Jair nunca mandou recado. Acorrentou-se quando a
Prefeitura não pagou o 13º do funcionalismo
Foto: Luigi Bongiovanni - 22/12/1998 - publicada com a matéria
Vamos celebrar Jair, um autêntico fingidor
Amigos e
parceiros de Jair dos Santos Freitas, que há dez anos se foi para agitar praças de outras dimensões, reúnem-se para um tributo que a Cidade
está a lhe dever
Julinho Bittencourt
Crítico de MPB. Especial para A Tribuna
Jair de Freitas foi um
fingidor. Fingiu dores e amores sem fim e valeu-se deles para poemas e canções desesperadas que alguns amigos, hoje, recordam. Fingiu-se de
valente, pleno em desacato, quando na verdade não passava de um fidalgo. Era capaz de fazer bonito em qualquer salão. Desde os revestidos de
mármore e mogno até as sinucas mais imundas de cimentado e fórmica. Reconhecia d esguelha elementos materiais e humanos, detestava poderosos,
disputava poder, bebia a cântaros, mas não suportava bêbados, fazia que fazia, dizia que fazia, numas vezes ficou no disse que disse e, em
muitas outras, fez mesmo.
Fingia que era vadio e não parava de produzir um
instante. Entre poemas, projetos, sambas e paixões irremediáveis, só descansou no sétimo dia de sua ode irrevogável. No seu pacto com o
espelho, optou por viver tudo em quarenta e poucos anos a viver pouco m muitos, entre corredores de hospitais encardidos e planos de saúde
desonestos. Fingia que tinha pressa, fingia que queria ir embora logo. Se agarrou à sua obra até o último instante.
A despeito do nariz-de-cera acima
(N.E.: termo jornalístico usado para identificar um ou mais parágrafos iniciais da matéria que não respondem às
principais perguntas que costumam ser aí elucidadas: O que? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?), é
preciso que se diga aos incautos que Jair de Freitas foi um poeta, compositor, militante político e cultural e perturbador da paz pública que
nasceu em Santos, ilha de São Vicente, em plena década de 50. Viveu a maior parte na sua cidade natal, mas passou algum tempo da década de 70
em Bruxelas, na Bélgica, casou algumas vezes, teve duas filhas, pela ordem, Miranda e Carolina. Entre toneladas e litros de substâncias
lícitas e ilícitas estudou Direito, foi funcionário público, amou e até creu. Creu tudo que pôde na poesia que escrevia, no amor das mulheres
e dos amigos e na imponderável mudança da ordem das coisas. Por esses pequenos detalhes foi capaz de quase tudo.
E não pense que esse "quase tudo" é retórica. Certa
vez, e este é só um dos exemplos, acorrentou-se na porta do prédio da Prefeitura d Santos, sob as intempéries do clima do abafado e úmido
verão santista, em protesto pelo não pagamento do 13º do funcionalismo. Convidado pelo prefeito de então a sair, com a promessa de que teria o
seu problema resolvido, disse que só sairia dali com o pagamento de todo o efetivo, de todo o quadro da Prefeitura. Assim foi feito e, poucas
horas depois, foi de lá direto para o hospital, impregnado de orgulho e pneumonia.
Tudo com ele era assim, intenso e imediato. Tinha que
ser agora, havia de ser já. Batia na casa dos parceiros no meio da madrugada, tirava amigos advogados da cama, arrumava quizumbas enormes sem
a menor explicação. Desafiava quem quer que fosse com o tamanho que tivesse por qualquer razão que houvesse de ser. Era, ou ao menos parecia
ser, totalmente desprovido de medo.
Lia com a mesma compulsão que escrevia. Declamava
Baudelaire de cor no original, citava trechos da Bíblia, conhecia Filosofia e História, tocava vários instrumentos, sabia cultura popular, a
métrica e a estrutura de folguedos, cordéis e cantigas. Compunha com a mesma intensidade e entrega uma ode à devastação colonizadora das
praias brasileiras sertão adentro e um samba para a banda Segura no Bagre.
Com tudo isso, deixou uma obra extensa e razoavelmente
organizada. Em vida só lançou um livro, o lindo e contundente Rota Rota, mas ficaram vários outros pontos. Sua viúva e companheira dos
últimos anos, Mariza Freitas, ao lado do amigo Fernando Borgomoni, os dois da produtora Cavalo de Praia, cuidam
atualmente da publicação de toda a sua obra literária e parte da musical, que está diluída entre vários parceiros. O mais freqüente de todos,
o músico e amigo João Paulo Maradei, se foi também levou com ele parte da memória da dupla.
Na segunda metade de 2010, foram completados dez anos
que Jair partiu, precocemente, aos 46 anos. Através de uma iniciativa própria, que encontrou guarida imediata do secretário de Cultura Carlos
Pinto e de toda a turma da Secult, alguns amigos se reúnem na próxima sexta-feira (18), para uma homenagem singela e afetiva à sua obra e
memória. No palco do Theatro Guarany, a partir das 21 horas, para apresentar as suas composições, vão se
revezar os músicos Lincoln Antônio (com Juçara Marçal), Luiz Cláudio de Santos e eu, três dos seus parceiros mais constantes. Além disso,
entre estas apresentações, Beatriz Rota-Rossi, Gilson de Melo Barros, Luiz Cancello, Luiz Soares, Roberto Martins e Valdir Alvarenga, pessoas
ligadas à vida e à obra de Jair, vão lembrar algumas de suas histórias e de seus textos.
Será, enfim, uma celebração à vida tão intensa e à obra
tão presente ainda de um grande amigo. Mas será, também e principalmente, um reconhecimento tardio a um artista de suma importância para
Santos e para o Brasil.
E este reconhecimento é tardio não porque nenhum dos
envolvidos houvesse pensado em fazê-lo antes. Mas sim porque Jair, se ainda estivesse vivo, jamais iria deixar que se fizesse uma coisa
dessas.
Ou, pelo menos, iria fingir que não deixaria.
Reprodução parcial da página de A Tribuna com
a matéria