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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Jair dos Santos Freitas

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Notícia publicada no jornal santista A Tribuna, em 16 de fevereiro de 2011, na página D-1 (Galeria):

Jair nunca mandou recado. Acorrentou-se quando a Prefeitura não pagou o 13º do funcionalismo
Foto: Luigi Bongiovanni - 22/12/1998 - publicada com a matéria

Vamos celebrar Jair, um autêntico fingidor

Amigos e parceiros de Jair dos Santos Freitas, que há dez anos se foi para agitar praças de outras dimensões, reúnem-se para um tributo que a Cidade está a lhe dever

Julinho Bittencourt

Crítico de MPB. Especial para A Tribuna

Jair de Freitas foi um fingidor. Fingiu dores e amores sem fim e valeu-se deles para poemas e canções desesperadas que alguns amigos, hoje, recordam. Fingiu-se de valente, pleno em desacato, quando na verdade não passava de um fidalgo. Era capaz de fazer bonito em qualquer salão. Desde os revestidos de mármore e mogno até as sinucas mais imundas de cimentado e fórmica. Reconhecia d esguelha elementos materiais e humanos, detestava poderosos, disputava poder, bebia a cântaros, mas não suportava bêbados, fazia que fazia, dizia que fazia, numas vezes ficou no disse que disse e, em muitas outras, fez mesmo.

Fingia que era vadio e não parava de produzir um instante. Entre poemas, projetos, sambas e paixões irremediáveis, só descansou no sétimo dia de sua ode irrevogável. No seu pacto com o espelho, optou por viver tudo em quarenta e poucos anos a viver pouco m muitos, entre corredores de hospitais encardidos e planos de saúde desonestos. Fingia que tinha pressa, fingia que queria ir embora logo. Se agarrou à sua obra até o último instante.

A despeito do nariz-de-cera acima (N.E.: termo jornalístico usado para identificar um ou mais parágrafos iniciais da matéria que não respondem às principais perguntas que costumam ser aí elucidadas: O que? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?), é preciso que se diga aos incautos que Jair de Freitas foi um poeta, compositor, militante político e cultural e perturbador da paz pública que nasceu em Santos, ilha de São Vicente, em plena década de 50. Viveu a maior parte na sua cidade natal, mas passou algum tempo da década de 70 em Bruxelas, na Bélgica, casou algumas vezes, teve duas filhas, pela ordem, Miranda e Carolina. Entre toneladas e litros de substâncias lícitas e ilícitas estudou Direito, foi funcionário público, amou e até creu. Creu tudo que pôde na poesia que escrevia, no amor das mulheres e dos amigos e na imponderável mudança da ordem das coisas. Por esses pequenos detalhes foi capaz de quase tudo.

E não pense que esse "quase tudo" é retórica. Certa vez, e este é só um dos exemplos, acorrentou-se na porta do prédio da Prefeitura d Santos, sob as intempéries do clima do abafado e úmido verão santista, em protesto pelo não pagamento do 13º do funcionalismo. Convidado pelo prefeito de então a sair, com a promessa de que teria o seu problema resolvido, disse que só sairia dali com o pagamento de todo o efetivo, de todo o quadro da Prefeitura. Assim foi feito e, poucas horas depois, foi de lá direto para o hospital, impregnado de orgulho e pneumonia.

Tudo com ele era assim, intenso e imediato. Tinha que ser agora, havia de ser já. Batia na casa dos parceiros no meio da madrugada, tirava amigos advogados da cama, arrumava quizumbas enormes sem a menor explicação. Desafiava quem quer que fosse com o tamanho que tivesse por qualquer razão que houvesse de ser. Era, ou ao menos parecia ser, totalmente desprovido de medo.

Lia com a mesma compulsão que escrevia. Declamava Baudelaire de cor no original, citava trechos da Bíblia, conhecia Filosofia e História, tocava vários instrumentos, sabia cultura popular, a métrica e a estrutura de folguedos, cordéis e cantigas. Compunha com a mesma intensidade e entrega uma ode à devastação colonizadora das praias brasileiras sertão adentro e um samba para a banda Segura no Bagre.

Com tudo isso, deixou uma obra extensa e razoavelmente organizada. Em vida só lançou um livro, o lindo e contundente Rota Rota, mas ficaram vários outros pontos. Sua viúva e companheira dos últimos anos, Mariza Freitas, ao lado do amigo Fernando Borgomoni, os dois da produtora Cavalo de Praia, cuidam atualmente da publicação de toda a sua obra literária e parte da musical, que está diluída entre vários parceiros. O mais freqüente de todos, o músico e amigo João Paulo Maradei, se foi também  levou com ele parte da memória da dupla.

Na segunda metade de 2010, foram completados dez anos que Jair partiu, precocemente, aos 46 anos. Através de uma iniciativa própria, que encontrou guarida imediata do secretário de Cultura Carlos Pinto e de toda a turma da Secult, alguns amigos se reúnem na próxima sexta-feira (18), para uma homenagem singela e afetiva à sua obra e memória. No palco do Theatro Guarany, a partir das 21 horas, para apresentar as suas composições, vão se revezar os músicos Lincoln Antônio (com Juçara Marçal), Luiz Cláudio de Santos e eu, três dos seus parceiros mais constantes. Além disso, entre estas apresentações, Beatriz Rota-Rossi, Gilson de Melo Barros, Luiz Cancello, Luiz Soares, Roberto Martins e Valdir Alvarenga, pessoas ligadas à vida e à obra de Jair, vão lembrar algumas de suas histórias e de seus textos.

Será, enfim, uma celebração à vida tão intensa e à obra tão presente ainda de um grande amigo. Mas será, também e principalmente, um reconhecimento tardio a um artista de suma importância para Santos e para o Brasil.

E este reconhecimento é tardio não porque nenhum dos envolvidos houvesse pensado em fazê-lo antes. Mas sim porque Jair, se ainda estivesse vivo, jamais iria deixar que se fizesse uma coisa dessas.

Ou, pelo menos, iria fingir que não deixaria.

Reprodução parcial da página de A Tribuna com a matéria

Sinceramente

O Jogo da Maré

Leva vela lenta

branca vela leva leve

leva ao mar

que ventre verde vale

que mais vale um gosto

que os meus heróis cansados de velar

o sono da cidade

brinca barco brinco d'água

venta vela ventarola

rola a onda anda vela

ventarola joga

o jogo da maré

 

Meridiano

deixa que tudo passe

como por um meridiano

que tudo tenha lugar

no meio do mundo.

que tudo venha e vá e vá e vá

e volte e venha

como se obedecendo à rotação e à translação

como um aval de valsa

um rodopio que estonteie.

deixa que tudo seja assim.

que tudo permaneça

como se não tivéssemos tentado a circunavegação

como se não tivéssemos todo o tempo.

como se não nos favorecessem os ventos.

como se as coisas dependessem do que fossem.

 

Stela Extrema

Stela Extrema

stela inteira

em lume enlanguescida

aqui em baixo eu oro pela vida

de todos os que sofrem e pela tua

e choro o pulsar da luz tamanha que brilha

ora serena ora medonha

e a fímbria que te veste quando és nua

explode o fogo eterno dos caprichos

e queima lentamente pelos nichos

aos santos e aos poetas dos brasis

guia na tua rota exuberante

em que gravita tudo o que é bastante

os povos que te seguem enquanto ris.

Cartaz de divulgação do espetáculo, enviado a Novo Milênio pela Internet em fevereiro de 2010

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