Dádiva excêntrica
A Filinto de Almeida
Nada neste mundo me agita o seio senão o
teu amor
Lenda de S. Pedro o Confessor - IX
Vivia no Aqueronte, o inferno dos poetas,
Na grande solidão dos meus grandes
pesares,
Não me vinham banhar de teus olhos os
luares,
Nunca tiveram fim minhas mágoas secretas.
Tu moravas no céu, aonde, broslado a
rosas,
Mais macio que a flor da trapoeiraba, o
louro
Sol vomitava ao azul grandes golfadas de
ouro
E cantava canções gentis e luminosas.
Eu quis ver e quis dar-te original
presente:
Pus meu coração numa esfera de neve
E parti. Mas, que longa e terrível a
breve
Viagem que eu fiz com toda a fé de um
grande crente
Quando, enfim, terminei a penosa jornada
Vi teu vulto assentado em belo slio
rubro,
Tinhas todo o frescor dos pomares de
outubro
E havia em teu olhar a luz de uma
alvorada.
De tua boca eu beijei a rubida caçoula
Cascateando volúpia; os dentes pequeninos
Mostravas, descolando os lábios
coralinos:
Eram pedras de gelo em cálix de papoula.
Aproximei-me e a esfera eu levava
orgulhoso,
E ao abri-la notei que dentro nada
estava,
Começaste a sorrir e a tua mão apontava
Para o tímido seio, a palpitar,
medroso...
Célere tu rasgaste o corpete apertado,
E vi saltarem dele outras duas esferas
Aonde havia o calor das nossas primaveras
Que dão vida e dão luz ao trigal
alambreado.
Apontaste de novo os pomos. O desejo
De os beijar e morder invadiu a minha
alma
Tinhas tu no semblante indefinida calma
E errava em minha boca a saudade de um
beijo.
Procuras por acaso a tua dádiva? Como?
Eu guardei-a comigo, ah! que joia
adorada!
cheia de religião, em esta urna
sagrada...
E mostraste-me o seio. A flor do cinamomo
Nunca teve um olor tão penetrante e suave
Como o teu seio, loura, aonde guardaste,
amante,
O coração feliz que em teu colo radiante
Foi amar e viver mais alegre que uma ave.
O sol cantava no alto, o sol fulgido ria,
Todo o céu era azul, como azul é a
turquesa.
Foi-se as asas batendo a lúgubre tristeza
Para trás, para trás, atra melancolia!
Desde então eu não vivo em o inferno dos
poetas,
Na grande solidão dos meus grandes
pesares,
Pois já me vêm banhar de teus olhos os
luares
E se foram de todo essas mágoas secretas.
Angelo de Souza.
(Das Campânulas)
Imagem: reprodução parcial da pág. 1 de A
Província de São Paulo de 3/5/1892 (Acervo Estadão) |