O silêncio desce sobre Cacilda Cacilda
Becker faleceu ontem, às 10 horas, no Hospital São Luís onde estava internada há 38 dias, precisamente desde 6 de maio, quando fora acometida
por um derrame cerebral num dos intervalos de peça Esperando Godot, na qual fazia o papel principal.
A noticia de sua morte provocou intensa comoção nos meios teatrais de todo o país
e manifestações de pesar do governador Abreu Sodré e do prefeito Paulo Maluf. O corpo de Cacilda Becker - que nasceu em Piraçununga, há 48 anos
- está sendo velado na capela dos dominicanos, para onde foi levado às 14 horas. Seu sepultamento será realizado hoje, às 11 horas, no Cemiterio
do Araçá.
Uma vida para o teatro
— Zimba, nós vamos ter um trabalho infernal.
Era assim que Cacilda Becker dizia para Zienbisnky, sempre que se iniciavam os
ensaios de uma peça. Zimba era o tratamento afetuoso para o ator e diretor, que a ajudou a se tornar a primeira atriz do teatro brasileiro.
— Ela dizia que teriamos um trabalho infernal mas dizia com um brilho de alegria
nos olhos. Sempre teve um fogo sagrado ardendo dentro daquele corpo fragil, uma paixão mistica pelo teatro.
A vida de Cacilda Becker foi a historia de uma vontade apoiada em nervos e
coragem e inteligencia. Sua carreira se confunde com a propria evolução do teatro moderno brasileiro, que ela enriqueceu com seu talento de
atriz no impecavel desempenho de papeis dificeis e na encenação de algumas das obras da dramaturgia contemporanea.
Uma mulher pertinaz, que levou ao palco a romantica Marguerite Gauthier, a
Dama das Camelias, a toxicomana Mary, de Longa Jornada Noite a Dentro, a neurotica Marta, de Quem tem medo de Virginia Woolf,
ela foi brutalmente surpreendida entre um ato e outro, no dia 6 de maio, de Esperando Godot, na qual representava Estragon, ao sofrer um
derrame cerebral.
Paulista de Piraçununga, Cacilda Becker nasceu em 1921. Cedo, conheceu a pobreza
que não deveria abandoná-la durante anos. Ela e as irmãs Cleide e Dirce ficaram com a mãe quando os pais se separaram. Juntas, vieram para
Santos, onde a vida era dificil. Mesmo assim, Cacilda conseguiu fazer os estudos de ballet, sua primeira vocação artistica. Antes do
teatro, um diploma de professora e, em São Paulo, o emprego de escrituraria numa firma de seguros.
Com 20 anos, vai para o Rio disposta a iniciar a carreira de atriz. Supera as
dificuldades, domina a propria fragilidade e conquista uma oportunidade no teatro, que só deixaria atingida pela adversidade. Do palco Cacilda
só sairia, anos mais tarde, carregada de maca, para o hospital.
Cacilda Becker começa a afirmar-se como atriz em 1941, na companhia de Raul
Roulien. Ela, Raul e Laura Suarez interpretam Trio em Lá Menor, de Raimundo Magalhães Jr. Antes, por parte do elenco do Teatro do
Estudante, na montagem de Hamlet, dirigida por Paschoal Carlos Magno.
Quando o teatro paulista começa a pretender profissionalizar-se, Cacilda Becker
regressa a São Paulo em 1943 e integra-se no Grupo Universitário de Teatro, fundado por Decio de Almeida Prado.
Faz rádio-teatro para sobreviver mas é ao palco que ela entrega a força de sua
excepcional capacidade de trabalho e sua viva inteligencia. No GTU participa de três montagens: Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente;
Irmãos das Almas, de Martins Pena e Pequeno Serviço em Casa de Casal, de Mario Neme. Regressa ainda ao Rio para trabalhar com
Os Comediantes, grupo responsavel por uma verdadeira revolução no panorama teatral brasileiro. Com eles, dirigida por Zienbisnky, que a
conhecia desde 1943, participa da remontagem da peça O Vestido de Noiva, em 1946, no papel de Lucia, ao lado de Olga Navarro e Maria
Della Costa.
Zienbisnky evoca o entusiasmo de Cacilda: "Lembro-me dela, uma moça que não
comia, tinha a fragilidade de uma flor de estufa. Alimentava-se com um ovo cru e um pedaço de carne. Chegou a pesar 42 quilos. Ela nos
preocupava. A Cacilda Becker que todos conheceram nos ultimos anos era robusta perto daquela mocinha que conheci. Mas ela tinha a dedicação mais
absoluta ao teatro, ao fenomeno de teatro, ao amor do teatro."
O salto - Em 1948, Zienbisnky passou a integrar o elenco de Maria Della Costa, que acabara de fundar seu Teatro Nacional Popular, no Rio.
Cacilda veio para São Paulo onde duas iniciativas importantes davam novo impulso ao teatro: a fundação do Teatro Brasileiro de Comedia,
resultado da fusão do Grupo Universitario de Teatro com o Grupo Experimental de Teatro, dirigido por Alfredo Mesquita que, no mesmo ano, fundou
a Escola de Arte Dramatica de São Paulo, estabelecimento pioneiro no ensino de teatro no Brasil. Cacilda Becker foi lecionar interpretação na
EAD e entrou para o TBC como a primeira atriz contratada em carater profissional.
O primeiro espetaculo do TBC foi A Mulher do Proximo, de Abilio Pereira de
Almeida. Iniciava-se um dos periodos mais fecundos do teatro paulista. Cacilda Becker ingressou no movimento interpretando o principal papel no
espetaculo inaugural do TBC. Acompanhou toda evolução da nova companhia que se profissionalizou definitivamente graças ao industrial Franco
Zampari que lhe imprimiu novo ritmo, realizando de quatro a cinco montagens por ano e contratando diretores estrangeiros que contribuiram
decisivamente para a elevação do nivel tecnico e artistico do teatro paulista. Contratou ainda Zienbinsky como ator e diretor. Cacilda Becker
esteve em quase todas montagens dessa epoca. Aparece em Nick Bar, de Saroyan, em Antigone, textos de Sofocles e de Anouilh, em
Dama das Camelias, de Dumas, e em Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams.
Zienbinsky dirigia espetaculos que eram apresentados às segundas feiras. Em
carreira normal, a semana inteira, seu primeiro espetaculo foi "Paiol Velho", de Abilio Pereira de Almeida, com Cacilda Becker. Mas, nas sessões
das segundas a dupla criaria o espetaculo que se constituiria um dos maiores exitos de suas carreiras: Pega Fogo, de Jules Renard. A peça
fêz tanto sucesso que entrou em carreira normal e ficou em cartaz muito tempo. Anos depois, em 1960, Cacilda remontou Pega Fogo,
apresentando-se no Teatro das Nações, em Paris. A critica francesa apontou-a como uma atriz extraordinaria.
O TBC entrou em declinio a partir de 1955. Os diretores italianos regressaram à
Europa enquanto os atores mais famosos fundavam suas proprias companhias. Cacilda e Valmor Chagas alugaram o teatro da Federação Paulista de
Futebol e inauguraram o Teatro Cacilda Becker. Estavam no elenco, Zienbinsky, velho companheiro e sua irmã Cleide Yaconis que tambem iniciara
carreira no TBC e se firmava como atriz de talento.
O novo grupo estreou com O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna. Cacilda
ficou com um papel secundário para que a irmã fosse a protagonista. Seu repertorio foi crescendo com as encenações de Longa Jornada Noite a
Dentro, de O' Neil; O Protocolo, de Machado de Assis; Maria Stuart, de Schiller, Santa Marta Fabril, de Abilio Pereira
de Almeida; Raizes, de Arnold Wesker; Oscar, de Claude Magnier; Os Rinocerontes; A Visita da Velha Senhora, de
Durremah; Cesar e Cleopatra, de Bernard Shaw; A Noite de Iguana, de Tenessee Willians; Quem tem medo de Virginia Woolf?,
uma das melhores interpretações de sua carreira; Isso Devia ser Proibido, de Braulio Pedro e Esperando Godot, de Samuel Becket.
Zienbisnky rememora a fibra de Cacilda Becker em seus trabalhos: "Ela era
impressionante. Para fazer o garoto de Pega Fogo enfaixava a região dos seios com tiras largas de esparadrapos. Depois de uma semana de
representação, a pele saiu e ficou a carne viva. Ela teve de se enfaixar com tiras de pano. Cacilda sempre fêz esses sacrificios. Quando
montamos Maria Stuart sofreu dores nos rins porque a roupa era pesada demais e a peça durava 3 horas e 15 minutos. Aos sabados fazia três
sessões e, no domingo, duas. Exauria-se de cansaço. Representou Arsenico e Alfazema gravida de sete a oito meses. Esta é a Cacilda Becker
que conheço há quase trinta anos".
Um cargo dificil - Em 1968 Cacilda suspende as atividades da sua companhia para presidir a Comissão Estadual de Teatro, um cargo dificil,
com implicações e problemas que desafiavam uma mulher que sempre se considerou atriz, e apenas atriz. Fêz o possivel para ser a mediadora entre
classe teatral e o governo. Mas, nos momentos de crise, seu cargo, que desempenhou com inquebravel dignidade, não a impedia de ladear, com a
mesma dedicação, os seus companheiros de profissão. Ficou no cargo até o momento em que julgou ter cumprido sua tarefa.
Voltou ao teatro, este ano, aceitando um novo desafio. Representar, sob a direção
de Flavio Rangel, o vagabundo Estragon de Esperando Godot. O papel exigia uma interpretação impecavel. Cacilda superou-se a si mesma. Sua
presença no palco, ao lado de Valmor Chagas e de seu filho Luís Carlos Martins, que estreava no teatro, era citada como um dos acontecimentos
importantes da temporada teatral do ano.
Cacilda Becker foi a nossa primeira e grande atriz até a ultima fala do 1.o ato
de Esperando Godot, na tarde de 6 de maio. Não voltou para o segundo ato. Saiu do camarim carregada para o hospital. Só o derrame
cerebral pôde vencer a força contida naquele fisico delicado.
Resta o palco vazio, a cena cortada e a lembrança de uma atriz que mereceu o
apaixonado elogio do critico francês Michel Simon ao vê-la em Pega Fogo: "Cacilda Becker vem de muito mais longe do que seus dez anos de
aprendizagem em sua arte, porque é um monstro do teatro, como De Max, Gaby Morlay, Charles Chaplin, Jean Louis Barrault ou Charles Laughton. Ela
é medium, mãe dos Santos, do orixá do teatro. Basta ela aparecer que a magia se opera. Pessoalmente tenho a pretensão de me haver tornado um
duro, um empedernido, um desconfiado do palco. Conheço-lhe o mecanismo. Pois bem, chorei como uma Madalena arrependida assim que o pano se
levantou e vi aquele rosto amaciado, aquele olhar em virgula (como nos desenhos de Poulbot), aqueles gestos pletoricos de garoto infeliz e
arrogante. Ela ainda não tinha aberto a boca e eu já estava possuido ("como um rato na ratoeira", diria Sartre). Enfim, ela é Poil de Carotte.
Poil de Carotte não pode ter mais, para mim e para muitos outros, de agora em diante, outro rosto senão o seu."
Velorio entre os dominicanos, seus admiradores - Às 14 horas de ontem, o corpo de Cacilda Becker é levado para o velorio na capela dos
dominicanos, que sempre foram seus admiradores.
Vinte minutos depois, o esquife é colocado na capela da rua Caiubi. As portas são
fechadas para armas o velorio. Na escadaria, parentes, gente de teatro e admiradores. Mais quinze minutos e chega o aviso de que todos podem
entrar.
Nas primeiras cadeiras ficam Walmor Chagas, Maurice Vaneau, Luís Carlos Martins, Fredi Kleeman, Leonardo Vilar, Benedito Corsi e Flavio Rangel.
O silencio é quebrado quando chega da. Alzira Becker, mãe da atriz; amparada por
Cleide Yaconis e Osmar Rodrigues Cruz, ela sobe a escadaria com dificuldade, sempre exclamando "onde ela está, onde ela está?"
Cantata de Bach - Da. Alzira só pode ficar alguns minutos junto ao caixão onde, de rosto tranquilo e sem aparentar ter passado por
sofrimento ou dor, está Cacilda Becker.
A mãe da atriz chora muito. Norma Grecco corre em busca de um copo de agua com
açucar. Depois, todos da familia acham melhor retirar da. Alzira do local. Ela se afasta após muita insistencia. O diretor Maurice Vaneau põe em
funcionamento a fita magnetica com uma cantata de Bach. Musicas funebres prosseguem o tempo todo.
Abreu Sodré - O governador Abreu Sodré chegou ao velorio às 17h30.
Mais tarde, distribuiria a seguinte nota: "Perco uma grande amiga. Os artistas perdem uma grande lider e o povo brasileiro uma grande
interprete. Extingue-se um grande talento. Fica um grande exemplo."
O governador determinou que seja dado o nome de Cacilda Becker ao
teatro-auditorio da TV-Cultura. Disse tratar-se de uma homenagem "à grande atriz do teatro brasileiro, cuja consciencia profissional é exemplo
de coragem, de lucidez e de intrepido espirito de defesa da nossa arte e da nossa cultura".
Afirmou ainda que ele e sua mulher, pessoalmente, perderam "a amiga de tantos
anos a quem afetuosa e orgulhosamente, tanto admiravamos e estimavamos". Concluiu dizendo que com a morte de Cacilda "perdeu a cultura
brasileira um de seus testemunhos de inteligencia, arte e sensibilidade que se perpetuarão sempre na nossa lembrança e no nosso coração".
Klabin Segall - O presidente da Caixa Economica Estadual, Oscar Klabin
Segall, que acompanhava o governador, disse: "Cheguei de viagem esta madrugada e fui, pela manhã, surpreendido com a triste noticia da morte de
Cacilda Becker. Dias atrás, em Paris, os criticos franceses me perguntavam sobre o estado de saude da atriz, cujo nome ganhou dimensões
internacionais. Venho prestar minha ultima homenagem àquela que levou o nome do tetro brasileiro alem de nossas fronteiras e que era a grande
representante da classe teatral".
Laudo Natel - O ex-governador Laudo Natel disse: "Venho prestar minha
ultima homenagem à grande dama do teatro brasileiro".
Odete Lara: "Tinha fé na recuperação de Cacilda. Aprendi a admirá-la por sua obra
e por sua personalidade na vivencia que tivemos. A perda é irreparavel".
Fredi Klemann: "Cacilda morreu no palco como talvez ela quisesse. Trabalhei com
ela 20 anos e com ela vai-se uma parte de nossa vida. Sua morte assinala o fim de uma epoca do teatro brasileiro: a epoca da renovação".
O sepultamento - Cacilda Becker faleceu aos 48 anos. Foi casada em
primeira nupcias com o jornalista Tito Fleury, e atualmente estava separada de seu ultimo marido, o ator Valmor Chagas. Deixa a mãe Alzira
Yaconis Becker (seu pai Edmundo Radamés Becker é falecido), o filho Luís Carlos, do primeiro matrimonio, e as irmãs Dirce e Cleide Yaconis, esta
tambem conhecida atriz de teatro. Deixa ainda uma filha adotiva, Maria Clara.
Seu sepultamento dar-se-á hoje, saindo o feretro às 11 horas, da igreja de São
Domingos, rua Caiubi, para o cemiterio do Araçá. |