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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (18)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Agenor de quê?

Graciema sai, pálida e abatida, no elevador branco da Santa Casa. Uma enfermeira carrega nos braços a pequena Terezinha.

Em frente à portaria, despedem-se: que Deus lhe pague, dona Maria!

- Amem, dona Graciema. Muitas felicidades para a senhora e para a pequerrucha.

Passa-lhe o embrulho de roupas, onde se mexem bracinhos agitados. Graciema aconchega-o ao seio, desce a escadaria, lentamente, porque a doce carga é pesada demais para as suas forças.

Alguém se põe ao seu lado e fala: dona Garciema, deixe a criança que eu carrego.

Olha: é o seu Agenor, que quis namorá-la, antes do Praxedes.

- Não precisa, seu Agenor, muito obrigada.

Caminha sobre os paralelepípedos novos do jardim, mas vacila a cada passo. O homem volta: a sinhora não pode, deixe que eu levo.

Graciema tem medo de cair e matar a Terezinha. Entrega-a. Agenor até tem jeito para carregar criança!

Vão caminhando, devagar: eu saindo hoje também. Levei c'o a ponta dum vime na cabeça, aqui. - Mostra os esparadrapos colados à cabeça rapada num grande círculo. - O Florenço, coitado, levô o diabo. Morreu pertinho de mim, conversando.

Graciema não sabia: morreu, o seu Florenço? Coitada da dona Augusta! Cinco filhinhos!

Agenor sacode a cabeça, num gesto de pena. Graciema fica pensando: dona Augusta agora é viúva, os filhos dela não têm pai. Terezinha também não tem pai, e eu não sou viúva...

O estivador indaga: que bonde vai tomá?

- O 5, lá na Praça Mauá. Vou para a casa da minha madrinha, dona Hermenegilda, morar com ela. - Baixou os olhos. - O pai não me quer mais em casa, porque eu fui tirar a queixa na polícia.

- A sinhora não agüenta i a pé até lá, dona Garciema. Eu vô chamá um artomove.

- Não precisa, seu Agenor. Muito obrigada - eu vou bem assim.

É mentira. Graciema não vai bem: chegou ao portão do hospital e não pôde mais consigo. Encostou-se no muro, porque tudo ficou baralhado, e sentiu um vazio na cabeça.

- Chi! A sinhora está branca, branca! Se assente aí na grama, dona Garciema. Eu vô chamá um carro.

Ajuda-a a sentar-se num canteiro, encostada a uma palmeira, e vai com a Terezinha ao colo buscar o auto. Agenor escolhe um Buick cinzento, grande, todo fechado com vidros: é o mais bonito da agência. E confortável! Roda, mas parece que anda pisando nuvens e não pedras da rua.

O carro sobe a rampa do portão, estaca junto à moça. Agenor abre a porta do Buick e ajuda Graciema a entrar. Ela se deixa cair no banco estofado de pano-couro azul: afundou em algodão! Que macieza! Então no mundo pode haver coisa macia assim? Pode, agora está acreditando!

O Buick roda, silente e suave, rumo às ruas esburacadas do Macuco: lá é que Graciema quer ver se as molas são boas, mesmo!

- Dona Garciema, já registô a criança? Não? Pois tem que registá, senão ela fica sem nome.

- O pai não quer saber de nós: madrinha falou com ele, depois que saiu da cadeia, não adiantou. Não quer saber de nós!

- É o diabo! A criança - é minina? - pois a minina não vai pai? Isto é muito mar feito! Precisemos arranjá um pai p'ro registo. Senão cumo é? Ela há de crescê, um dia fica muié, percisa casá... e onde vai arranjá os papés? Não tem nome no cartório, vão pensá mar dela e da mãe dela, Garciema! Isto é muito ruim, veja lá!

Graciema chora, baixinho: que há de fazer? O Praxedes não quer saber delas duas!

Agenor pigarreia. Vai falar alguma coisa que lhe custa a passar na garganta. Pigarreia: Garciema!

O seu tom é de discurso: é grave, solene, quase áspero. Parece que vai dizer descomposturas, mas o coração está lá por dentro assim: toque-toque-toque-toque, à disparada.

Graciema olha-o, meio assustada. A criança também se assustou, desanda num berreiro.

- Garciema!

Agenor eleva a voz, mas Terezinha também eleva o choro. A moça espera, encolhida a um canto - que será, meu Deus?

A criança grita, vermelha do esforço. Agenor é teimoso, há de gritar mais alto:

- Garciema! Se você qué, eu caso com você!

O chofer olha para trás - que gritaria! Vão ver que o preto está bêbado!

Graciema fica pálida, mais pálida ainda, parece que vai ter a tontura, outra vez. Terezinha berra cada vez mais.

Agenor grita, mais forte que o choro dela:

- Registo a criança hoje mesmo, fica sendo minha fia!

Graciema pensa em Praxedes: ele ainda pode voltar, ela gostou dele... Quem sabe se ainda...

- Desculpe, seu Agenor, mas o senhor compreende, eu não posso.

O estivador acalenta a menina, que se acalmou aos poucos.: não há de a sua úrtima palavra. Você refrita, Garciema, otro dia me diz!

O auto chegou à casa de dona Hermenegilda. O chofer abre a portinhola.

Agenor se lembra: já venceu o prazo do registo, Garciema! Agora, se quizé... si quizé, Garciema, eu arranjo as testemunha, eu registo ela como fia minha. Você não percisa ficá com compromisso nenhum... Si quizé, um dia, eu caso. Sinão, ao meno esta minina fica c'um nome: é de home de cor porém sem entrada na poliça! - Bate no peito com orgulho - Não tem entrada na polícia nem por bebedera, Garciema!

O Praxedes pode não voltar - ele nem quis saber da filha... A menina não terá nome, não terá os papéis para entrar na escola, para se registar na Associação Beneficente dos Estivadores de Santos, para um dia, poder casar...

Mal comparando, na vida é como no jogo do bicho: os bichos que entram no jogo têm um número - 1 é avestruz, 2 é águia, 23 é urso, 15 é jacaré. A gente não pode jogar no sabiá ou no tatu porque eles não têm número, ficam de fora do jogo. Gente sem nome fica de fora da vida, não entra em jogo, não tem direito a nada - é como o sabiá e o tatu no jogo do bicho.

- Olhe, seu Agenor, pode levar a menina e registar ela, sabe?

Agenor pensa também que é preciso apresentar a criança no cartório, para provar que ela nasceu mesmo, e por isto ajeita Terezinha no colo, trepa no Buick, bate a portinhola.

Numa nuvem de poeira, o automóvel parte. Graciema fica na calçada, só, desolada, tonta.

Mas, afina, que nome terá a sua filha? Só conhece o estivador por "seu Agenor". Agenor de quê?


Um canto da Bacia do Mercado, por volta de 1940

Foto enviada a Novo Milênio por Ary O. Céllio