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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 47

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada em seis partes, em setembro de 1945: na página 5 da edição do dia 16, na página 5 do jornal do dia 23, na página 5 da edição do dia 30 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 da edição de 16/9/1945 com o texto

O elefante

I

Para contar as façanhas de humilde elefante, tenho de repetir a história daquela brilhante embaixada que Portugal mandou a Itália, no ano da graça de 1514, tal como a li em Damião de Góis, Manuel Bernardes, marquês de Rezende (da nossa Rezende fluminense, que fica cor de rosa quando as paineiras estão em flor), pinheiro Chagas no V volume da sua Historia de Portugal e, mui recentemente, no artigo que o professor Silveira Bueno deu a lume neste jornal..

Como é sabido, a dinastia de Aviz, como é dos livros, deu a Portugal famosos monarcas, uns pelo engenho, outros pelo desvario das paixões. Mas, o que reinou na aurora do século XVI e presidiu a grandes descobrimentos, sobrelevou-se aos demais por uma circunstância fortuita: a sorte. Esse foi dom Manuel I, que ficou na História como – o Venturoso.

Era ele, segundo as descrições que nos legaram cronistas do tempo, homem de estatura meã, cabeça redonda, cabelos compridos para a nuca mas cortados em franja na testa, barba intonsa, arrepiada, cobrindo-lhe as faces e o queixo arredondado. Seus olhos eram pequenos, inexpressivos, permitindo-lhe disfarçar os sentimentos que lhe iam pela alma, fosse quando beijou a mão do real tio, ainda tintas do sangue de seu irmão, fosse nas mil vezes em que retribuiu com agravos aos que melhor o serviam.

Descoberto o caminho das Índias, entregue a terra de Santa Cruz ao marrano Fernão de Noronha, que pagava à Coroa um quinto das explorações de pau-brasil, trucidados e espoliados convenientemente os cristãos-novos, cujos filhos eram espalhados pelas terras do reino, para serem educados segundo os preceitos da doutrina cristã, o rei não sabia como encher o tempo.

O povo de Lisboa via-o chegar aos paços da Alcáçova, ainda assombrado pelos fantasmas de dom Pedro e dona Inês. Durante uma semana, ele arrastava a sua inquietação pelos corredores escuros e pelas salas ermas. Tudo era paz, mas a paz não lhe entrava na alma. Quando os seus súditos acreditavam que ele ali permanecesse vários meses, ei-lo que fazia uma surpresa e, pela madrugada, ouvia-se o trote dos cavalos nas pedras do caminho. E a cavalgada madrugadora lá se ia ao som das charamelas, em direção do Paço de Xabregas, em visita à sua irmã dona Leonor.

A grande rainha, desde a morte trágica do filho, de 16 anos, atirado às pedras do Almeirim por um poldro desbriado, desde a morte do real esposo em circunstâncias tais que levaram bocas malévolas a rosnarem contra ela, retirara-se para o Paço de Xabregas, ao pé do Convento da Madre de Deus, e se vestira de "mui baixo pano negro", acabando mesmo por envergar o hábito das Claristas, esquecendo as suas mágoas para dedicar-se ao alívio das dores alheias.

Numerosos artistas se inspiraram nessa figura grave e bela, voltada para as coisas do céu. A Corte estava cheia de pintores e homens de letras. Dom Manuel, como bom rei da Renascença, mandara alguns pintores para a Itália, a fim de estudarem com Miguel Ângelo. Gil Vicente, lavrante da rainha, fundara com seus autos o teatro português. E a imagem da rainha foi fixada para sempre num quadro que se encontra na capela das Misericórdias de Coimbra. O pintor anônimo retratou-lhe a testa ampla, os olhos negros e rasgados, os lábios carnudos, mas toda ela ressumbrando piedade e tristeza. Confunde-se esse retrato com as imagens das santas que a cercam. E, se assim era retratada, aquela muito mais poderia ser.

Era a protetora dos pobres, dos enfermos, dos artistas e dos letrados. Gil Vicente brindou-a com taças de ouro e, numa noite de representações, com o Auto de São Martinho, que dedicou à "mui caridosa e devota Senhora e Rainha Dona Lionor, na Igreja das Caldas". Foi ela quem animou os primeiros ensaios da imprensa em Portugal, fazendo imprimir, ainda no século XV, a Vita Christi e outros livros piedosos. A ela, também, devem-se as famosas capelas imperfeitas da Batalha e esse estilo arquitetônico em que entram as peças do navio e que, mais tarde, deveria chamar-se manuelino.

Um dia, porém, apareceu-lhe um certo frade de Segóvia, o famoso irmão Miguel Contreras, que, já velho, iniciou obra de muita caridade, abrindo casas e organizando modestas enfermarias, nas quais eram tratados os pobres que morriam à míngua nos pátios das igrejas ou debaixo dos arcos do Rossio.

A rainha viu naquilo a indicação de um caminho, deu-lhe prestígio e ouro. Depois, chamou a si a obra, fundou o Hospital de Todos os Santos, no que, segundo parece, veio a inspirar-se aquele português que, chegado a São Vicente, fundou a Santa Casa de Santos, estabelecimento de solidariedade internacional e que deu nome à cidade nascida à sua roda. A rainha não esmoreceu. Fundou as Misericórdias de Lisboa, instituição bem portuguesa, que os portugueses, no seu eterno jornadear, espalharam pelo mundo.

A companhia daquela santa velha, rodeada de frades e mendigos, não devia agradar ao rei. Ficavam horas inteiras sentados, um diante do outro, em poltronas de altos espaldares, luzentes de pregarias. Ele falava da terra, da sordidez dos marranos, dos servidores que procuravam alçar voo, mas a quem ele, com jeito, apararia as asinhas... Ela parecia ausente, respondia-lhe com as obras da sua Caldas, com as Misericórdias, com o amparo àquele povo chão, esfarrapado, cabeludo, encardido, mas de alma heroica e boa. Afinal, não se avinham.

Por isso, numa certa manhã de névoa pelas encostas e ouro diluído no Tejo, o rei e seus fidalgos sobressaltavam as monjas do Convento da Madre de Deus com o estrépito de seus cavalos, com a música das charamelas, e tocava para os paços de Almeirim, do outro lado do rio, defronte de Santarém.

Era lá, à sombra das torres quadradas, que o rei se sentia bem. Ocupava-se na caça ao javali, na pesca às enguias, esbofava-se a estourar em danças e cavalhadas. E, quando as tardes estavam frescas e o sol parecia crepitar nas faias e incendiar os campos marchetados de flores silvestres, ele tomava a avenida dos pinhais, dirigindo-se às bordas do Tejo. Ia admirar as naus que vinham de longe, de ouras terras, de outros mares.

Debruçado sobre a muralha de pedra, aveludada de musgo, não raro estrelada de corolas, o rei assistia à passagem das primeiras naus que procediam das Índias, carregadas de tecidos, noz-moscada, sândalo, aljôfar, sementes de pérolas que se empregavam nos ornatos da Renascença, peles, madeiras preciosas, resinas capitosas, pedrarias raras, metais ricos, aves de plumas deslumbrantes, animais estranhos, alguns de grande ferocidade, raízes medicinais, e especiarias queimantes para condimentar as viandas dos banquetes. As velas batidas pelo vento do mar arrastavam os navios contra a corrente, para o ancoradouro da Ribeira.

Certa vez, estava ele perdido nessa contemplação das suas riquezas, quando viu passarem entre duas faias, cavalgando animais em pelo, seu filho o príncipe dom João, de 12 anos, e um jovem, também dom João, mas dom João de Barros. O rei sobressaltou-se e, chamando-os para junto de si, admoestou o principezinho:

- Senhor, meu filho, quero lembrar-vos de que foi ali, naquele carrascal, que, numa correria semelhante, tombou o vosso primo dom Afonso, de 16 anos, e disso veio a morrer. A morte está a negacear-vos das faias...

O principezinho riu, vexado. O rei dirigiu-se, então, ao fidalgo, seis anos mais velho do que o filho, e que o acompanhava nos desatinos. Exprobrou-o meio grave, meio folgazão:

- E vós outro, senhor dom João de Barros, meu roupeiro, melhor andaríeis vós se fosseis para a banca de trabalho, tomásseis da vossa pena de pato e vos entregásseis à escrita do vosso romance... Como se chama ele?

O cronista in herba respondeu, enleado:

- Clarimundo...

E, como a entrevista fosse dada por finda, o moço e o menino puseram-se em caminho dos paços, levando os cavalos pela frente.

Dom Manuel, ficando só, voltou às suas preocupações. Era preciso pôr cobro à contínua ameaça dos sultões contra as suas terras do Oriente. Ainda, havia pouco, Málaca
(N. E.: antigo sultanato, atualmente parte da Malásia) vira-se cercada pelos turcos e, não fora a valentia de Afonso de Albuquerque e sua aguerrida gente, lá se ia para os infiéis a nobre e rica cidade. Por outro lado, o clero português, sentindo as influências que envenenavam o ar da Renascença, enriquecia e, enriquecendo, se desmandava.

Por todo o país erguia-se um clamor de protesto. O próprio Gil Vicente, tão cortesão, tão maneiroso, com a sua figura de veneziano, compusera um Auto da Feira, no qual havia censuras quase desbocadas à conduta dos clérigos. Era preciso reformar a Igreja. Não fosse ela própria a corrigir-se, dentro de pouco essa animosidade seria aproveitada e, algures, surgiria mais um cisma...

Como entender-se com o Santo Pontífice sobre assuntos de tanta relevância, de tanta urgência? Em resposta a essa pergunta, veio-lhe a ideia de mandar uma embaixada a Leão X que, pouco antes, havia recebido a tiara e deslumbrava o mundo com a grandeza da corte pontifícia. Estava-se no fim de 1513. Depois de, mentalmente, passar em revista os seus vassalos, o rei voltou aos paços, chamou um cavaleiro e expediu apressada ordem a Tristão da Cunha, que se achava em Lisboa com os filhos.

Na noite seguinte, quando o rei saboreava uma corça por ele mesmo abatida nos bosques próximos, um cavaleiro chegou ao castelo com estardalhaço, entregou as rédeas ao primeiro moço de cavalaria e grimpou pela escadaria, fazendo tinir nas lajes as rosetas das esporas. Ao verem-no assim esbaforido, os aios, fâmulos e áulicos da casa afastaram-se para deixar-lhe o passo livre. Todos o conheciam. Era fidalgo de muito valimento. O rei recebeu-o à mesa, com toda a família, trinchando um quarto da preá, que estava dourada, tenra e cheirava a especiarias da Ásia.

- Assentai-vos, senhor dom Tristão da Cunha.

Como o fidalgo hesitasse, insistiu:

- Sentai-vos. Vo-lo peço e mando...

Tristão da Cunha sentou-se, a espada entre os joelhos, o chapéu de pluma sobre os copos da espada. Um pajem trouxe-lhe, em bandeja de prata, pichel de prata, cheio de vinho. O rei ainda chuchurriou por algum tempo os ossinhos da corça, depois, chupando com ruído as pontas dos dedos, esvaziou o quartilho de ouro que estava à sua frente e voltou-se para o recém-chegado:

- Senhor dom Tristão da Cunha, preciso dos vossos serviços. Descobristes algumas ilhas do Oceano, às quais dei o vosso nome. Agora, sois chamado a tentar para o reino outras conquistas...

O velho navegador levantou-se, inclinou a cabeça diante do soberano. As pessoas, que andavam pela sala, ou conversavam em grupos, morderam-no com os olhos da inveja. E dom Manuel prosseguiu:

- Deveis escolher na Corte e fora dela os membros de uma embaixada que, sob as vossas ordens, irá a Roma levar um presente magnífico a Sua Santidade e, ao mesmo tempo, pleitear junto ao rei da Cristandade alguns benefícios para Portugal.

O fidalgo inclinou-se novamente. Dom Manuel, então, expôs os seus projetos, projetos que concertara e aprimorara naquelas tardes em que ficava debruçado sobre as muralhas da borda do rio, admirando as naus que por ele subiam em demanda do ancoradouro.

Feita a avença, Tristão da Cunha foi beijar a mão do soberano e agradecer a mercê de o haver escolhido para missão de tamanha importância. E o rei, meio sério, meio a rir, fez alusão a um fato ocorrido havia anos:

- Agora, senhor, não tenteis ficar cego novamente, como ocorreu quando devíeis embarcar para as Índias, a fim de ocupardes o cargo de governador...

O embaixador limitou-se a sorrir a tais palavras.

Logo depois, uma noite fria, ouviu-se o galopar do cavalo de Tristão da Cunha, que voltava para Lisboa, a fim de dar cumprimento às ordens reais. E durante um mês dedicou-se a essa tarefa com todo o entusiasmo. Chamou para seus assessores Diogo Pacheco e João de Faria, homens doutos que falavam o latim como língua sua.

O primeiro era o cronista do Esmeraldo do Situ Orbis; o segundo, magistrado de alto conselho, versadíssimo na jurisprudência civil e canônica, resplandecia de inteligência e cultura. Ambos poderiam falar na língua do papa com desenvoltura, mesmo diante dos ciceronianos que enxameavam em Roma e que levavam o seu exagero a só empregar palavras latinas existentes nas obras do grande Cícero.

Para secretário, convidou a Garcia de Rezene, que fora moço de escrivaninha de dom João II, grande poeta e cronista do seu tempo. Além desses, chamou a Nuno da Cunha, que mais tarde foi vedor da fazenda real e governador da Índia; Simão da Cunha e Pero Vaz da Cunha, seus filhos. À embaixada se reuniram outros fidalgos, seus parentes e amigos, além da numerosa famulagem que cada um deles levava consigo.

Certa manhã, uma esquadra fundeou no Tejo, para receber a embaixada. O povinho de Lisboa, sempre novidadeiro, correu para as bordas do rio, a fim de assistir ao embarque. Homens e mulheres, de ânimo folgazão, comprimiam-se contra os marinheiros, que montavam guarda ao porto. A cada fidalgo que embarcava, os populares repetiam-lhe o nome, e, não raro, as façanhas.

A cada arca, que passava sobre os ombros de quatro latagões derreados, havia exclamações de pasmo e de cobiça. É que, segundo Manuel Bernardes, aquelas caixas encerravam "um ornamento pontifício inteiro, não só para a pessoa do papa, mas para todos os seus ministros; era tudo de chaparia e figuras de ouro e pedraria preciosa e a trechos umas romãs de rubis escachadas; e sendo a matéria tal, ainda dos primores da arte era vencida. Iam juntamente outras riquíssimas joias e ducatões de quinhentos escudos de ouro, como para entulho. Avaliaram alguns o presente em um milhão, o qual veio a ser dos que saquearam Roma".

Mas o que divertiu o populacho foram os bichos.

Dom Manuel recebia ricos presentes dos sobas de Ásia, África e América, que lhe queriam conquistar as graças. Conta Damião de Góis que o rei, em Lisboa, assistiu a uma luta de feras, como faziam os romanos de outros tempos. Ele mandou soltar um elefante e um rinoceronte num cercado e, do palanque, preparou-se para assistir à luta. Mas, infelizmente para ele, a luta não se deu. É que o elefante, corrido de medo, conseguiu esgueirar-se por entre dois varões de ferro, onde não havia lugar para um homem magro escapulir-se...

Primeiro, passou um cavalo persa com tapete branco sobre as ancas e, nesse tapete, molemente deitada, mas livre, uma onça pintada, cujo pelo mais parecia de sombra, com listas de ouro velho. O cavalo e essa onça ensinada lhe tinham sido mandados de presente pelo rei de Ormuz, e eram tratados pelo caçador oriental que os trouxera.

Esse tratador era um homem cor de oliva, com calças largas e compridas pelos artelhos, terminando em sapatos vermelhos, de bicos arrebitados. Apertava-lhe o tronco um casaco estreito, cor de vinho. Na cabeça, trazia uma espécie de trouxa colorida e volumosa. Os bigodes, compridos e finos desciam-lhe dos lados da boca, para enrolar-se debaixo do queixo. Esse lambisgoia chamava-se Naim. O povo estarrecido, com uma pontinha de medo, viu-o conduzir cavalo e onça até a barca que esperava os no rio e serem transportados para a nau mais próxima.

Depois desses animais, surgiu o elefante. O povo aclamou-o com gritos e risadas. O bicho balançou a tromba, depois soprou forte na cara de uma sirigaita que, por pouco, ia perdendo os sentidos. O elefante tinha o nome de Annone, como o filho de Aníbal e alguns generais das guerras púnicas. O cornaca, mulato pachola que o conduzia, era malabar e chamava-se Naires. Caminhava na frente, apoiando-se em comprida vara. Estava seminu, como os da sua nação. Apenas, o turbante, alto e branco, e uns calções, que mais pareciam tanga. O dorso magro, ossudo, cor de cobre, brilhava à claridade do sol.

Sobre o dorso abaulado do elefante, erguia-se uma espécie de torre. No sopé dessa torre, uma arca naturalmente atulhada de primores da ourivesaria portuguesa, e ducatões, para as despesas fabulosas da embaixada. Em cima da torre, um coxim de pano da Índia, cor de romã, e, nele repotreado, Nicolau de Faria, estribeiro-menor do rei, nomeado guarda do elefante e da sua preciosa carga. O paquiderme e os dois homens foram rodeados pelo povo e depois, entre gritos e pragas, sumiram nas embarcações, que os deviam conduzir a bordo.

Ouviu-se então um grito:

- O rinoceronte morreu!

Muitas pessoas correram á praça onde se amontoavam arcas, jaulas e mantimentos e se certificaram de que aquilo era verdade. O bicho não quisera ir para a Itália. Ajoelhara, afocinhara, caíra de lado. Os seus tratadores ficaram pasmos de o ver morrer com tanta facilidade, a despeito do seu tamanho e do couro, que parecia de ferro enternecido. De noite, uns homens munidos de tochas amarraram-lhe cordas de barco e o arrastaram para o rio. Depois rolaram-no para a água, como pedra que se desprende de barranco.

Quando arcas, homens, feras e numerosos cavalos desapareceram, com muito trabalho, no bojo escuro das três naus, as velas foram içadas, os ferros guindados e as embarcações se deixaram levar, meio arrastadas pelas correntes do rio, meio impedidas pelos ventos alentejanos que mal davam para deitar barriga em latinas e redondas.

As praias do Tejo estavam apinhadas de povo. Os músicos da embaixada assopravam pífaros, percutiam tambores. Sobre as carreiras da construção naval, erguiam-se ossaturas de caravelas, enormes e robustas como esqueletos de monstros antediluvianos. Trepados nas quilhas, sentados nos curvatões, os mestres calafates, barbudos e de capuz quebrado para a frente, erguiam os braços e esgoelavam-se em vivas ao rei, ao papa e a dom Tristão da Cunha, que, também, era marinheiro e de três canas...

E as naus, lentamente, foram-se perdendo lá em baixo, avizinhando-se da foz do Tejo. Com certeza, dom Manuel, como todas as tardes, estava debruçado nas muralhas negras do Almeirim e de lá saudou os seus embaixadores, que passaram guiados do céu pelo brilho das primeiras estrelas.
 

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 da edição de 23/9/1945 com o texto

II

A vida a bordo daquelas naus, de que nenhum cronista registrou os nomes, devera ter sido curiosa. Os fidalgos recolhidos aos beliches, os pajens acocorados às portas, jogando dados, bebendo vinho e praguejando. Naires e Naim, o cornaca e o caçador do rei de Ormuz (N. E.: ilha no estreito de Ormuz, entre Omã e Irã), ocupados com seus animais. Os cozinheiros, cortando peças de vaca, salgadas, e com elas preparando os assados. De dia, reunidos na coberta, os músicos ensaiavam as charamelas; de noite, acompanhados pelo bater das vagas no costado do navio, os guitarristas da Alfama (N. E.: bairro de Lisboa) erguiam seus cantos de saudades. Altas horas, todos dormindo, compridos miados e soturnos gemidos arrepiavam a superfície escura das águas. Eram a onça e o elefante, mareados.

Assim, as naus venceram largas distâncias. Mas, oito dias depois da partida, o céu se fez plúmbeo, o vento se desencadeou, as ondas se rebelaram, atirando-se contra os navios, que viajavam em linha, com uma légua de permeio. Adeus conversas, jogos de dados, ensaios de música e cantos na tolda! As ondas, com uma crista de espuma, descabeladas, atiravam-se contra os cascos, entravam por um bordo e saíam por outro, depois de lavarem tempestuosamente as cobertas. Houve mesmo um momento em que se pensou em botar carga ao mar. Começaria o alijamento pelos bichos... O elefante parecia chorar, soluçar: era como se tivesse pressentido o fim que o esperava...

Mas Tristão da Cunha, navegante encanecido no passadiço, curtido pela salmoura do mar, não era homem para abrir mão desses nobres companheiros de embaixada. Tomou da buzina, fez as bandeirolas grimparem pelos mastros e, em obediência às suas ordens, a esquadra arribou em Alicante, na Espanha. Amanheceu no porto. Dentro de pouco, os bufos do elefante e os miados da onça atraíram a atenção das mulherinhas e saloios que vendiam frutas frescas e amêndoas cozidas em mel. Foi uma romaria até o porto. Das muralhas, acenavam com lenços e barretes para a nau em que viajavam os animais, e os marinheiros, que iam à terra, nas lorchas
(N. E.: tipo de veleiro com características mistas luso-chinesas)i, eram cercados por gente que queria saber, que queria ver...

Elas, lindas, a cobri-los de perguntas e eles, roliços e felpudos, a se fazerem rogados, a sorrir-lhes de olhinhos melosos, com ganas de beijá-las. Ali passaram dois dias festivos mas, quando a borrasca amainou, a esquadra levantou ferros, rumando para as Baleares. Fez aguada em Iviça, uma ilhota que mais parece um presépio. Dias depois, ancorou na Maiorca. Recebeu a bordo vitelas de carne vermelha, com veios amarelos de gordura, quartos de porco esbranquiçados de toucinho, cestas de verduras e legumes e pipas de água fresca, daquela água bendita que borbulhava dos rochedos.

Abastecida de mantimento para um mês de viagem, a esquadra fez-se ao mar na direção do Norte. Começava-se a sentir mais forte o inverno. O mar estava cinzento e encarneirado. Os aquilões guaiavam no massame. Fidalgos e fâmulos, recolhidos aos cômodos, de lá não saíam, a não ser para as refeições. Um dia, a nau que ia à frente aproou num nevoeiro. As outras seguiram-na, nos escalracho.

Aquele nevoeiro assinalava duas ilhas e um estreito. O estreito de Bonifácio, entre a Córsega e a Sardenha. Meteram por ele a dentro. O mar estava chão, cor de folha de salgueiro. De um lado e de outro, nas asperezas a pique, desabrochavam rendas. Havia muitas velas. E barcaças de pescadores. Quando as naus singravam nas suas ilhargas, os marinheiros ouviam músicas e cantos. Chegando novamente ao mar largo, abriram os panos, mas dessa vez para as costas da Península. Apesar do inverno, o céu estava de um azul dourado, o mar sereno, os ventos propícios.

Não sabemos quantos dias vogaram, mas numa manhã gélida entraram no pequeno porto d'Ercole, na Etrúria. Em linguagem atual, poderíamos dizer nas proximidades do porto de Santo Stéfano, à vista de Orbetello. Estava-se, então, no fim do mês de janeiro de 1514. Tristão da Cunha e demais fidalgos da embaixada desembarcaram com os fâmulos e dirigiram-se a Roma, a 36 milhas de distância, onde chegaram a 14 de fevereiro. Ali entraram por uma das doze portas famosas, seguiram pela Via dei Banchieri e foram hospedar-se num palácio que estava magnificamente adornado para recebê-los.

Por ordem do chefe da embaixada, Nicolau de Faria ainda permaneceu alguns dias no porto de Ercole, para depois seguir pelo mesmo caminho, conduzindo o elefante, o cavalo persa e a onça, com os tratadores e homens da guarda. Assim procedeu Tristão da Cunha por prever que os bichos despertariam viva curiosidade nas povoações por onde passassem, tornando-lhes difícil a viagem. E foi isso o que se deu. Nicolau de Faria desembarcou os animais e os presentes, organizou a caravana e partiu. Deixou de lado Civita Vecchia, que tinha muito que ver, porque Miguel Ângelo estava dirigindo a construção de bastiões e fortificações, e alcançou a estrada real que passa por Florença e vai a Roma.

As estradas estavam cheias de gente a pé e a cavalo que, tendo sabido da passagem dos "bois da Lucânia", havia feito grandes distâncias para admirá-los. Os curiosos ficavam à beira da estrada, à espera dos viajantes. A aproximação era assinalada por gritos e correrias. A cidade de Siena estava como em festa.

A população tinha acorrido para a porta em que deviam entrar os portugueses, mas estes se demoraram no caminho, a admirar os restos de um monumento ali erguido, em outros tempos, para comemorar "malfadada aliança da Coroa portuguesa". Era uma pirâmide e mármore, com inscrição latina encimada pelas quinas portuguesas. Fora ali, naquele lugar, que se realizara a primeira entrevista da infanta d. Leonor, filha do rei dom Duarte, com seu esposo Frederico IV, príncipe indolente em cujo reinado só há uma coisa a assinalar – a invenção da imprensa.

Admirado e discutido o monumento, homens e bichos entraram na cidade de Siena. À sua espera, se encontravam quase todos os habitantes, homens, mulheres e crianças. Quatro rapazes carregavam um parente que, de velho, não podia andar, mas desejava ver as feras.

Nas praças, a uma distância respeitável, viam-se grupos de mulheres, com grandes vestidos de cores vivas, daqueles estofos principescos que os venezianos traziam do Oriente. Eram brancas e louras. Suas bocas hilares abriam-se com a frescura das framboesas. Os homens vinham até mais perto, saudavam cortesmente os viajantes, faziam-lhes perguntas numa língua cantada, que eles não entendiam, limitando-se a responder com um sorriso de cordialidade. Nas janelas, nas portas, nas sacadas sobre a rua, apinhavam-se curiosos.

A onça, deitada sobre um pelego, nas ancas do cavalo persa, parecia absorta num sonho, não cuidava das coisas que a cercavam. Mas o elefante, bem-humorado e brincalhão, multiplicava-se em facécias. Aqui, sentava-se nas patas traseiras, para admiração do público. Ali, punha-se a rodar sobre si mesmo, como se quisesse apanhar com as presas a cauda. Acolá, sugava com a tromba a água de uma poça e com ela esparzia os mironi (N. E.: palavra latina, em português significando mirão ou mirone, ou seja, o espectador) de cinco braças em redor. Era um susto, uma gritaria, uma correria...

As estradas eram ásperas, fragosas. Passaram por Lusignano, Buonconvento, Paglia e San Quirielo. Atravessaram o riacho Sentino. Ladearam Acquapendente, assim chamada porque tem um salto de águas prateadas, na encosta do monte. Depis, San Lorenzo delle Grotte, a e o lago do mesmo nome. E a cidade de Viterbo, famosa pelas fontes.

Dali estendia-se a campanha romana. Essas terras são pobres o ano inteiro. O terreno é ondulado muitas vezes pedregoso. Sobre ele a vegetação é rala, seca e esgalhada. A população é escassa. Aqui uma quinta a meio abandonada, além um casario agonizante. Nas encostas, grupos de ovelhas escuras. Nos valados, reses magras. E longe, como emergindo das cinzas do inverno e da distância, as cúpulas chatas de Roma.

Já se estava no mês de março, quando Nicolau de Faria, homens e bichos, em meio da curiosidade e da alegria geral, chegaram à vila do cardeal Adriano, em Campo de Fiori, onde foram recebidos com ruidosa alegria. Ali souberam que a sua apresentação no Vaticano estava marcada para o próximo dia 12, primeiro domingo da Quaresma.

Leão X pertencia à oligarquia dos Medici. Filho de Lourenço de Medici, o Magnífico, o jovem João de Medici foi logo encaminhado para a carreira religiosa. Ainda menino, aos 12 anos, recebeu das mãos de Inocêncio XVII a púrpura cardinalícia. Foi o mais novo dos membros do Sacro Colégio. Mas encantou a todos pela graça das maneiras, pela cordialidade com que tratava os pares. Um dia, foi eleito papa, o mais jovem dos sucessores de São Pedro.

Apenas subido ao sólio, viu reunirem-se em torno da sua pessoa eminentes artistas da Itália. Sábios, artistas e poetas correram logo para ele. Ali se encontravam Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Rafael, Ariosto, Macchiavelo
(N. E.: Nicolau Maquiavel) e Bembo. Todos com seus alunos, sua corte particular de homens de espírito e mulheres graciosas. E a aristocracia pontifícia. E os representantes de todos os países cristãos da Terra. Roma, então, era uma cidade pequena, com 85.000 habitantes, mas o Vaticano era, por si, a Europa, o mundo!

Chegou, afinal, o primeiro domingo da Quaresma. A primavera surgiu de repente, com uma boa notícia. Quando os fidalgos, certa manhã, se debruçaram nas janelas do palácio, viram a terra diferente. O céu estava profundo e azul. Os pinhos de Roma, que parecem mastros com chumaços de folhas, estavam magnificamente reverdecidos.

Os jardins, até então esturricados e negros, ressuscitaram aos primeiros raios de sol. Via-se a erva crescer pelos caminhos. Nas ruínas do Coliseu, onde as pedras milenares se amontoavam caoticamente, repontaram parletarias, desabrocharam flores. E, na limpidez cristalina da manha, trissavam andorinhas, revoadas de pombas brancas cairelavam sobre o esqueleto negro e felpudo das ruínas. Aquele domingo, 12 de março de 1514, em Roma, foi um dia de festa, no céu e na terra.

O povo romano, sabedor da recepção aos cavaleiros portugueses, afluiu para as ruas e praças do itinerário, a fim de saudá-los. Um terço da cidade, isto é, cerca de 30.000 pessoas, homens, mulheres e crianças, aglomerava-se nos bairros que medeiam entre o Campo de Fiori e o Castelo de Santo Ângelo. Leão X determinara as mais altas honras aos cavaleiros de dom Manuel.

Ao alvorecer, Tristão da Cunha e sua gente deixaram o palácio em que estavam hospedados e dirigiram-se para a vila do cardeal Adriano, fora de portas, ponto em que a embaixada deveria iniciar a marcha. Durante uma parte do dia, aquele palácio, situado entre magníficos jardins, não cessou de receber gente. Tudo o que havia de mais nobre e lindo na urbe, lá foi ter.

Chegaram comissões, delegações, ministros, cardeais, cônegos, guardas suíços, músicos e gonfaloneiros. Os estandartes das ordens e as bandeiras das nações resplandeciam ao sol, no sangue das tintas, no ouro fulvo dos signos e das legendas.

Ao cair da tarde, reunido todo aquele povo esplêndido, a embaixada se pôs a caminho, pela via Flamínia. Ainda não se havia adiantado quinhentas braças, e a ela vieram juntar-se Francisco Sforza, duque de Bari, irmão do duque de Bari, irmão do duque de Milão, e outros membros do corpo diplomático. Meia hora depois, chegou à Porta del Popolo.

Ali, o governador da Cidade Eterna veio recebê-la, seguido de numerosos membros da prelatura. Apresentadas as boas-vindas, formou-se o préstito na ordem em que deveria seguir. E pelas ruas apinhadas de curiosos, onde apareciam os mantos escuros dos ricos homens e as pantalonas claras dos artesãos do Trastevero, as túnicas brosladas de ouro das matronas e os saiotes escassos, enrolados na cintura, das mulhares de ganho; a onda luzente e ruidosa dos cavaleiros desfilou.

Os animais batiam com os cascos nas ruas empedradas. Os estandartes oscilavam ao vento do rio. Os sinos cantavam na atmosfera azul. Os músicos sopravam nas charamelas, repinicavam com os cambitos nos tambores, marinhavam aos triângulos de ferro que seguravam à altura da cabeça.

Abriam o cortejo trezentos cavalos cobertos de panos de Damasco das mais vivas cores. Ao lado das azêmolas, guiando-as pela arreata, marchavam a pé trezentos almocreves. Envergavam vistosas librés e no alto dos bastões traziam flâmulas com as insígnias dos respectivos amos. Passada essa tropa, começaram a desfilar os fâmulos dos fidalgos portugueses. Eram homens baixos, entroncados, barbudos, com gorro chato ornado de pluma. Alguns deles eram quase negros, de tão tisnados pelo sol do Oriente. Muitos caminhavam, oscilando o corpo da direita para a esquerda, hábito que os marinheiros adquirem nos tombadilhos.

Seguiam-se-lhes numerosos portugueses residentes em Roma. Eram representantes diplomáticos, cobertos de alamares, clérigos de vistosa indumentária, negociantes retirados, com chapéus disformes, barbas selvagens, olhos redondos e fisionomia de ave de rapina. Depois, meio acanhados de se sentirem entre gente de tamanha importância, vinham muito junto os pintores Fernão Gomes, Gaspar Dias e Anselmo Manuel Campelo, que o rei mantinha na Cidade Eterna para frequentarem as aulas de mestre Miguel Ângelo.

Mais atrás, apareciam, num luminoso fervilhar de aljôfares, os parentes que tinham vindo com os embaixadores mas que, oficialmente, não faziam parte da embaixada. Ao todo, uns cinquenta cavaleiros. Seus trajes eram de deslumbrante riqueza. Ostentavam preciosos brocados, chapéus altos, incrustados de pérolas, armas pendentes com bainhas de prata, e nos copos em cruz das espadas fulguravam grandes rubis como gotas de sangue. A tiracolo traziam cadeias de ouro, pesadas como fardos, mas que fulguravam ao sol em mil pedras preciosas. Seus cavalos eram soberbos. Arreios de couro de animais selvagens, marchetados de ouro e prata. Panos da Índia, onde o romano não sabia que mais admirar, se o colorido, se a contextura. Lacaios com librés que mais pareciam indumentárias de príncipes.

A uns dez passos, marchando num trote miúdo para conservar a distância, desfilava uma companhia de besteiros a cavalo. Novo claro no cortejo e surgiram logo os oficiais da casa do papa, com duas guardas de honra, uma de archeiros suíços de gibão branco, capacete e alabardas e borzeguins vermelhos com canhões verdes, outra de soldados gregos de saio justo, barrete vermelho, espada curta de punho em cruz, agitando na ponta dos piques as cores pontifícias.

E a primeira parte do cortejo era fechada pelos músicos da embaixada portuguesa, montando cavalos brancos, principescamente ajaezados. Trotavam de mistura com os músicos do papa. Uns e outros, numa porfia, levantavam para o céu as trombetas de metal, ou abaixavam para o solo as charamelas, precursoras dos oboés, de que tiravam sons compridos e finos.

Antes de começar a outra parte do desfile, a plebe se atirou na rua vazia. Gritavam os vendedores de frutas, de pão de mel, de pasta de farinha estufada no azeite. Em certos pontos, venezianos ruivos, de cara redonda e olhos de coruja, tinham estabelecido "fontes de vinho". Era uma pipa oculta por sabugueiros. A torneira aberta golfava vinho sobre canecos que iam enchendo, formando fila. O popular passava, tomava do caneco, bebia o conteúdo e atirava a moeda. Quando o vinho caído formava poça no chão, um mascalzone
(N. E.: palavra italiana, significando assassino, ladrão ou homem mau) atirava-se de bruços e sorvia-o com ruído. As mulheres do Trastevere torciam-se de rir.

Mas apareceu logo a segunda parte, que era a mais interessante para o povo. Nicolau de Faria, estribeiro-menor do rei, montado a cavalo, ostentando nos arreios lâminas de ouro e prata, e pregarias de pérolas, abriu caminho. Empós dele, marchava o elefante, o dorso coberto por pano de chamalote, com escamas de ouro. Nas robustas espáduas, oscilando com a marcha, carregava a grande arca de ferro, contendo o pontifical e as demais riquezas destinadas ao papa.

Na frente, caminhava o cornaca (N. E.: palavra originada do sânscrito Karnikin para designar o guia ou condutor do elefante) fazendo molinetes com a vara. Naires, o malabar, apresentava-se vestido de rajá indiano. Depois do elefante, aparecia o cavalo persa, montado por Naim, o caçador de Ormuz, e na garupa, sobre coberta de pelegos de cor, a onça ensinada continuava a dormir e sonhar, indiferente à admiração e ao susto dos curiosos.

Garcia de Resende, secretário da embaixada, apareceu num grupo de fidalgos da legação portuguesa no Vaticano. Atrás dele, vinha Antônio Rodrigues, rei de armas de Portugal, com sua cota de malha. Faziam-lhe cauda os lanceiros do papa, com piques encimados por cruzes de metal.

Por fim, os embaixadores. Tristão da Cunha marchava entre o príncipe de Bari e o governador de Roma. Diogo Pacheco entre o bispo de Nicósia e o conde Alberto Cáspio, embaixador do imperador da Alemanha. João de Faria entre o bispo de Nápoles e o douto Guilherme Rudéo, embaixador da França. Além deles, figuravam no cortejo os embaixadores da Inglaterra, Castela, Polônia, Veneza, Milão, Bolonha, Luca, todos marchando dois a dois, com um bispo ao lado.

O cortejo saiu da Piazza del Popolo, seguiu pela Strada del Corso, pelas ruas della Fontanella, della Tinta, di Monte Brianza, del Orso, della Tordinona e desfilou pela ponte Elia, indo desembocar na então praça fronteira ao castelo de Santo Ângelo. Nesse momento, todos os sinos cantaram. Todos os instrumentos fizeram arruído e todas as bocas de fogo postadas nas muralhas denteadas atroaram a urbe com tiros de pólvora seca.

O povo refluía na praça, atirando para o ar os berretti (N. E.: palavra italiana equivalente ao bonnet francês e ao português boné, tipo de chapéu com uma pala para proteger as vistas). É que numa das sacadas baixas do castelo apareceu o papa, entre príncipes e cardeais. Leão X era atarracado, venerado como um velho lutador. Vestia traje roxo com listras brancas horizontais e gorro chato, afunilado, tal como o fixou Rafael, no seu retrato. Inclinou-se para os portugueses, sorriu para a nobreza e a plebe reunidas na praça.

Nicolau de Faria chamou o Naires e com ele trocou palavras. Por sua vez, o cornaca dirigiu-se a Annone e com ele pareceu entender-se. Então, o elefante voltou-se de fito para o papa e três vezes inclinou a cabeça até o chão, numa vênia. E, como se lhe apresentassem uma vasilha, onde tinham posto de infusão todas as flores da Primavera, sugou-lhe a água com a tromba e esguichou-a, vaporizada, em três jatos, um sobre o papa, que se mostrava feliz com a homenagem, os outros dois sobre a gente que, à direita e à esquerda, se maravilhava com a presença de tão engenhoso animal.

Durante muitos dias, Roma inteira só falou naquilo. O poeta Aurélio Serena celebrou o acontecimento em versos latinos, que andaram de boca em boca e acabaram por figurar nos florilégios.

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 da edição de 30/9/1945 com o texto

III

Na segunda-feira, 20 de março, o papa recebeu os embaixadores. Tristão da Cunha e os companheiros chegaram ao Vaticano na hora aprazada, com música e toques de sinos. À frente, iam Antônio Rodrigues, rei de armas de Portugal, e Garcia de Resende, secretário da embaixada. Seguiam-se Diogo Pacheco, João de Faria, os representantes de Portugal em Roma, clérigos e fidalgos patrícios.

Esses embaixadores portugueses foram os primeiros a subir a escada régia, em vias de ser concluída por vinte arquitetos. Os artistas, que martelavam nas lajes de mármore, mais trabalhadas do que joias, abandonaram o serviço e correram a ver tão ilustres visitantes. Quando os estrangeiros chegaram ao topo da escada, ao pé da escada de Constantino, foram recebidos pelo primeiro oficial da corte pontifícia, que, depois de apresentar-lhes as boas-vindas, conduziu-os por entre duas filas de guardas nobres, atravessando diversos compartimentos decorados por mestre Rafael, até chegarem à "sala ducal", onde se encontrava o papa.

Leão X esperava-os num estrado coberto de chamalote, sentado numa poltrona de cedro, luzente de pregarias de ouro. Ladeavam-no, de pé, os secretários, cardeais Bembo e Sadoleto, ambos doutores e cultores das belas-letras.

O cardeal Bembo era o maior conhecedor da história do Vaticano, desde a crucifixão do grande apóstolo até a morte de Júlio II. Era o melhor cicerone dos embaixadores, pois conhecia todos os fatos, sabia todos os nomes. O cardeal Sadoleto, apesar das grandes dissensões que turvavam o céu de Roma, era tido como amigo de Melanchton, mantendo com ele, durante toda a vida, uma correspondência afetuosa e erudita que o papa perdoava, não porque fosse ortodoxa, mas porque era muito bem escrita.

Atrás de Sua Santidade, em semicírculo, estava formado todo o Sacro Colégio, com as véstias cor de violeta e as altas mitras que pareciam de ouro. Esse quadro era alumiado pelo candelabro suspenso ao teto, onde ardiam centenas de pequeninas chamas quietas, multiplicadas ao infinito por pingentes facetados de cristal.

Os embaixadores, meio atordoados por aquele aparato, subiram lentamente os dois degraus, e, chegando diante da poltrona, ajoelharam-se um a um, beijando com unção os fechos de diamantes das fivelas pontifícias.

Depois desse ato de submissão, o escrevente Garcia de Resende adiantou-se alguns passos, atirou para trás a dobra do manto escarlate, mostrando um ângulo do forro dourado, e, com as mãos trêmulas, sacou do canudo de pergaminho, fazendo-o desenrolar até o tapete. Na sua qualidade de secretário, mandava a pragmática que, em voz alta, ele anunciasse as credenciais dos embaixadores.

E o poeta o fez receoso, repetindo cuidadosamente as frases latinas do manuscrito. Terminada a apresentação, tomou a palavra o sábio Duarte Pacheco. Leu extenso e eloquente discurso, em língua latina, que começava por estas palavras:

Eloquar an sileam?

Ao ouvi-lo assim, perguntar ao Santo Padre se devia falar ou ficar calado, os "ciceronianos", que andavam ali pelos cantos, talvez entre os cardeais do Sacro Colégio, morderam-se de inveja... Com voz firme e clara, o erudito português historiou as façanhas das caravelas e dos marinheiros lusos entre os gentios de Ásia e África. Enumerou as dificuldades de El-Rei Dom Manuel, que ali os mandava a bater às portas do Vaticano, às portas de Deus. Terminou, suplicando numerosas graças, muitas das quais beneficiosas para toda a Cristandade.

O papa ouviu-o em silêncio. No fim da recepção, levantou-se, abençoou os embaixadores e dirigiu-se para os fundos do salão, onde se perdeu entre reposteiros cor de sementes de romã. O Sacro Colégio, em fila, as mãos cruzadas sobre o peito, o busto inclinado para a frente, quanto lhe permitia o equilíbrio da mitra, acompanhou-o. E os portugueses voltaram pelo mesmo caminho, entre filas de guardas nobres, até chegarem à escadaria em obras. Os artistas, que estavam agachados a esculpir as lajes de mármore, levantaram-se cortesmente, para lhes dar passagem.

Naquela mesma noite, foi prestada aos portugueses uma honra sem precedentes. No Cortile dei Santi
(N. E.: em italiano, cortile é o átrio ou pátio interno, existente nas casas romanas antigas), improvisou-se um palco, alinharam-se quarenta bancos de pinho e anunciou-se uma representação . À hora marcada, o pátio regurgitava de espectadores. Eram clérigos, fidalgos e artistas. Entre essa gente, numerosas matronas.

E, entre estas, pela graça e pela formosura, atraíam a vista Maria Bibbiena, sobrinha do grande cardeal, e Formarina, a muito amada de mestre Rafael de Santi, ou de Sanzio. Era alta, bem proporcionada, com aquele ar sereno que depois passou a lembrar as Madonas, pois ela serviu de modelo para as Virgens pintadas pelo artista amado nas loggie do Vaticano. Chamava-se Margarida e tinha um sobrenome qualquer que ela, misteriosamente, ocultou durante a vida. Devia ter nascido ao pé do forno de uma padaria, porque todos a chamavam de Fornarina.

Mas lá se encontravam outras pessoas de prestígio naqueles dias. A um canto, dominando a assistência com a sua figura alta, esquelética e sombria, estava postado um frade. Devia procurar alguém com a vista. Depois, talvez para fazer-se conhecer, arrepanhou o capuz do hábito para as costas, mostrando o crânio alongado, coberto de farripas grisalhas, os olhos miúdos e vivos, sombreados por espessas sobrancelhas, o nariz reto e comprido, que lhe cortava ao meio a fisionomia, e a testa abaulada, protuberante.

Estava nessa contemplação do pátio, apinhado de gente, quando uma figura caricata chegou e lhe dirigiu a palavra. Era um anão cambaio, com o rosto comido pelas bexigas, todo vestido de amarelo com listras roxas e que, andando, agitava o chapéu cheio de guizos. Ao chegar perto do frade, ergueu a cabeça e disse-lhe, em voz de falsete:

- Irmão Hochstratten, grande inquisidor, que tristes preocupações vos apoquentam? Desejais, por acaso, que eu vos leia meus últimos versos?

O inquisidor ameaçou-o com a ponta do pé e ele fugiu, capengando. Roma inteira conhecia aquela excêntrica personagem: era o bobo da corte pontifícia. Recebera na pia batismal, em Gaeta, o nome de Barrabás, que, para amofiná-lo, quer dizer filho da perdição. Tornando-se homem, cortesão e – como ele acreditava – grande poeta, teve o bom gosto de acrescentar algumas letras ao nome, transformando Barabba em Baraballo. Foi assim que a história, ou pelo menos a enciclopédia, o registrou com o nome de Baraballo de Gaeta.

Ele era bobo não por fazer graças e gracinhas, condição dos bobos do seu tempo, mas por julgar-se grande poeta, legítimo sucessor de Petrarca
(N. E.: o poeta e humorista italiano Francisco Petrarca, nascido em 1304 e falecido em 1374, que recebeu a coroa de louros do Senado Romano, reconhecido como precursor das Letras na Renascença).

A sua pretensão era infinita, a sua convicção não admitia reservas, ninguém lhe poderia provar que ele não era o poeta máximo, daquele ano de 1514. Leão X, acima de tudo homem de espírito, viu nele em carne viva a caricatura dos poetas que enxameavam na corte. Deu-lhe os rendimentos de uma abadia e chamou-o para junto de si, conferindo-lhe ao mesmo tempo o chapéu de guizos dos histriões. Em muitas festas profanas ele aparecia, pavoneando-se impunemente entre clérigos, artistas e dignitários estrangeiros de passagem pelo Vaticano.

Ouviram-se pancadas no interior do palco. Dali a pouco, no meio do silêncio geral, as cortinas se abriram e os cômicos deram início à representação de uma peça alegórica aos descobrimentos de Portugal, às riquezas das terras desconhecidas e à catequização dos gentios da Ásia, África e América. A peça tinha o título de O Troféu. Constava de um prólogo de trezentos versos rimados e cinco longos atos. Escrevera-a, a mando do papa, o poeta Bartolomeu Torres Navarro, um dos fundadores do teatro espanhol e que, naquela época, fazia parte da esplêndida corte pontifícia. Segundo um cronista, foi a primeira peça desse gênero escrita e representada na Europa.

Alta noite, quando terminou a representação, os embaixadores portugueses retiraram-se para o palácio que lhes fora destinado. Tristão da Cunha ia apreensivo. Leão X parecia disposto a deslumbrá-los, para ter o direito de recusar-lhes os pedidos... No entanto, a embaixada conseguiu um pouco do muito que pleiteava. Entre outras coisas, João de Faria obteve para seu soberano o padroado do Oriente
(N. E.: direito de conceder benefícios eclesiásticos, ou direito de protetor, adquirido por quem fundou ou dotou uma igreja).

No dia seguinte, como fim de festa, o papa deu audiência especial a Nicolau de Faria e alguns homens que o acompanhavam, para de suas mãos receber, com as devidas honras, os presentes que lhe mandara dom Manuel. Essa entrevista realizou-se no Cortile del Belvedere. O estribeiro-menor do rei apresentou-se com os seus lacaios, conduzindo arcas e animais.

O cavalo persa, entregue ao novo azemel, que lhe beijou o focinho, viu-se logo conduzido para as cavalariças do Vaticano, onde viveu feliz e, como todo ser feliz, passou vida ignorada. A história perdeu-o de vista. A primeira de suas felicidades foi ver-se livre da onça, que lhe dormia na garupa, e do pachola caçador do rei de Ormuz, que o trazia incessantemente pela rédea.

Por falar na felis uncia, lembramo-nos de que ela foi solta num dos parques internos do Vaticano e, durante alguns anos, todas as manhãs, o papa debruçava-se na janela que abria para aquele paradisíaco recanto e ficava horas esquecidas a ver o felino deslizar pela relva, ou subir pelos troncos das árvores antigas. Quanto a Annone, o elefante, não cabendo nas cavalariças, teve de permanecer alguns dias naquele pátio, até que os pedreiros lhe construíssem, à pressa, residência adequada. E foi preciso dar-lhe zelador. Sua Santidade nomeou para o honroso cargo o ilustre fidalgo Giovanni Battista Branconi.

Nicolau de Faria, feita a entrega dos bichos, escancarou a grande arca e dela foi tirando, para admiração dos circunstantes, o pontifical de que Manuel Bernardes, mais tarde, deveria fazer tão formosa descrição. Depois desse pontifical, que não era apenas para o papa mas para todo o Sacro Colégio, foi amontoando nas lajes pilhas de ducatões de ouro que, no dizer do mestre, "lá iam como entulho". Como se isso não bastasse, o português metia as mãos no fundo da arca e de lá retirava punhados de pedras preciosas que ia depondo no chão, onde os dedos trêmulos dos familiares as iam buscar, para examiná-las melhor, sopesando-as e admirando-lhes a pureza do oriente.

O português, habituado àquilo, tinha uma explicação para cada joia. Eram diamantes brancos, do tamanho de ovo de pomba, que, pelo brilho inquieto, mais pareciam estrelas do céu. E diamantes amarelos, nascidos da luz do sol entre certas pedras misteriosas da Índia. E esmeraldas, que eram depósitos minúsculos daquela tinta com que as árvores na primavera colorem as suas folhas. E topázios, ametistas, rubis, cujas lendas Nicolau de Faria tinha ouvido nos templos dos gentios. E pedras, cujos nomes se perderam na poeira dos tempos. Selenitas que não passavam de uma cristalização de luar. Calcedônias, himeatitas, cornalinas, granadas, malaquitas, serpentinas e adalícias, que nascem das gotas de sangue, das lágrimas, das juras de amor e dos gemidos de saudade que os homens vão deixando pela terra, na solidão dos caminhos.

O próprio pontífice não resistiu à fascinação daquelas preciosidades e, com olhos brilhantes, tomou-as na palma da mão, estudando o mistério do seu eterno brilho.

Entre os familiares, estavam Hochstratten, Maria Bibbiena, Fornarina, Giovanni Battista Branconi, os cardeais Bembo e Sadoleto, muitos clérigos e, alegrando a reunião, o Baraballo. O bufão, também, examinava as pedras. E isso o emocionou tanto que ele teve a má ideia de erguer os braços finos e improvisar um poema.

Estava nessa ginástica mental, quando o papa adivinhou as suas más intenções, piscou olho divertido para o fidalgo que se lhe encontrava mais próximo e este, sem nenhuma cerimônia, atirou-lhe um pontapé nos fundilhos. Ouviram-se risadas pelo pátio, e Baraballo, a tilintar guizos, a suspirar de dor, desapareceu entre as arcadas do fundo do cortile. Recebidos os presentes, terminada a entrevista, Leão X e seus familiares retiraram-se pelo velho corredor, que comunica aquele recanto com o Vaticano.

Dias depois, quando a embaixada regressou a Portugal, foi portadora de um presente do papa em pagamento aos que recebera do rei de Portugal. Era vasta lareira, guarnecida de mármore branco com figuras em relevo, atribuídas a Miguel Ângelo.

O rei mandou colocá-la nos paços de Almeirim e, pelas noites de inverno, quando os aquilões assobiavam nas seteiras e as aves noturnas entravam pelas fisgas da torre, atraídas pelo cheiro do azeite das lâmpadas, ele ia sentar-se ao pé dela, para aquecer-se. Muitos anos após, dom José fê-la trasladar para os paços de Sintra e lá a instalou por mestres de obra, mas os cortesãos não lhe deram a devida importância. Já nos meados do século XIX, o erudito marquês de Resende viu-a decaída e pobre, aquecendo ferros de engomar, enxugando prosaicos panos de copa.

Mas Annone, o elefante, esse teve um glorioso destino. Dois anos depois, estando ele nédio e vadio, sob a guarda do bom fidalgo Giovanni Battista Branconi, Roma teve a má ideia de coroar, como se costumava fazer durante a Renascença, o seu poeta latino. Essa honra já havia sido concedida aos maiores poetas do passado, entre os quais o doce Petrarca, por isso era assaz disputada.

Nos centros literários houve grande azáfama. Uns eram, primeiro, por si mesmos, depois por Aurélio Serena. Outros eram, primeiro, por si mesmos, depois por Ariosto. A discussão azedou. E, um dia, os dois partidos foram ter com Leão X, pródigo animador das artes e das letras. Sua Eminência não hesitou, uns dizem por perversidade, outros por influência daquele chicaneiro cardeal Bibbiena, seu velho amigo, e indicou para príncipe dos poetas da latinidade o amalucado Baraballo.

Por pouco, Roma pegava fogo, pela segunda vez... Todos os poetas e não poetas acharam espantosa a escolha, mas o papa era o papa, e, prudentemente, trataram de engolir a cólera, afivelando à cara a máscara mais prazenteira que encontraram à mão. Só o truão não se doeu do santo aviso, ao contrário, pareceu estranhar que a sua coroação tivesse demorado... A cerimônia devia realizar-se, como era praxe, no Capitólio. Lá se reuniram, num jardim, diante de vasta mesa, os juízes, os mecenas e os amigos das letras. Muitos estavam estomagados, mas faziam boa cara, na esperança de ocasiões mais felizes.

Os que se haviam improvisado admiradores de Baraballo, para que a cerimônia se tornasse ainda mais pitoresca, foram de parecer que o novo príncipe dos poetas fizesse o caminho do Capitólio montado no elefante. E isso foi feito. Encontraram-no no vaticano, vestiram-lhe comprido manto de púrpura, convenceram-no de que ele era cornaca dos bons e guindaram-no ao dorso liso e abaulado do paquiderme.

Mas faltava-lhe o físico para tanto. As mirradas pernas não encontravam acomodação conveniente e, a cada passo de Annone, o poeta só conseguia equilibrar-se, lá em cima, a poder das unhas. Por duas vezes, o elefante levantou a cabeça, abanou as orelhas e, segurando-lhe na cara com a tromba, manifestou-lhe que não estava de bom humor.

Vinte mil populares, à hora marcada, reuniram-se diante das portas do Vaticano. O papa e seus familiares apareceram numa das varandas baixas do palácio, a fim de assistirem à partida de Baraballo para o Capitólio. Dali a pouco, o elefante desembocou das cavalariças e atravessou a praça, guiado por Naires, o malabar, nas suas indumentárias de príncipe hindu. Foi um delírio. As mulheres erguiam os braços e gritavam. Os homens atiravam para o ar os barretes coloridos. E, no dorso escorregadio da alimária, oscilando com a marcha, lá ia a figura grotesca do bufão.

O bicho, o poeta e a mó de povo que os seguia alcançaram a ponte de Santo Ângelo, atravessaram-na e depois se perderam entre os palácios, cujas janelas estavam apinhadas de curiosos. Assim, Baraballo chegou ao Capitólio. Ali foi festivamente recebido. Coroaram-no de louros, banharam-no de vinho, cobriram-no de flores. Já ao escurecer, juízes, mecenas e outros amigos das letras, um pouco porque estivessem derreados, outro porque o poeta já não se aguentasse nas fracas pernas, deram a consagração por terminada.

Baraballo foi guindado de novo ao lombo de Annone, onde se encarapitou à maneira asiática. E a tropa-fandanga dos poetas latinos, o elefante à frente, desembestou para o Vaticano. Mas o bicho, que estava irritado, recusou-se a atravessar a ponte de Santo Ângelo. O Naires não teve argumentos assaz convincentes para desemperrá-lo. E, lá de cima, o poeta tratou de convencer a Annone, gritando-lhe palavras que começaram amigas mas que, pouco a pouco, se foram tornando amargas, pesadas, ofensivas, até culminarem em soezes desaforos.

Nesse ponto, o elefante, tido por Garcia de Resende, Damião de Góis e Manuel Bernardes como animal que só falta falar, se não falou, como era de esperar, mostrou entender aqueles palavrões; empinou-se de supetão e o poeta rolou-lhe pelas largas costas até amontoar-se no chão, apesar do manto de púrpura e da coroa de louros. Depois, girando sobre si mesmo, com a agilidade de bode assanhado, levantou a pata dianteira e pisou com ela o infeliz poeta. Os ossinhos se lhe partiram todos. Da sua boca pálida, esguichou um jato de líquido vermelho, que uns afirmaram ser sangue, embora outros opinassem por vinho. Mas vinho ou sangue dava no mesmo, porque Baraballo de Gaeta já estava morto.

A façanha não deu sorte a Annone, pois nessa mesma época, contando apenas quatro anos de idade, ele amoleceu a tromba, murchou as orelhas e cerrou os olhos para a vida. Uns dizem que morreu de angina-pectoris, outros de prisão de ventre. Mas tornou-se o elefante mais famoso do mundo! Sua morte foi mais chorada que a do poeta. Giovanni Battista Branconi, que o amava de verdade, compôs-lhe um sentido epitáfio.

O papa encarregou a Miguel Ângelo de construir-lhe o túmulo, mas esse monumento, que devia ser maravilhoso, desapareceu nas reformas da Cidade Eterna. Rafael recebeu, também, a incumbência de pintar-lhe um retrato, de que temos notícia pela reprodução em madeira de cor, executada pelo entalhador Giovanni Barti, de Siena. Júlio Médicis, depois papa com o nome de Clemente VI, mandou esculpir a cabeça de Annone para adornar a fonte do palácio Madame, de propriedade de sua ilustre, ilustríssima família.

Aqui termina a história do elefante. Dom Manuel e o papa Leão X faleceram logo depois. O rei de Portugal morreu serenamente, como é desejo dos bons cristãos. Mas o papa não teve a mesma felicidade. A história diz: "Seu rápido fim e o mistério que o envolveu foram objeto de muitas suposições, sobre as quais nunca se fez luz". E a lenda arrisca: - Foi a doce Fornarina quem, depois de morto Rafael, pôs fim aos dias de Leão X. Para isso, acendeu uma lâmpada na Capela da Virgem, nas ruínas do Coliseu. A fumaça daquela lâmpada de azeite estava impregnada de misteriosos tóxicos. E Leão X morreu, como certos papas e monarcas, envenenado...

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 da edição de 30/9/1945 com o texto

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