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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 05

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 17 de janeiro de 1931 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

A prata da casa

A nossa vida financeira é bem triste, dava um tango. Pois assim mesmo a nossa gente se veste com luxo, não raro com elegância. As modas que a princípio nos parecem desgraciosas dentro de pouco tempo conquistam a nossa simpatia e a gente se afaz à esquisitice da silhueta feminina. Ah! A praça do Patriarca na sinfonia violeta e ouro do entardecer…

Mas, como se faz esta obra-prima deliciosa que é a moda? Pela eleição universal de um tecido apropriado, de uma cor sugestiva e de uma linha perturbadora? Nunca, talvez. A moda é imposta por uma condição econômica que escapa a essa criança barbada, o público. No fim de cada estação, a moda é ditada pelos estoques remanescentes. Então, os "modelos vivos" das grandes usinas da elegância apresentam no prado de Longchamps, ou em qualquer outra vitrina consagrada, o formoso resultado de um acordo entre Lille e Lyon, Liverpool e Milão, Nova York e Viena da Áustria.

O público aceita e aplaude: chama a isso "os ditames da moda".

Já foi muitas vezes contada a história daquele maluco que depois de encerrada a moda das écharpes de cores vivas, entrou nos maiores armazéns de Paris, arrematou as peças que atravancavam as prateleiras e, logo a seguir, com a cumplicidade dos maiores nomes do teatro e uma propaganda intensa, conseguiu lançar a moda passageira dos fichus (N. E.: pequenos lenços ou xales usados em volta dos ombros e preso com um broche no peito) desmaiados, vendendo por bom preço aqueles remanescentes.

As atuais calças masculinas, excessivamente largas, são moda de procedência britânica, em oposição às calças estreitas dos norte-americanos, que não são exportadores de casimiras. É que os ingleses precisam dar escoamento a montanhas de tecidos armazenados ao longo das docas de Manchester.

Estes vestidos compridos que fazem o encanto das nossas ruas, já foi dito mil vezes, correspondem a uma necessidade das indústrias têxteis italianas, habilmente encampada pelo comércio do mundo inteiro, sob a forma muito simpática de moralização dos costumes. Quando este negócio internacional foi discutido, as fábricas de meias de Lyon fizeram ouvir o seu protesto. Então, depois de paciente troca de correspondência e da intervenção apaziguadora do Credit Lyonnais, ficou assentado que os vestidos compridos apresentariam uma fenda, por onde se pudesse lobrigar a qualidade das meias usadas. Daí, os godês.

A moda de Paris também é discutida. Muitos dos figurinos que por aqui circulam, a bom preço, na missão de difundir essa pretendida moda de Paris, não passam de uns caluniadores vulgares. São repositórios dos alcaides da Rue de la Paix. Se um de seus obedientes acompanhadores for a Paris e, lá chegando, não tiver tempo de observar o traje das pessoas com que cruzar, provocará um alarme no seu bairro e interromperá o trânsito da rua. E não falemos da moda que aqui entra clandestinamente. Há "andorinhas" que mantêm relações com os coveiros do Père Lachaise. Daí, o certas elegâncias cheirarem a formol.

Os fatos acima apontados são sugestivos. Conclui-se deles que, se a moda é uma operação nitidamente financeira, nós devemos fazê-la em nosso proveito, em benefício da nação. Para tanto, devemos dar preferência à matéria-prima e ao trabalho nacionais, exatamente como fazem, sem exceção, todos os outros povos.

Rumo à chita, minhas senhoras! Se é o velho e respeitável nome da chita que vos indispõe contra esse tecido que só tem o defeito de ser barato, crismemo-lo com qualquer outro nome mais ao gosto das salas, empreguemo-lo sempre e para todos os fins, de modo a valorizar a argenteada safra de nossos algodoais, e aumentar a produção de nossas fábricas, a fim de que o ouro não escoe para o estrangeiro e possamos dar trabalho a mais cem mil tecelões. Quem usa chita contribui para o pagamento da dívida nacional, talvez mais do que se entrasse com muito dinheiro nas subscrições.

A admirável "Mahatma" Gandhi acredita que a liberdade econômica e política das Índias é uma questão de artefatos: no dia em que todos os hindus fiarem o algodão e tecerem a manta, a emancipação da sua terra estará praticamente realizada. Para isso, patrioticamente sugeriu a distribuição pelo povo de fusos e teares de mão. E dá o exemplo, sentado na praça pública, entre párias, fiando e urdindo o algodão da sua túnica.

Para nós, o sacrifício não precisará ir tão longe; basta que nos contentemos em dar preferência aos tecidos nacionais, de matéria-prima nacional, que são lindos e úteis. Façamo-lo, porém, com amor e inteligência, para não acontecer o mesmo que se deu com o over-hall. Uma coisa horrível. Ainda nos causa calafrio a lembrança daqueles dias em que a reação americana contra o preço das casimiras inglesas se fizera sentir também no Brasil, onde, por sinal, esse tecido não estava tão caro como neste momento. Deram-se episódios de um ridículo imenso.

Rapazolas houve que, por espírito de imitação, envergaram o seu macacão de paninho azul. Compravam o corte por 7$500 e pagavam 150$000 de feitio no alfaiate, para que tivesse uma linha impecável. E, para que o público não os ultrajasse com pensar que eles assim se vestiam por economia, ou mesmo por falta de meios, acrescentavam a essa roupa uns famosos botões de madrepérola, grandes como corrupios, e que custavam 20$000 cada um...

Felizmente isto já passou.

O caminho é outro. Foi-nos indicado há cerca de três anos por um povo americano que também atravessava o seu pedaço de amargura. As graciosas patrícias de Lupe Velez organizaram um concurso feminino nacional para saber qual das prestimosas senhoritas do México seria capaz de fazer pelo menor preço o vestido mais elegante da estação. Ninguém poderá imaginar, de longe, o êxito desse concurso. Durante um mês a comovida alma asteca vibrou na imprensa, no telégrafo, no rádio, na praça pública. Os jornais publicavam páginas e páginas de modelos, seguidos do orçamento e do nome da senhorita, residente em Tampico ou no Mazatlan.

Ficou então provado que uma moça, quando é elegante, pode vestir-se admiravelmente gastando na toilette uns dez réis de mel coado. Referimo-nos às elegantes, porque as outras não o ficarão nem mesmo enroladas numa peça de crepe da China, ou envergando aqueles famosos tailleurs da estação passada, que conhecem todos os adelos da Rue Monsieur La Prince e cheiram sinistramente a fome.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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