ótica pós Mario de Andrade. Mas ele era totalmente avesso a qualquer caminho dodecafônico, serial, atonal. Ele era conta. Agora, aos vinte anos eu tinha necessidade de conhecer o outro lado e não compor uma musica de 1890.

ALV - Você já tinha vontade de partir para o atonalismo?
AP - Pelo menos saber o que era... Quer dizer não é dogma de fé. Tudo é som. Aí me irritava que eu tivesse que fazer o discurso caipira na minha musica quando eu era um homem urbano. Eu era um homem sofisticado, já, gostava de Hilda Hilst, gostava de ler Valéry, gostava de ler São João da Cruz e de repente tinha que fazer nhém nhém, nhém ...(imita toada caipira) quer dizer em nome do quê? (risadas) eu não nasci em Jaú, no Cariri, nunca plantei feijão, um homem altamente sofisticado, urbano de família esnobe... Sou um homem litorâneo de Santos, que ouvia Elvis Presley, rock, não ouvia viola ao luar (gargalhadas). Lógico que eu tinha colegas que nasceram no sertão e vivenciaram tudo isso.

ALV – Evidente, não fazia parte do seu mundo.
AP - Então eu conheci o Gilberto Mendes, um homem urbano com cabeça aberta e indiretamente foi ele meu professor, porque ele não sendo, foi me dando subsídios. Ele dava livros que eu lia, ouvíamos discos, discutíamos e era um aprendizado. Eu devo isso a ele.

ALV - Ou seja, Guarnieri te deu a base acadêmica, ensinou a desenhar...
AP - O Guarnieri me ensinou a desenhar aquele homem de cachimbo na boca ao por do sol... E que também é muito bonito e bom, e o Gilberto Mendes me ensinou a fazer o abstrato. E ai na Europa eu fiz a síntese, porque estando longe do Brasil não tinha mais nada a ver com o Brasil, estava em Paris. Agora interessante que foi lá que comecei a usar de maneira nova todos os recursos do folclore, da flora e da fauna, da Amazônia, porque eu estava longe.

ALV - Você podia abstrair, estava distanciado...
AP - Foi ai que a minha obra começou a fica com dimensão universal e brasileira, porque eu tinha as ferramentas apuradas para eu poder fazer o que quisesse, desde as Cartas Celestes, cósmica, que tem de repente no Cosmos um ritmo de baião, porque eu quis - c'est un caprice, eu posso, eu posso tudo. Na hora em que você pode tudo, você se liberta.

ALV - Você tem muitas composições sacras. A primeira foi Missa da Paz, depois veio Paixão Segundo São Marcos.
AP - Eu fui um dos primeiros compositores a fazer no Brasil missa em português, porque o Concílio tinha liberado o texto e foi uma experiência interessante. Mas eu acho que minha obra é mística mesmo sem usar o texto sacro, ela busca dar a quem a ouve, um estado de contemplação. A minha música tende a fazer você entrar num clima. Os melhores momentos da minha música são momentos estáticos de paz, são grandes porções, grandes praias. Ela é new wave antes da new wave. Eu já fazia música minimalista antes...

ALV - do Philip Glass...
AP - Antes do Philip Glass eu já fazia muita coisa que agora o pessoal está fazendo. Sabe, você é profeta, como eu acho que a Hilda (Hilst) antes de muita gente, em Qadós ela já estava aprontando. Só que nunca santo de casa faz milagre. Você precisa morrer e ai dez anos depois uma louca da USP faz uma tese sobre a tua obra e ai fala: nossa na página 14 do primeiro volume de Cartas Celestes o Almeida Prado usou um acorde que agora no século XXI está usando. Quer dizer você já estava careca de saber disso (risadas) e ninguém falava nada.

ALV - Por que isso? As pessoas nunca são compreendidas, estão muito além do seu tempo?
AP - Não é nada de esnobismo não é isso. Simplesmente você intui um outro tempo. E esta outra dimensão que você intui e que é Deus que te dá essa intuição, e que nem você às vezes sabe.

ALV - Você disse que ter musicado o poema da Hilda Hilst: Pequenos Funerais Cantantes foi responsável por uma guinada de 180 graus na sua carreira. Conte esta história.
AP - Foi um divisor de águas. E foi também um caso de destino. Eu tinha lido no jornal esta série de poemas da Hilda: Um Corpo de Terra e era o texto que eu precisava para fazer uma musica para o Concurso...

ALV - Concurso da Guanabara...
AP - Eu li aquele texto... "chagas de sol, rosácea ardente, aqueles rios de sangue".. E aí a música veio absolutamente genial - quadrinhas pequeninas e densas e para a música não tem melhor... "porta de fogo, caminho ígneo". Você já sente tudo, porque quando tem muito blá blá blá já vira ópera. Eu fiz numa semana esta música e mandei e aí ela foi classificada e quando eu no Rio ouvi o coral cantando aquela coisa eu disse: que obra genial.

ALV - Você já estava distanciado, não havia mais vaidade?
AP - Não, porque uma coisa existe em mim: a total lucidez quando eu gosto do meu trabalho. E não é sempre que isso acontece. Algumas obras me dão esta sensação: ela é maior que eu. Eu me ajoelho diante dela. É um filho que você gerou, ficou rei e você beija a mão do filho. É uma humildade porque é óbvio que não é obra tua, você foi instrumento. E aí foi um escândalo porque os grandes compositores da época perderam e eu ganhei. Eu era desconhecido, tinha 26 anos. Era um dinheiro incrível, 25 milhões, eu me dei uma bolsa e fui para a Europa. E depois lá consegui outras e acabei ficando cinco anos em Paris. Eu tenho uma gratidão muito grande pelo governador Abreu Sodré, que me arranjou uma bolsa de um ano. Foram os melhores anos da minha formação.

ALV - Mas você já tinha afinidades com a França porque a cada quatro palavras em português diz duas em francês...
AP - Eu tinha pelo seguinte: a formação da musica erudita brasileira é francesa, não é americana. É Villa Lobos, que tem influencia de Debussy e Ravel, é Guarnieri que estudou na França com a Nadia, então na verdade eu fui buscar meus avós musicais, culturais...

ALV - Bom, pelo que você conta, o exame do Conservatório de Paris foi uma verdadeira tortura.
AP - Eu não passei no exame, não passei...

ALV - Mas depois foi chamado...
AP - Porque eu não estava preparado, não tinha métier para isso, mas fiquei tão deprimido que o Messiaen - porque eu coloquei no exame, na prova de escuta, os Funerais Cantantes e na prova de métier não passei, mas ele viu que dentro daquela coisa que eu errei, ele viu que tinha alguém ali. Ele tem o faro como eu tenho hoje com meus alunos da Unicamp (na época ele ainda lecionava na Unicamp). Não interessa que o cara errou tudo, mas ele tem a chama. E o que acertou tudo não vai dar em nada. Aí ele mandou um aluno na minha casa dizer: si te plais, mon jeune homme Messiaen implora que você vá à classe dele como ouvinte e você terá as mesmas aulas que ele dá para os outros. Eu comecei a frequentar, ele adorava o que eu compunha, sempre. E ele me disse para eu não fazer o tal exame porque ia ter que estudar coisas sem interesse para o meu trabalho, totalmente vanguarda. E, além disso, eu estava estudando com a Nadia...

ALV – Paralelo você estudava com a Nadia Boulanger?
AP - Com a Nadia, que não gostava de Messiaen...

ALV - Mas parece que você compunha ferozmente.
AP - Eu estudava como um louco, não tinha tempo para nada.

ALV - Ela era genial? Você até compôs uma obra, Portrait de Nadia Boulanger. E Lili Boulanger, como era?
AP - Era irmã dela, que morreu tuberculosa aos vinte anos, que era um gênio na composição. A Nadia sabia que ela não era um gênio, era Salieri, ela sabia, tinha cultura, então deixou de compor. Ela dizia: minha irmã disse o que eu não posso dizer. Quando a irmã morreu ela renunciou a fazer música e passou a ensinar.

ALV - Mas distinguia, sabia ver a genialidade do outro?
AP - Fazia o outro compor genialmente.

ALV - A edição das suas obras na Tonos Verlag de Darmstadt foi importante na sua carreira internacional, porque possibilitava a divulgação de sua obra. A partir daí ela foi mais executada?
AP - Eu acho que a Tonos apareceu através de um amigo meu que era o Manuel Massarani que era adido cultural da embaixada do Brasil em Genebra, um rapaz muito importante na minha vida. Ele era attaché
(N. E.: adido) cultural da delegação do Brasil na ONU - e de muita gente importante no Brasil e que as pessoas se esquecem de nomear. A Anna Stela Schic me disse: você tem que conhecer o Massarani porque ele pode te ajudar a fazer uma carreira na Suíça. Aí peguei o trem, modestamente, liguei da estação para a embaixada, falei com ele e acabei hospedado em sua casa quinze dias. Neste tempo aconteceram coisas incríveis: ele marcou um recital meu no Conservatório de Genebra, recebi quatro encomendas de obras dos melhores grupos da cidade, ele ligou para Darmstadt falou com o Koenig que era editor, fui lá, assinei um contrato, ganhei um dinheiro adiantado. Quando cheguei a Paris já tinha obra tocada, tudo já marcado para dois anos de atividade na Suíça. Porque era um homem que fazia tudo na hora. E ele fazia isso para pintores, marcava exposições, tudo. É uma pena que ele não esteja mais lá, voltou para o Brasil e depois aconteceu que a Suíça ficou sendo mais do que França onde tudo acontece com minhas obras.

ALV - E o Oratório Villegagnon ou Les Îles Fortunées que você escreveu para o Quarto Centenário da morte de Nicolas de Villegagnon e que te possibilitou o ficar mais um ano em Paris?
AP - Foi isso que me fez ficar mais um ano, foi isso que me fez ficar mais conhecido em Paris, eu fui tocado em Provins, em Chartres, é uma obra muito interessante, foi um boom que me aconteceu.

ALV - Você voltaria a morar lá em Paris ou na Suíça?
AP - Eu tenho vontade de passar este ano um tempo lá (lembrar que estávamos no ano de 1989). Tenho um convite do João Carlos Martins para gravar uma música minha em Los Angeles, e ir para os Estados Unidos com ele para a gravação. Tenho vontade de voltar a Suíça para continuar meu trabalho, da minha missa que foi um sucesso. Agora em Paris não tenho mais contato. Mas sempre acontece isso: há um lugar onde você é mais tocado. É este ou aquele a não ser Stravinsky, Messiaen que são tocados no mundo todo. Já está ótimo que haja um lugar onde você é amado, respeitado. Mas eu tenho vontade de ir para a Suíça, e Israel também me atrai muito... É uma coisa absolutamente mística, musical, é uma cidade carrefour
(N. E.: praça, encontro de caminhos) é a Bizâncio, tudo acontece lá, a paz a guerra. Outro dia eu estava em oração e às vezes tenho uma locução interior (termo místico usado para designar contatos com o Alto) e Nossa Senhora me disse que meu tempo no Brasil estava terminando e que eu tinha que ir para outro lugar. Porque quando fui para a Europa, ano passado, que fui para ficar um longo tempo. Mas fui parar em Medjugorje e tive que voltar para dar início a todo este movimento, as imagens que eu trouxe (de Nossa Senhora Rainha da Paz que aparece a cinco videntes desde 1981) e daí que precisava estar aqui. Agora as coisas estão indo, andando sem mim e sinto que fechei um capitulo aqui e tem que abrir outro em outro lugar. É isso, nós somos peregrinos.

ALV - Esta coisa de Israel não será seu lado judaico, quero dizer esta atração pela terra dos seus antepassados?
AP - Gozado, quando eu era criança eu tinha uma coisa com Israel uma intuição que um dia eu iria morar lá. E quando estava na Europa eu tinha uma coisa com Israel, que era a coisa do Cristo, o grande judeu, Nossa Senhora a grande judia. Olha só que interessante aos dez anos eu profetizei - o repórter me perguntou: "o que você vai ser quando crescer?" "Quando crescer eu vou estudar em Paris". Olha, eu tinha dez anos, o que eu sabia? E fui e foi em Paris que eu comecei. Minha filha Maria Constanza diz: eu vou para Nova York e eu a vejo assim: uma mulher linda, com cabelos com laço marrom, de vermelho tocando no Lincoln Center, um concerto de Beethoven com orquestra.

ALV - Quando voltou de Paris você foi dirigir o Conservatório de Musica de Cubatão. Em seguida foi convidado para a Unicamp. Conte esta história.
AP - Foi uma volta maravilhosa até porque eu voltei como estrela, ganhava bem, eu gostava do Conservatório, mas ai veio um convite do Rogério Cerqueira Leite, do Benito Juarez (que foi maestro da Orquestra Sinfônica de Campinas durante anos) e do Raul do Valle para eu ir para a Unicamp. Aí fui almoçar com o Rogério e foi um almoço histórico, muito interessante e muito rápido. Eu cheguei às 11 horas, ele me deu um cafezinho e me disse: soube que você é um grande compositor e em seguida me convidou para almoçar. No almoço ele disse: escuta aqui, você quer trabalhar na Unicamp? Nós vamos fundar um departamento de música. Eu disse não, estou ganhando muito bem, 2.500,00 cruzeiros, pago 400 de aluguel, andava de táxi, ia para Cubatão de táxi. Ele me disse: mas estou te oferecendo 13.500,00. Aí me lembro que caiu o garfo e a faca (risos).

ALV - Treze...
AP - Treze mil e quinhentos cruzeiros novos... Quer dizer de dois para treze. Aí parou tudo e perguntei: tem telefone aqui para ligar para Cubatão porque me exonero já. Não, porque ai já é uma coisa absurda. Mas daí eu disse: você está brincando? Ele: não, é o que vou te oferecer. Sim, mas quando? Ele: já agora. Só que você vai fazer o seguinte: você já está ganhando a partir de hoje, você leva o curriculum etc. Mas vai deixar o dinheiro no banco e vai para a Europa, só volta em fevereiro.

ALV - Mas era bom demais...
AP - Sim foi de bandeja. Me deu viagem para a Europa e em fevereiro de 1975 eu tinha no banco uns 90 milhões (lembrar que eram cruzeiros novos). Aí aluguei apartamento, comprei móveis, piano, tudo. Então a Unicamp foi um dom que Deus me deu, um presente.

ALV - Então você começou uma nova fase na sua carreira. Aliás, você já disse gostar muito da Unicamp, inclusive compôs uma sinfonia em homenagem a ela.
AP - Foi aí que comecei a florescer porque antes da Europa eu considero um aprendizado imaturo. Na Europa foi um grande aprendizado ainda mais apoiado em Messiaen e Nadia e quando eu cheguei ao Brasil e fiz aquela obra Momentos de Cubatão e Ilhas. Foi quando eu dei o grande divisor da minha obra e comecei aquilo que eu realmente queria. Aí compus as Cartas Celestes e fiquei o Almeida Prado com estilo próprio, com discurso pessoal.

ALV - São os Episódios de Animais, Ilhas, Exoflora, enfim você era um brasileiro compondo musicas que falavam da realidade do seu país?
AP - Tudo isso, que já considero do mesmo nível dos que eu faço hoje.

ALV - E por que acredita ser Cartas Celestes sua obra mais sólida e importante?
AP - Eu acho a obra mais importante para piano da literatura mundial, não só nacional. É uma das mais importantes porque é a obra mais longa para piano que existe, nem Messiaen tem uma obra assim, feita com o mesmo material. Na verdade ela é um grande afresco, um grande mural cósmico que mudou muita coisa no discurso do piano e influenciou muito a musica brasileira, todos os compositores jovens foram beber lá. Todos os que compõem para piano foram beber nas Cartas Celestes. Como também as Cartas Celestes têm influencia de Messiaen, Debussy, Villa Lobos, mas enfim ela é uma coisa nova. Ela é o Qadós da Hilda (hoje Kadosh da Hilda Hilst).

ALV - Ela foi executada no mundo inteiro, você me disse.
AP – Foi sim, foi gravada pelo Ney Salgado, Fernando Lopes, Roberto Szidon, japoneses, enfim foi executada no mundo inteiro.

ALV - Gostaria que falasse agora da sua fase na Unicamp. Parece-me que você considera sua obra composta neste período sua melhor obra?
AP - Foram treze anos, a porção mais importante da minha vida: dos 32 aos 45 anos. Eu compus a minha melhor obra e isso que te disse outro dia: se eu morresse agora, eu já fiz uma obra. Eu ainda posso compor mais, mas se eu morresse neste instante eu acho que não deixei descumprida a obra. Ela fechou. Então talvez eu faça uma outra obra, mas esta fechou. Tem as Cartas Celestes, A Sinfonia dos Orixás, a Sinfonia Unicamp, tem a Missa de São Nicolau que é maravilhosa.

ALV - Que segundo me contou foi estreada em Villars-sur Glâne, na Suíça. Conte em detalhes.
AP - Foi impressionante. Você não pode imaginar a minha emoção-eu na igreja de Villars-sur Glâne, nevando fora, Deus preparou o cenário teatral para mim...

ALV - Era véspera de Natal.
AP - Eu chegando e o maestro dizendo: não você não vem ver o ensaio hoje, vem na véspera para ser uma surpresa e tal. Mas como eu estava morando na casa de uns amigos, que ficava justamente atrás da igreja, de repente comecei a ouvir uns sons, eu nunca tinha ouvido...

ALV - Mas como? Você compôs?
AP - Sim, mas uma coisa é você compor e outra é ouvir com coral etc. Subi as escadas do Coro, ninguém sabia que eu estava lá e então eu ouvi uma coisa e falei: eu fiz isso e ai eu chorava aos prantos, de adoração, de gratidão, porque era uma coisa tão linda, porque, eu pensava, era nível de Beethoven, de Mahler...

ALV - É porque você é modesto...
AP - Não, você fica modesto diante de uma obra que realmente é maravilhosa. Ela ultrapassa... Mas aquela emoção não foi repetida porque depois eu ouvi novamente com pessoas ao lado, então você tem que ter atitudes, mas ouvir virginalmente... Eles diziam: quel merveille, eles elogiavam sem saber que eu estava lá, tudo foi espontâneo, tudo autêntico. Porque se soubessem que o compositor estava lá já seria diferente.

ALV - Isso foi onde? Na catedral?
AP – Foi numa igreja pequena, século IX. Mas na catedral foi uma emoção diferente, dia de Natal, missa de dez horas, pontifical com bispo, cardeal, e aí eu fiquei anônimo no meio da massa humana e aquela música era a catedral, aquela musica era de Deus, não era mais minha.

ALV - Gostaria que falasse um pouco da Sinfonia dos Orixás, sua última obra grande não é?
AP - Eu estava na Suíça como você viu, eu estava lá para a première mundial. Porque é o seguinte: o Benito me encomendou uma obra para comemorar os dez anos da Orquestra Sinfônica de Campinas. Resolvi então usar algum clichê brasileiro usando afro, e fiz uma obra em que cada movimento era um orixá, um simbolismo. Eu não sou crente do candomblé, mas respeito. Então não era uma obra de alguém que crê em candomblé. Eu faço candomblé como podia fazer Zeus, Apolo, etc. e ficou muito bonito, muito colorido. E o Oscar Arrais, que é um grande coreógrafo, que era na altura diretor do Ballet de Genebra, um dia estava conversando com o maestro – veja de novo o destino - ele disse: "O que eu poderia fazer para a nova temporada - Lago do Cisne eu não aguento mais, Ofélia, Sacre du Printemps - ele queria uma coisa diferente - As Bachianas já era. Aí ele viu o disco Sinfonia dos Orixás na mesa do maestro e perguntou - Almeida Prado quem é? Vamos ouvir isso aí." E aí começaram aquelas coisas, os tambores, aquele som, ele ficou louco. Falou: é esse ballet. Endoideceu, ligou para a Unicamp, mandou telegrama, porque quando as pessoas querem te encontrar... Finalmente ligou para o meu editor que mandou material. Enfim foi posto na temporada oficial do melhor teatro de ballet da Europa - o Grand Theâtre de Genève, junto com Bela Bartók.

ALV - Sei que você esteve em Medjugorje, ex-Iugoslávia, atual Bósnia-Herzegovina, onde se registram aparições da Virgem Maria desde 1981 e sei também que o que te aconteceu lá ocasionou grandes mudanças na sua vida. Poderia me contar a viagem, a experiência, tudo?
AP - Pois então entre a Missa, a estreia da Missa, que era em dezembro de 1987, e o ballet em outubro, eu não tinha o que fazer na Europa. Estava com dinheiro, mas aí me lembrei de Medjugorje, que eu relutava em ir, eu tinha medo..

ALV - Por que, você sendo tão religioso?
AP - Das exigências de Jesus, porque eu não estava vivendo uma vida de acordo, estava vivendo de um jeito oba oba e eu sabia que isso não ia me levar a lugar algum. E via Deus como um grande caçador me espreitando, sabe como uma daquelas redes que se caçam os leões? Porque Deus é um grande caçador, ele te caça, ele te quer, malgrè, eu ia para cá ele para lá. Eu sabia que se chegasse lá e ele me pedisse para renunciar a tudo, todas as ilusões... Mas aí mais uma vez arranjei desculpas, eu não posso gastar dinheiro, se eu tivesse dois mil francos, pensei, eu ia. No dia seguinte fui ao banco e lá havia dois mil francos a mais na minha conta já dos direitos autorais do ballet. Ai eu pensei: é um insulto a Providencia de Deus eu não ir. Então arrumei uma maleta e fui para a estação de trem, peguei o trem para Berna, fui à embaixada carimbei o passaporte, em geral isso leva um mês, eu consegui em dois minutos. Fui para o aeroporto peguei o avião, fui a Zagreb, peguei o trem até Mostar e cheguei as 10 h da noite e havia um homem me esperando na estação... Ele perguntou: vai para Medjugorje? Quer dizer - São Gabriel (o arcanjo das comunicações) ou São Miguel, um anjo de Deus ali, vestido de chofer de táxi! Ele levou de táxi até lá. Eu pensava ou este homem vai me matar ou então é verdade. Ele me levou na casa de uma senhora que só falava croata. Eu dizia: sleep, dormire, recostare, dormitatum, falava em grego, a mulher nada (risadas). Aí eu disse: Nossa Senhora, já que me trouxe aqui, arranje pelo menos uma língua celta, que é pelo menos mais perto do francês que esse horror de w com z cortado de baixo para cima (o croata) não dá... Aí eu ouvi: mais non, parce que je... Aí fiquei mais aliviado - era alguém falando francês. Era a tal canadense...

ALV - A jornalista canadense que se converteu e está lá escrevendo?
AP - A Lise Leclerc que vai a Medjugorje duas vezes por ano, uma mulher rica e importante. Ela ficou trabalhando para Nossa Senhora. Aí eu disse: s'il vou plait madame... e finalmente me alojaram, eu estava quebrado. Aí, tudo bem, dormi de roupa, não havia chauffage e me acordaram às quatro da manhã para eu assistir a missa na capela das aparições - fazia menos dez graus, gelo no caminho. Aí começou todo o trabalho, eu senti necessidade de confessar, de procurar soltar e as coisas que foram dando certo até que durante uma aparição senti a presença de Maria chegando perto de mim e eu estava no céu - me veio uma certeza que Deus me ama, como eu sou, e que Deus não é um tirano, que o céu é uma jubilação, não dá para entender, foram minutos que para mim pareceram anos. E naquele minuto eu tudo entendi, eu tudo perdoei. E fiquei tão perturbado que comecei a trabalhar este dom e então comecei a rezar. Ia para a colina e ficava quatro horas em oração, ia para o quarto rezar, ia andar.

ALV - E aquelas locuções interiores de que me falou? Quando aconteceram?
AP - Ah foi depois - ouvi a voz de Maria na cruz azul que fica na colina – que ela havia me levado lá para me entregar a Jesus e que era irreversível, que ela com muito custo tinha conseguido me levar e que tinha lutado muito com Satanás e que eu não ia mais decepcioná-la. Não vem a frase, vem uma intuição. Aí, dias depois, fui rezar numa cruz que é uma cruz de madeira, como tem em Campos de Jordão e aí Jesus falou: "Dá-me tua vida". Aí fiquei em pânico, pensei que ia morrer. E eu disse: "toma Jesus, tudo é teu". Eu senti uma alegria, uma jubilação, fiquei inebriado, como se tivesse tomado cinco garrafas de vinho. Fiquei rejuvenescido. Mas eu não podia por uma tenda e ficar lá, e eu tive que voltar, trabalhar etc. Fui para Fribourg e levei uma vida entre o retiro e a solidão, aquela neve e comecei a escrever o Rosário de Medjugorje e fiquei esperando a Missa de São Nicolau, a estreia da minha Missa. Mas então começou a dar errado e voltei com a imagem que ela abençoou e começou todo um movimento aqui no Brasil. Fui para Belém do Pará e a coisa está crescendo, a divulgação das mensagens, das aparições...

ALV - Quer dizer que nesta hora ninguém sabe quem você é, compositor famoso, etc.?
AP - Ninguém sabe meu RG. Ali eu sou apenas o homem que foi para Medjugorje e que põe as mãos e pede: que Jesus te salve. Nesta hora eu sou instrumento de Cristo e eu tive que me acostumar com isso.

ALV - E quais as obras que você compôs depois desta experiência?
AP - O Rosário de Medjugorje, três canções baseadas num poema do pai de um amigo meu: Notre Dame de la Route - Eric Tillo. Vou ler para você: "Notre Dame, Vierge pure, vous etiez... Você era apenas uma medalha que eu carregava. Toda leve, rápida, doce, terna nos passos pesados do teu filho e eu te carregava como medalha alegremente. Eis que graça florida, que você vai à minha frente rápida, sobre as pedras. E meu coração te vê e escuta teus passos rápidos entre as pedras com o bastão. De seus pés, misturados na poeira, cintilando como um mistério no ar morno e palpitante. O seu manto é como um pano é um céu azul e flutua resplandecente entre as nuvens brancas e nos seus cabelos dourados, onde os trigos são olhados, a lua fina faz um desenho como um diadema de prata. Ando muito tempo em silêncio e a noite cai e as árvores em cadência balançam com o vento. Você não escuta Maria, meus passos que estão sendo ralentados? Maria, ó santa Maria escuta, eu estou te seguindo eu não aguento mais andar. Aí você veio: ela parou e na escura sombra fria e nua você me pegou pela mão e na sua plenitude, sem medo nem cansaço. Enfim, divino privilégio, no meio dos seus braços de neve, o seu amor me faz subir. E o coração palpitando, eu escuto Nossa Senhora do Caminho, o vosso coração batendo e cantando".

ALV - Ah que lindo... Nossa Senhora o carrega nos braços... Ele ouve seu coração batendo... Belíssimo!
AP – Sim ele está andando com a medalha e de repente vê a Virgem andando na sua frente e ele a segue, mas está cansado a certa altura... Cansado de andar.... E de repente ele não a ouve mais... Porque justamente ela o carregou nos braços. Ele era um grande poeta suíço. E depois, eu compus já aqui no Brasil Nove Louvores Sonoros e O Jardim Final que é uma lembrança de tudo aquilo que eu passei - uma espécie de psicanálise musicada sobre tudo o que passei toda essa experiência mística.

ALV  - Você considera sua obra suficientemente divulgada e conhecida ou gostaria de vê-la mais tocada e mais conhecida? Sei que você diz não conseguir fazer coisas simples?
AP - Gostaria de ser mais tocado, lógico, mas eu tenho a impressão que faço uma obra tecnicamente muito difícil. Eu não consigo ser simples. Mas eu já me conformei, não estou mais preocupado.

ALV - Agora gostaria que você dissesse de forma "simples" o que é atonalismo. E transtonalismo.
AP - (vai ao piano e faz acordes maravilhosos, transtonais).

ALV - Vamos traduzir isso em palavras. Compare o tonalismo e atonalismo.
AP - O atonalismo é o uso e todo o espectro harmônico das ressonâncias cromáticas. Quer dizer, no atonalismo você pulveriza a limitação de um modo (vai ao piano e faz um modo maior). Agora você tem isso (faz um modo menor) e isso ocorre porque a terça diminuiu. Mas ouvindo uma música tonal você sente que ela tem um clichê de começo, meio e fim, que são as cadências (ilustra novamente no piano).

ALV - Vamos comparar com a literatura, para eu entender melhor a coisa. Você diria que o Ulysses de Joyce é atonal?
AP - É como escrever assim: "Maria acordou e estava muito feliz. Foi à cozinha e encontrou seu gato dormindo e disse: ó gato, você está dormindo". Na literatura é aquilo que está previsto e pode ser genial. Agora a música atonal: Maria acordou gato falou ó gato, ontem eu estava passando... Aquela coisa estilhaçada, delirante, é o Kadosh da Hilda, em que você entra no futuro, no passado. Então Ulisses de Joyce é atonal. Dostoievski é tonal, Hilda Hilst é atonal, Lygia Fagundes Telles é tonal. E na pintura seria o abstrato. É quando você perde as referências. É o universo acima das referências.

ALV - Os tempos estão misturados, não há linearidade?
AP - Não tem linear. Na música atonal você instintivamente coloca harmonia, porque os têm como arquétipos herdados. Agora a música atonal não. O que não quer dizer que não se possa fazer música tonal hoje em dia, apenas que o discurso sonoro foi levado a um outro tipo. Mas agora (notar que ele falava isso em 1989) o tonal está voltando - o próprio Stockhausen é tonal.

Obras principais

Música orquestral: Cidade de São Paulo (1981); Sinfonia dos Orixás (1985-86); Sinfonia Apocalipse (1987); Variações concertantes para marimba, vibrafone e cordas (1984); Concert Fribourgeois (1985) e Concerto para piano e orquestra (1983);

Música coral: Ritual para a Sexta-feira Santa para coro e orquestra (1966); Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (1967); Pequenos funerais cantantes para coro, solistas, orquestra (1969); Carta de Patmo para coro, solista e orquestra (1971); Thèrèse ou l’Amour de Dieu para coro e orquestra (1986); Cantata Bárbara Heliodora para solistas, coro misto e orquestra de câmara (1987); Cantata Adonay Roi Loeçar para solistas, coro e orquestra de câmara;

Música instrumental: Sonata para violoncelo (1980); 3 Sonatas para violino e piano; Sonata para viola e piano (1983); Réquiem para a paz (1985); Sonata para flauta e piano (1986); Trio marítimo para violino, viola e piano (1983); Livro mágico de Xangô para violino e violoncelo (1984);

Música para piano: Cartas celestes (1974); 9 Sonatas; Noturnos; Prelúdios; Variações; 6 Momentos; Ilhas; Rios; Itinerário idílico e amoroso ou Livro de Helenice (1976); 3 Croquis de Israel (1989); Rosário de Medjugorje (1987); 15 Flashes de Jerusalém (1989).

Na internet:

http://www.abmusica.org.br/acad15.htm

http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2006/ju332pag4-5.html

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2492,1.shl


[*] Ana Lúcia Vasconcelos é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas com mestrado em Filosofia de Educação pela Unicamp. Como atriz e jornalista atuou em Campinas e São Paulo, tendo trabalhado em vários veículos da Editora Abril - Grandes Personagens da Nossa História, Musica Popular, Mestres da Musica Universal, Revista Escola, Enciclopédia Abril, Revista Nova, Claudia Moda, Revista Pop, e free-lancer para dezenas de jornais e revistas: Suplemento Cultura de O Estado de São Paulo, Isto É, Shopping News, Revista Artes, vários house organs, Leia Livros, Folha de São Paulo, DO Leitura, Etiqueta Moda Profissional, Revista Visão (inclusive uma capa que foi reproduzida na Seleções do Reader’s Digest em 19 países da Europa e Estados Unidos).

Foi editora de um jornal de Campinas que já não existe: Jornal de Hoje, escreveu no Diário do Povo e Correio Popular, Revista Vívere, Jornal de Domingo, City News, entre outros desta cidade.

Na televisão, foi assistente de produção e apresentadora do programa Semanário das Artes, que depois passou a se chamar Em Cartaz e é o atual Metrópolis da TV Cultura; participou como atriz do programa Ator na Arena dirigido por Ziembinski, e da peça Natal na Praça, de Henry Ghèon, na TV Cultura de São Paulo, e foi pesquisadora de Arte da novela Os Gigantes de Lauro César Muniz, na Rede Globo de Televisão. Atuou ainda como produtora e apresentadora do Programa Ponto de Vista da TV Thathi da Rede Manchete de Campinas em 1995.

E-mail: analuvasconcelos@globo.com

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