Muitas texturas, cores, plantas e
flores se misturam na casa da artista, que também se envolveu com a política local e o meio ambiente
Foto: de Alexsander Ferraz, publicada
com a matéria
A dureza da vida retratada em arte
É com este olhar que a artista plástica e escritora Beatriz Rota-Rossi buscou inspiração
no lado nada glamouroso do Porto de Santos
Tatiane Calixto
Da Redação
Artista
plástica e escritora, Beatriz Rota-Rossi é formada em História da Arte, porém confessa que dos fatos da própria vida tem dificuldades em guardar
datas. Mas quando chegou ao Brasil, vinda da Argentina por conta do trabalho do marido, certeza de que
passava pouco de junho. Afinal, os bares do cais santista ainda ostentavam as bandeirinhas de São João.
O ano, puxa da memória, era 1967. Isso porque foi no mesmo ano em que chegou no Brasil que um dia ligou a TV e estava lá, um dos momentos mais
emblemáticos da música brasileira: Sérgio Ricardo, tomado pela ira, quebrando o violão e o arremessando na plateia, após ser vaiado ao tentar
cantar sua Beto bom de Bola, no III Festival de Música Popular da Rede Record. Sim, era 1967. "Ano
filho da p...", vocifera Beatriz, sem poupar o palavrão. Válido, já que ela chegou ao
Brasil justamente às vésperas do endurecimento da ditadura militar, com o Ato Institucional de número 5, de 1968.
A questão política não representava novidade. O pai era de esquerda, a mãe de direita. Ciente dos dois mundos, saiu mais ao pai. Já era artista
desde Buenos Aires, mas a vida economicamente confortável dava a tudo um ar, como ela diz, banal. A realidade que viu quando desembarcou em
Santos simplesmente a transformou. "Tinha 26 anos. De cara me apaixonei por Santos. Eu já
pintava a vida dos trabalhadores em Buenos Aires. Mas aqui, a imagem foi fantástica. As boates estavam enfeitadas com bandeirinhas e as
prostitutas caminhando. Era uma imagem forte", lembra Beatriz.
E foi na crueza do cais, na tristeza e alegria das prostitutas e na força de várias mulheres que ela mesma retratou em sua arte que a argentina,
naturalizada brasileira, mergulhou. Assim, fez parte de um dos momentos mais efervescentes da cultura e da política de Santos.
Não só assistiu. Com a firmeza que lhe é peculiar, integrou o movimento que fez surgir o Partido dos Trabalhadores (PT) em Santos, retratou a
vida na Boca de Santos e lutou contra o desrespeito à natureza e o lado perverso do
boom imobiliário na Cidade.
Desbravou um mundo nada fácil para mulheres, em um momento nada fácil para ninguém. "Na
primeira noite mais fria, fui até um bar e pedi um conhaque. Não quiseram me servir", diz,
aumentando a voz indignada. "Eu não era alcoólatra, só queria me esquentar. Mas não
quiseram servir só porque era mulher. Foi difícil conviver com isso. Na Argentina, a mulher tinha mais espaço. Santos era muito provinciana",
resume. E o que fez Beatriz em relação a isso? Deu de ombros. Meteu-se em um grupo de artistas e foi fazer arte. "Para
o artista, o precioso é fazer", sentencia.
Nas paredes, exemplos do quanto a
Cidade lhe instigou a mostrar sua leitura da dura realidade na Boca. ...
Foto: de Alexsander Ferraz, publicada
com a matéria
Verdade que até sangrava
Entrar no apartamento de Beatriz Rota-Rossi é mergulhar em um mundo de mulheres sensuais,
arlequins tristonhos, quadro de frutas, flores e plantas. Muitas plantas. As cores se misturam no ambiente, assim como as texturas.
Revistas estampam Van Gogh e Frida Kahlo e uma estante empilha potinhos com etiquetas: Pergaminho, Pedra Sabão, Branco Brilho. Música clássica
enche o ambiente e, espalhados, alguns DVD’s da coleção (que ela tem completa) de Stargate. Pouco é convencional. Tudo parece inspirar.
O começo da arte de Beatriz no Brasil esteve intimamente ligado às prostitutas e ao cais de Santos. Era a noite cair que ela saía em busca de
imagens ao lado do primo Alex Vallauri (que introduziu o grafite no Brasil) e o pintor e também condutor de
locomotivas Luiz Hamen. "As prostitutas nos serviam de modelo.
Elas posavam para a gente", conta.
Cais |
Beatriz Rota-Rossi saía à noite, na companhia de mais dois artistas, em busca de
imagens do cais santista para criar arte |
|
Isabel foi a primeira. Traços indígenas, cabelos longos e nova, descreve Beatriz. Uma
xilogravura (técnica que utiliza madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte) pode ser vista
logo na entrada do apartamento da artista. É Isabel.
Aliás, o filho da prostituta nasceu em um parto feito pelo grupo de amigos/artistas. "Eu, o
Luiz, o Alex e o marido, que era cafetão, fizemos o parto de Isabel. Ela não deveria ter nem 18 anos",
lembra.
Segundo Beatriz, o tempo no qual respirou o cais de Santos para realizar sua obra lhe ensinou muito. "As
prostitutas me mostraram... (silêncio).
Mostraram um mundo onde tudo era a vera. Não havia lugar para hipocrisia. A morte, o amor, o ódio, o sangue. Tudo era cruamente verdade".
Uma noite, conta Beatriz colocando-se de pé, ela, Alex e Luiz estavam pintando de madrugada em um bar. Sentada mais perto da porta, uma
loirinha, muito bonita, lembra. Mais ao fundo, uma morena silenciosa. Então, chegou um marinheiro que ela não sabe dizer a nacionalidade, mas
era bem loiro. A loira adiantou-se e começou a beijá-lo, sem demora. Eles saíram, voltaram logo, muito provavelmente sem consumarem nada. Foi aí
que a morena levantou, foi até a loira e passou a mão no rosto dela.
"Na hora, o sangue começou a escorrer e sujar o chão. Ela tinha uma navalha entre os dedos.
Ela era a prostituta preferida do cara e a loira tinha se atravessado. O cafetão limpou tudo rápido, olhou para a gente e decretou: ‘não viram
nada", relembra. "Aquilo não era nada
glamouroso, nada romântico. Mas era a realidade".
... Ela, que veio para acompanhar o
marido, a trabalho em São Paulo, separou-se...
Foto: de Alexsander Ferraz, publicada
com a matéria
No fusca, a carona para Luiz Inácio
Vir para Santos mudou Beatriz. Tanto que ela, que chegou na Cidade acompanhando o marido a
trabalho em São Paulo, separou-se. Deixou que sua arte fosse influenciada pela luta. Lembra que um dia deu carona até Lins (interior de São
Paulo) para Luiz Inácio Lula da Silva em seu fusquinha. Anos depois, estaria às voltas com os
fundadores do Partido dos Trabalhadores em Santos. Fez obras em protesto à Transamazônica e à destruição da natureza.
Hoje, aos 70 anos, mãe de duas meninas, cinco netos e dois bisnetos, Beatriz considera que sua arte talvez não tenha tanta força de mobilização
quanto suas palavras, em sala de aula, por exemplo. Mas não desiste. "Precisamos ter uma
política cultural. Precisamos de espaços de cultura e o povo precisa de trânsito nestes espaços. Não uma vez por ano, mas sempre".
... e deu voz à sua indignação
Foto: de Alexsander Ferraz, publicada
com a matéria
Parto e cultura |
"Eu não era alcoólatra, só queria me esquentar. Mas não quiseram servir (conhaque) só
porque era mulher. Foi difícil conviver com isso. Na Argentina, a mulher tinha mais espaço. Santos era muito provinciana" |
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"Eu, o Luiz, o Alex e o marido, que era cafetão, fizemos o parto de Isabel. Ela não
deveria ter nem 18 anos" |
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"As prostitutas me mostraram... (silêncio). Mostraram um mundo onde tudo era a vera.
Não havia lugar para hipocrisia. A morte, o amor, o ódio, o sangue. Tudo era cruamente verdade" |
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"Precisamos ter uma política cultural. Precisamos de espaços de cultura e o povo
precisa de trânsito nestes espaços. Não uma vez por ano, mas sempre" |
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Beatriz Rota-Rossi, arte e vanguarda
Foto: de Alexsander Ferraz, publicada
com a matéria, na primeira página (A-1) |