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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
Uma homenagem na imprensa, em 1956

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Ao completar 50 anos de vida literária, em 1956, Afonso Schmidt foi alvo de várias homenagens, como as duas páginas especiais do jornal santista O Diário, e, 30 de dezembro de 1956 (páginas 2 e 3). O exemplar, conservado no acervo do filho Aldo Schmidt, foi em 19/3/2008 cedido a Novo Milênio para reprodução (ortografia atualizada nesta transcrição):
 

Reprodução parcial de página de O Diário de 30/12/1956
Imagem cedida a Novo Milênio em 19/3/2008 por Aldo Schmidt

Homenagem ao escritor Afonso Schmidt

Cinqüenta anos de vida literária - O poeta, jornalista e escritor - O Diário e Academia Santista de Letras homenageiam o consagrado intelectual

Foi há cinqüenta anos que Afonso Schmidt, o intelectual perfeito, veio a público pela primeira vez com um livro impresso chamado Lírios Roxos.

Não importa que essa obra seja de um principiante, vale, porém, que daí em diante jamais se afastou das Belas Letras, em trabalho contínuo na Imprensa de Santos, de São Paulo, do Rio de Janeiro e outras mais cidades do país e do estrangeiro.

Hoje, como outrora, Afonso Schmidt conserva luminosa a chama do seu ideal, a lâmpada votiva do seu destino permanece acesa com o mesmo brilho. O seu cérebro incansável tem produzido, nestes cinqüenta anos, obras que atravessarão os séculos pelo que encerram de bom sob todos os aspectos.

Esta página, portanto, nada mais representa do que um ato da mais perfeita justiça. A sua terra natal, pelas entidades representativas da inteligência e da cultura, faz ressaltar uma personalidade de alto valor intelectual do país e de respeito e consideração no estrangeiro.

Raro é, em verdade, o escritor que assiste tão grata efeméride e em plena pujança, no vigor da sua atividade cultural.

No clichê aqui estampado, representando a capa d primeiro livro de versos de Afonso Schmidt, lê-se: "Afonso Schmidt - LYRIOS ROXOS (Primeiros versos) - S. Paulo - Typ. de Thomaz Stocco - 1906". E na sobrecapa: "A publicar: LYRIOS NEGROS (versos) O POETA LOURO (poema)".

A história desse primeiro livro o próprio autor vai narrar: "Um soneto não chegava a custar para mim o alento de um suspiro. Quando me sentia alegre e quando me sentia triste, ou mesmo quando não me sentia uma coisa nem outra, sentava-me à escrivaninha do hotel, entre grossos livros (e hóspedes, embrulhados e cartas, e, diante do almoço, cortado em tiras, numa letra infantil que foi sempre meu desespero, lançava sobre o papel pautado os catorze versos.

"Naquele tempo, as modestas redações do Brás (São Paulo) mantinham permuta com alguns periódicos do Interior: O Limeirense, O Povo, de Caçapava, O 15 de Novembro, de Sorocaba. Por isso, fechado o soneto com uma chave de ouro, que me parecia trouvaille, capaz de botar no chinelo os colegas do bairro, metia-o num envelope, acompanhado de insistente pedido de publicação, levava-o ao correio e ficava à espera. Mas os jornalistas a quem me dirigia eram cautos: teimavam em não acusar o recebimento de tais cartas.

"Certo dia, porém, ocorreu-me mandar um trabalho para A Luta, de Santa Branca, jornalzinho de palmo e meio, feito com gosto. Na semana seguinte, andava eu no salão do hotel, quando, sobre a escrivaninha, vislumbrei um papel impresso. Lá estava A Luta, e com o meu trabalho! Ninguém poderá imaginar a satisfação de um poeta principiante que, pela primeira vez, depara com seus versos estampados em letra de forma! Levantei o semanário, como se fosse uma bandeira e gritei para que todos os fregueses ouvissem: - Minha poesia saiu no jornal! Vejam aqui!

"Ninguém reparou em mim. Menos aquele senhor, que, numa das mesas mais próximas, almoçava tranqüilamente. Ergueu a cabeça, sorriu do meu entusiasmo e chamou-me:

"- Venha sentar-se aqui.

"- Corri a ocupar a cadeira que ele me indicava.

"- Sou o diretor desse jornalzinho. Chamo-me Argemiro Ramos de Siqueira, como está aí, no cabeçalho. Recebi seu escrito, gostei dele e publiquei, com uma referência na terceira página. Como sou freguês do Angelo e venho assiduamente à Capital, deixei de propósito esse exemplar sobre a escrivaninha, para averiguar quem é o poeta. Deu resultado. Meus parabéns, você promete...

"Foi o primeiro elogio que recebi. Minha produção poética, que já era avultada, cresceu enormemente. Abalancei-me a mais altas cavalarias. Nada menos do que à Vida Paulista, semanário ilustrado de Arlindo Leal e Peregrino de Castro. A redação era no Largo do Tesouro, no sótão de um prédio velho que já cedeu lugar a um segundo e a um terceiro prédios novos. Escrevi curta poesia dedicada a certa menina que, aos quinze anos, me enchia o coração de bonitos sonhos... Levei pessoalmente a carta à revista, na esperança de entregá-la ao porteiro e fugir depressa... Mas, como fosse sábado, encontrei a redação fechada. Meti o envelope por baixo da porta, muscando-me em seguida, arrependido da façanha. Na quinta-feira seguinte, comprei a revista e não descobri nenhuma referência. Mas, duas semanas depois, atacou-me um frenesi. De manhã cedo, fui esperá-la na porta da tipografia, onde os jornaleiros a recebiam para apregoá-la, trepados nos estribos dos bondes, a gritar:

"- Olhe a Vida Paulista! Leva o retrato dos cara-duras!

"Quando o primeiro vendedor saiu a correr, comprei um exemplar. Nem pude acreditar nos meus olhos!! Lá estava a poesia, em lugar de destaque. Reparei que, por erro de revisão, a dedicatória saíra ligeiramente modificada. Em lugar das iniciais da minha musa, li: À M.E.M. Assim mesmo, comprei não sei quantas revistas. Meus companheiros estavam fartos de saber quem era a dona daquelas iniciais, apesar do gato que os revisores deixaram passar. Mas no Grupo Escolar do Brás onde, pela segunda vez, eu estava matriculado, o prof. Nilo Costa, depois de admirar os progressos da minha carreira, perguntou-me:

"- E a quem se refere essa dedicatória? Posso saber? É alguém daqui do Grupo?

"Não hesitei e respondi:

"- Está bem claro: 'À minha estimada Mãe!'

"Ele olhou-me demoradamente, talvez admirando meus belos sentimentos...

"A propósito da Vida Paulista há um estrambote. Dez ou quinze anos depois, quando dessa revista não perdurava, talvez, nem mesmo a lembrança, fiquei conhecendo um advogado de grande merecimento, tanto pela honestidade como pela cultura. Chamava-se sr. Gustavo Pinto Pacca. Contando-lhe estas lembranças, ele sorriu e disse:

"- Eu fui secretário da Vida Paulista. Lembro-me perfeitamente do dia em que, entrando na redação, colhi aquele envelope, debaixo da porta. Publiquei a sua poesia. Não me agradeça. Eu, nos jornais em que tenho servido, nunca subestimei o trabalho literário que o autor, por mera timidez, deixa debaixo da porta e foge, como se estivesse cometendo um delito. Em princípio, é obra de estreante de valor. Se não tivesse mérito, não seria tímido; entraria na redação de chapéu na cabeça e iria direito ao diretor, fazendo valer seus conhecimentos não literários, mas de figurões da cidade...

"Por essa altura, introduzi-me sub-repticiamente na redação de A Concórdia, à Rua Maria Marcolina. Lá tive como diretor o sr. João Soares de Almeida, relojoeiro, dono de venda e, no momento oportuno, jornalista. Foi ele quem me arrancou da torre de marfim em que eu me esforçava por viver e que era tão própria daquele período francamente d'anunziano. Ele, escudado pelo Veríssimo, recebia meus escritos, lia, relia e, depois de um muxoxo:

"- Vá lá... Por esta vez passa. Vou publicá-lo... Mas de futuro lembre-se do leitor... Não se esqueça de que o coitado compra o jornal e, se não entender o que está escrito, chorará o seu tostão...

"Ao lado dele, o Veríssimo, muito acolhedor, botava em ordem os nossos escritos e, às vezes, publicava-os em duas colunas, abertas, para estarrecimento dos que punham em dúvida as nossas qualidades. Lembro-me também dos jornais publicados pelo Arlindo Roberto e pelo Heitor Valery (hoje sr. Heitor Valery, pediatra). A tipografia ficava na Avenida Rangel Pestana, para cá da porteira.

"Minha família já residia na Rua Piratininga, numa casa baixa de cinco janelas e um portão defronte aos depósitos de materiais do Augusto Tolle. Eu tinha encontrado meu caminho na vida: era o caminho do Hotel Bela Napoli. Para justificar, produzia sonetos a granel, em séries.

"A instância do amigo Gastão costa, matriculei-me no Conservatório Dramático e Musical, que acabava de inaugurar-se. A sede era naquele casarão da ladeira de Santa Ifigênia, esquina da Rua Brigadeiro Tobias. Casa histórica. Diziam que lá havia morado a Marquesa de Santos. Tive como professores: Wenceslau de Queirós, poeta de largos remígios, autor de um livro então inédito e que só postumamente deveria aparecer, já superado, uns vinte anos depois de sua morte. Falava-se muito nas Rezas do Diabo, que ele ia publicando, soneto por soneto, aos domingos, no Correio Paulistano, e Hipólito da Silva, jornalista de combate que deixara sulco nas campanhas da Abolição e da República. Ele brilha entre os poucos poetas sociais de nossa terra. Conheço a sua Gênese Sombria, um grito contra a escravatura; em outro país, faria a glória de um poeta.

"No Conservatório, tive oportunidade de conhecer O Prelúdio, órgão dos rapazes do curso de Literatura. Nesse jornalzinho, li pela primeira vez o nome de um escritor que me surpreendeu. Tratava-se de certo Monteiro Lobato, de Taubaté. Seu conto era Gens enuyux. Achei aquilo tão bom, tão diferente da nossa literatura... Soube-me a vinho de boa marca, num tempo em que eu tinha a sensibilidade quilotada pela zurrapa que as livrarias vendiam às quartolas.

"Por esse tempo, como já deixei transparecer em diversos passos destas reminiscências, eu era francamente da imprensa. Fundei ou associei-me a diversas publicações de palmo e meio, com uma tiragem excessiva de 200 exemplares, que a gente conseguia imprimir por preço hoje inacreditável. Ao acaso, lembro-me do Zig-Zag e de O Cromo. E os versos a jorrarem copiosamente, a macular, a deslizar maciamente sobre as tiras de papel almaço.

"Certo dia, obtive de minha mãe importância necessária para a publicação de um livro. Mas que livro? Botei o dinheiro no bolso, sentei-me à mesa da sala de visitas e escrevi Lírios Roxos, versos dos quinze anos. Corri à tipografia do Stocco, à Rua Quintino Bocaiúva, e na semana seguinte fui buscar um daqueles caderninhos de capa verde, muito inferiores, se possível, aos poemas que encerravam. Nas primeiras páginas, meu retrato. Cabeleira, gravata borboleta, uma atitude hostil aos preconceituosos armazeneiros da Rua Piratininga. Um perigo...

"O êxito do livrinho foi inegável. O Município, de Lorena, diretor Joviniano Bitencourt, falou bem e fez auspiciosos prognósticos sobre a carreira do poeta in erba. Do mesmo modo procedeu O Tempo, de Faxina. Mas o Ipiranga, de Moji das Cruzes, meteu o pau. Despeito, do legítimo... Mostrei à minha mãe as palavras elogiosas e aproveitei a sua comoção para pedir-lhe novo dinheiro. Dessa vez, saiu Miniaturas, na Tipografia do Globo, no Piques, onde o colega Paulino de Almeida publicava seus poemas. Então, senti-me um nome do Brás e arredores.

"Cheguei a ter firma de cabeçalho de um semanário que Arlindo Alves e Heitor Valery editavam, na sua tipografia, à Avenida Rangel Pestana."

Seis anos após, outro livro de versos bons, magníficos, que o consagraria definitivamente - JANELAS ABERTAS, porque reconhecendo-lhe os verdadeiros méritos a Academia Brasileira de Letras conferiu-lhe o primeiro prêmio dentre os que se apresentaram no concurso desse gênero. Passados nove anos, com o mesmo fulgor, com os mesmos méritos, mais um livro de versos: MOCIDADE, e, em seguida, dez anos passados do segundo no mesmo porte vertical surge GAROA.

Pela transcrição que fizemos acima, para deixar que o próprio Afonso Schmidt dissesse do seu primeiro livro de versos, verifica-se o ingresso efetivo na Imprensa, da qual, também, jamais se afastou e lhe serve com grande brilho.

Deixemos que Afonso Schmidt diga o seu primeiro vôo jornalístico:

"- A tipografia de O Janota foi vendida ao Paulo de Almeida Lima, nosso colega (do Grupo Escolar do Brás). Eu vou dedicar-me ao comércio, você sabe...

"Corri (Afonso Schmidt) à casa do Dr. Almeida Lima. Naquele tempo, ainda não era na Rua da Concórdia que, mais tarde, recebeu o seu nome, mas na Avenida Rangel Pestana, um pouco para lá do Largo da Concórdia. Quem me recebeu foi a mãe do meu colega, que devia estar aborrecidíssima com o trambolho. Quando lhe falei em comprar, ela ficou contente:

"- Pode levar. Não precisa pagar nada. O Paulo comprou, passou dois dias no puxado do quintal, e depois enfarou-se. Agora, já nem pode ver aquilo.

"Eu não desejava ouvir outra coisa. Uma a uma, conduzi para o hotel as quatro caixas de tipos e, como não tivesse onde guardá-las, acomodei-as debaixo da cama. Os fregueses que passavam pelo pátio interno espiavam curiosamente por cima da meia-porta. Eu, indignado, fulminava-os com gestos e palavras que não pretendo consignar aqui. E o hotel inteiro divertiu-se. Menos um sujeito de Moji das Cruzes, que lá aparecia para vender lingüiças. Foi procurar-me.

"- Sabe? Eu tenho lá em Moji duas caixas de tipos. Tomei-as de um freguês que não quis pagar seis quilos de chouriço...

"Não hesitei:

"- Quanto quer por elas?

"- O preço da dívida, uns dezoito mil réis.

"- Pois pode trazer.

"Na semana seguinte, minha cama já não era propriamente cama: ocultava debaixo dela uma tipografia.

"Entrando em férias, transportei tudo para Cubatão. Quando desembarquei na plataforma, o chefe da estação, ao ver-me carregado com caixas envoltas em jornais, xereteou:

"- Que é isso, menino?

"- Uma tipografia.

"- Uma o quê? - e riu com todos os dentes.

"Cheguei à casa, na Água Fria, transportando a inesperada mudança. Foi um acontecimento. Veio gente de dois quilômetros ao redor, para ver a maravilha. E, no dia seguinte, encetei os trabalhos para publicar o jornal que se chamaria O Janota, pois era o título, em clichê, do tempo do Antonio Silva. Os de casa objetaram.

"- Mas O Janota, neste lugar onde o primeiro rancho fica do outro lado da ponte... Você vai fazer um  jornal para quem?

"- Para mim mesmo.

"De tipografia só tinha os tipos geralmente empastelados. Nenhum componedor, nenhuma rama. E para agravar a situação, eu era inteiramente leigo na arte de Gutemberg. Tive uma saída. Dirigi-me a Cubatão, procurei o carpinteiro e mandei fabricar um quadrinho de madeira, mais ou menos da altura dos tipos. De posse desse quadro, que servia ao mesmo tempo de componedor e de rama, iniciei a feitura do jornal.

"No entanto, o tipo não se equilibrava em pé. Também para isso, encontrei remédio: trabalhava com uma xícara ao lado. Catava o tipo, mergulhava na xícara e punha-o de pé, dentro do quadro. Às vezes, levava o dia inteiro para alinhar uma dúzia de palavras, pois era preciso descobrir as letras nos diversos caixotins em que se repartia a caixa francesa, como diziam os tipógrafos. No fim de um dia de trabalho, cabelos arrepiados, suando em bica, a composição empastelava. Quase morria de raiva! Então, pegava em tudo aquilo e atirava pela janela, afugentando as galinhas que ciscavam no terreiro.

"Tempo houve em que o quintal, por mais que a Maria e a Aracaci varressem, estava sempre estivado de uns bocadinhos de chumbo com letras em relevo, na extremidade.

"Nesse tempo, eu já fazia clichê. A casa parecia cheia de barretas de betume da Judéia e de vidros de tinta litográfica. Antes de qualquer pessoa beber uma caneca de água, precisava tomar cuidado: corria o risco de ingerir ácido nítrico, que pelos armários havia em quantidade.

"Por esses e outros motivos, não saiu O Janota que seria publicado no mato, a quase cinco quilômetros do povoado humilde onde, por sinal, não havia nenhum janota. Felizmente, Cubatão não soube da façanha. Nem perdeu nada com isso."

Muito mais tarde tentaria instalar um jornal em Santos, ao qual lhe daria o nome de Vesper. A luta foi tremenda e, por que não dizer, empolgante, porém, em vão. Ainda não seria desta vez.

Não foi dono de jornal, mas, sim, consagradoramente um jornalista. Na Imprensa desta cidade militou por várias vezes. Mudando-se para São Paulo, aí ficaria nas mesmas lides e aureolado pela luz da sua inteligência, do seu talento e da sua cultura.

O escritor é integral, simples, profundo, conciso, humano, quer na crônica, na novela, no romance, na biografia ou teatro. Em todos os gêneros tem o sinal inconfundível do cérebro privilegiado. Burilou a sua arte de escrever a ânsia indomável da leitura. Lia tudo com perspicácia, com agudeza de espírito. Herança dos seus ancestrais pelo lado materno. Dizia sua avó, mãe de sua mãe: "Poderei viver numa prisão, contanto que me dêem livros para ler". E o que lhe ajudou, também, nesse aperfeiçoamento? A aventura de correr mundo nos repentes que lhe advinham, sem se importar com a falta de recurso pecuniário, como confessou por muitas vezes. Herança dos seus ancestrais paternos.

Ao princípio era a Poesia a sua preocupação. Mas a Prosa lhe invadiu a alma. E em Lisboa, num desses repentes de aventuras, completamente desconhecido, anonimamente deixou por debaixo da porta um trabalho em prosa, intitulado Ninho abandonado, no melhor jornal dessa terra lusa - Novidades. Ei-lo, publicado na primeira página, em duas colunas!

Essa publicação de escritor novato constituiu um prêmio, e outros o teria a consagrar-lhe o nome. Outro, na América do Sul, conquistara num concurso de novelas o primeiro lugar com o trabalho denominado Os impunes. E outros mais conquistaria até que, com surpresa geral, quando revelou a sua personalidade, é premiado com um romance autobiográfico: Menino Felipe, concurso instituído pela revista O Cruzeiro.

A sua obra em prosa vai para uns trinta volumes, mas é imensa no seu conteúdo e poucos escritores terão alcançado tão grande prestígio.

Academia Santista de Letras - Esse novel sodalício, em conjunto com o O Diário, proporcionam esta homenagem ao magnífico intelectual santista, o qual sentirá nos trabalhos a seguir dos imortais conterrâneos a expressão mais viva de grande estima.

Capa de Lyrios Roxos, reproduzida pelo jornal O Diário de 30/12/1956
Imagem cedida a Novo Milênio em 19/3/2008 por Aldo Schmidt

Afonso Schmidt, poeta

Mons. Primo Vieira

Foi Tristão de Ataíde quem observou esta verdade: quase todos os nossos grandes escritores começaram por um livro de versos. Afonso Schmidt não escapou à lei geral. A sua primeira obra de valor, que o tornou conhecido no campo das letras, foi Janelas abertas, uma coletânea de belíssimos poemas, publicada em 1910, com prefácio de Luís N. Greco.

Nesse momento histórico, a escola dominante pelo vulto da bagagem literária era a do simbolismo, já na sua segunda geração prestigiada pela poética dulçurosa e musical de Mário Pederneiras, depois do vago liturgismo de Alphonsus e do verbalismo sonoro de Cruz e Souza.

Era a reação espiritualista contra os temas exóticos e grosseiros e, porque não dizer, demasiado sensuais do objetivismo parnasiano. Nem por isto, deixava de haver os discípulos tradicionais de Bilac ferindo as mesmas cordas da lira de Leconte, muitos dos quais, após a grande guerra, iriam perfilar o grupo modernista de 1920.

Era o modernismo que tomava forma, pouco a pouco, até a geração de Mário de Andrade. Nesse período eclético, de realistas e simbolistas, a musa de Afonso Schmidt preferia decidir-se em favor dos primeiros.

Assim é que Janelas abertas é um livro parnasiano. Em Afonso Schmidt, como em todos os nossos parnasianos, por força de nosso caldeamento étnico, a poesia, ainda que se revestisse das indumentais impecáveis do verso herediano, guardou as vibrações líricas do nosso romantismo subjacente, que é anterior ao próprio Romantismo. A índole sentimental da raça não cumpriu à risca a arte poética do Parnasianismo francês.

Escrevendo, aqui e ali, estrofes rigidamente parnasianas como em Aquário, onde Afonso Schmidt se compraz em ver "na bacia de mármore rosado, sobre areia de ouro, dorsos peróleos de esquisitos peixes", não esconde, porém sua emoção, ante as coisas simples da nossa paisagem e o quotidiano dolooso da vida real. Comove-se diante do "laranjal que se abre em estrelas de prata e tem tanto rumor que parece que canta". O carro de bois "a gemer nas estradas" parece-lhe "moer em cada roda a mágoa do sertão". E, como a resumir o seu sentimento nativista e patriótico, escreve este hemistíquio: "Amemos nossa terra, amemos nossa gente, com muito coração e pouca geografia".

Despregando o olhar da paisagem, o lírico envereda, uma que outra vez, para a poesia social, e na Ode à Rússia deixa entrever aquela simpatia pela revolução bolchevista, que mais tarde o fará passar por um dos adeptos do credo vermelho. Creio, porém, que o seu comunismo é meramente platônico, ou melhor, um simples anseio da verdadeira justiça social. Pelo contexto dos poemas, percebe-se a franciscanidade, se assim posso dizer, de seus sentimentos altruísticos. No soneto Caras Sujas, um dos melhores do livro, por exemplo, revolta-se ele contra o abandono impune, a que ficam relegados pela burguesia egoísta os pequeninos miseráveis nas ruas, apinhando-0se sobre as grades dos palacetes ajardinados, enquanto os meninos ricos se divertem lá dentro, numa felicidade colorida e estrepitosa. É quando termina o soneto, com esta vergastada solene: "chora a injustiça da cidade, na cara suja dos garotos".

Afonso Schmidt, em toda essa obra poética, revela, na forma perfeita do verso, uma inspiração fresca e vibrante. Vê-se aí que o poeta tem alma e que nele a poesia não é apenas uma crise emocional da adolescência, como sucede com muitos. Pena é que o poeta deixasse depois o ritmo musical das estrofes, para se dedicar tão só ao romance e ao conto.

Essa é a razão pela qual muita gente desconhece no autor recente da prosa abundante, enfeixada em tantos e tantos livros, o lírico parnasiano de outros tempos.


Afonso Schmidt

Clóvis P. de Carvalho

Pode-se dizer com segurança que a Academia Santista de Letras está iniciando suas atividades. O acadêmico Durwal Ferreira, incansável, diligente e principalmente consciente do papel que representará a Academia no futuro de Santos, não vacilou em convocar seus colegas, pedindo-lhes que escrevessem alguma coisa sobre o autor de Menino Felipe. O pedido tinha sua razão de ser: há 50 anos, em 1905, aparecia o primeiro livro, de autoria de Afonso.

Diante de tão grata efeméride, tratando-se de justíssima homenagem a um dos elementos mais representativos do grupo de literatos da cidade, no presente momento, não poderíamos silenciar frente ao apelo que nos foi formulado. Daí, passamos imediatamente ao trabalho sempre agradável de reler Menino Felipe e O Retrato de Valentina.

Não pretendemos fazer estudo crítico sobre o romance, nem tampouco tecer longas considerações após a leitura dos contos enfeixados no Retrato. Não. Nosso objetivo é lembrar aos moços santistas, à juventude estudiosa e até mesmo àqueles que se esquivam de melhor conhecer os autênticos valores literários de Santos, o escritor, o romancista de primeira linha que se encontra em Afonso Schmidt. Nós outros estamos na obrigação e temos o dever indeclinável de levar aos nossos filhos, aos filhos de nossos amigos, aos conhecidos e desconhecidos também, um pouco dessas existências, dessas vidas, como a de Afonso Schmidt, autêntica glória literária de sua gente, de seu povo.

Nascido em Cubatão, no ano de 1800 (N.E.: SIC. correto é 1890), é Afonso Schmidt santista de boa cepa. Naquele tempo, os que vinham ao mundo por aquelas bandas, Serra-abaixo, excluído São Vicente (Município), eram santistas e não perderam a cidadania mesmo depois que criado foi o novo Município. Mas, nossa preocupação não é reivindicar a naturalidade de Afonso. Surgiu este aspecto de sua vida, incidentemente, neste trabalho. Acima de qualquer tendência bairrista, colocamos sua nacionalidade brasileira. É Afonso Schmidt uma legítima glória da literatura brasileira, um autêntico valor literário no Brasil atual.

Aliás, essa posição de destaque de romancista e escritor que ele é, vem desde sua iniciação no mundo das letras. Posteriormente, isto é, com a publicação de quase ou mais de vinte volumes (contos, romances, poesias, teatro etc.), ratificava o ilustre santista aquela posição de destaque a que nos referimos e ganhava também, no meio do público ledor, legiões de admiradores, embevecidos com seu estilo simples e primoroso. Afonso Schmidt não tem tido a preocupação de formar escola, de se constituir líder de uma corrente literária, de ser dono e senhor de um estilo diferente... Não.

O magnífico autor do Menino Felipe é simples como já dissemos e modesto demais. Escrevendo agrada, satisfaz ao leitor, que logo passa a ser ardoroso fã de suas expressões como escritor e romancista. Hoje, Cubatão, São Vicente e Santos são cidades imortalizadas por sua prosa, pelos seus versos também. Schmidt não teve essa preocupação - repetimos -, mas, seu estilo, seu talento literário, operou tudo aquilo que expressamos neste rápido trabalho.

Fazendo essa afirmação, não nos podemos furtar ao desejo de transcrever "um pedacinho", um tópico apenas de Menino Felipe. Vamos abrir o livro assim, pronto: página 70, edição de 1950, da Empresa Gráfica O Cruzeiro S.A.

Nessa página, escolhida em função do acaso, lemos o seguinte:

"Pois assim mesmo aquela casa encontrara inquilinos. Certa manhã, uma mulher com a filha chegaram pela ponte, com uma trouxinha de roupa, como se estivessem dispostas a subir a serra. Ali entraram para descansar. Como estivessem no último estado de penúria, foram socorridas pelas mulheres do bairro. Ficaram. A mãe lavava roupa de ganho, a filha passava o dia inteiro de casa em casa, aceitando aqui um café com pão, ali um naco de broa com febra de carne assada. A mulher andava cheia de rosários, amuletos, livrinhos de rezas. Benzia, tirava quebranto, curava mau-olhado, espinhela caída. Sabia rezas fortes. Conhecia os santos de todo o mundo e os outros, os que superintendem sobre caxumbas, suspensões, atrasos de vida e cônjuges que viram a cabeça.

"Minha mãe chegou comigo no colo, seguida das duas velhas de xale na cabeça. Foi entrando na casa da Rolada. Mas estava muito escura. Apenas um candieiro de querosene suspenso à parede, descochando o seu crepe de fumaça. Nem vivalma. Em certo ponto, o assoalho tinha arriado. Daquele buraco emergiam galhos de plantas. E como as telhas tivessem corrido umas sobre outras, a vista habituada via dali o céu com suas estrelas. Ouviu-se uma voz áspera:

"-Entrem pra cá, não tenham medo.

"A Rolada estava no quarto contíguo, mais conservado. Entre duas pilhas de roupa limpa, fazia  contagem das peças para entrega, no dia seguinte. Ao ver-nos, levantou-se, correu para nós, parou a uma braça de distância e tomou um ar inspirado:

"- Não percisa falá.

"Tomou-me no colo magro, deitou-me resupino nos braços tisnados, adiantou-se para a parte derruída do casebre e como me apresentou a uma potestade que lá devia estar, mas que ninguém via. Pôs-se a mascar rezas misteriosas, cabeça erguida, os olhos pregados nas ripas vergadas ao peso das telhas. Pelo rosto cor de cuia caíam-lhe lágrimas grossas e brilhantes. Depois, apoiando-me do lado esquerdo, benzeu-me com a direita espalmada. Feitas essas manigâncias, voltou-se para as três mulheres, entregou-me a chorar e sentenciou:

"- Ele agora só tem sono. Amanhã, estará pronto para outra".

Aí fica uma página do Menino Felipe. É, no dizer dos críticos, aquele livro, a autobiografia do romancista. Adiantamos apenas que seu estilo é realmente simples e primoroso e o tem consagrado literariamente. É só o que podemos dizer por hoje. O Retrato de Valentina será um outro capítulo de nossos trabalhos, se para tanto nos ajudar "o engenho e a arte". Resta-nos também a satisfação desta justíssima homenagem ao santista ilustre que é Afonso Schmidt.


Um escritor diferente

A. Augusto Lopes

Quando em 1911, nesta cidade, Afonso Schmidt publicou seu primeiro livro de versos, Janelas Abertas, seu nome já era conhecido e sua poesia apreciada, através de assídua estampa nos jornais da época. Rodeava-lhe a personalidade, o prestígio literário de uma consagração precoce, ao moço, quase menino, que se entusiasmara pelo livro de Enrique Murger e fora viver algum tempo na Europa, sem dinheiro, as cenas da vida boêmia que o velho Puccini transportou para os palcos da ópera lírica.

Foi homem de jornal, em nosso meio, até o ano de 1923, quando, já com mais um livro de poesias, Mocidade, e outro de contos, Brutalidade, se transferiu para a Capital, onde foi constituir família. Sua carreira ascendeu sempre, de maneira harmoniosa, na criação de uma obra de ficcionista rica de originalidade, nos mais diferentes gêneros, assim a crônica leve, a novela breve, como o teatro de tese ou o romance psicológico. Poeta impressionista e ao mesmo tempo afetivo, sempre soube comunicar-nos o fulgor duma estesia cada vez mais aprimorada.

Manejando, com igual desenvoltura e elegância, o verso e a prosa, Afonso Schmidt demonstrou possuir imaginação criadora inesgotável, provada na publicação de obras admiráveis na forma e no pensamento, como Garoa, Os Impunes, O Dragão e as Virgens, Zanzalá, Pirapora, A Marcha, O Assalto, A Sombra de Júlio Frank, O Menino Felipe e vários outros livros que opulentam a literatura brasileira contemporânea.

O gênio alemão, que herdou no sangue, e o gênio latino, que cultivou no convívio da leitura e da assimilação constante e íntima, nele se reuniram para compor individualidade talvez ímpar, em nosso País, que, a tantos anos de distância do livro de estréia, ainda conserva o vigoroso ímpeto inicial, ainda se mantém fiel ao tesouro de expressões espirituais da primeira hora, sem se dobrar à sedução das vogas transitórias, aos influxos das correntes sectárias, com que lhe acenaram gerações literárias ulteriores.

Sempre igual a si mesma, não temendo isolar-se para ser sincera, a obra literária de Afonso Schmidt sobreviverá, inalterável, ao seu autor, porque tem aquela substância de beleza e verdade que lhe assegura a durabilidade, a persistência indefinida.


Afonso Schmidt

Maria José Aranha de Rezende

Neste dia de festa para as letras paulistas, quando se comemora o jubileu de ouro do aparecimento do primeiro livro de Afonso Schmidt, independentemente da admiração que lhe consagro como sua assídua leitora, não poderia deixar de depositar nesta folha, em sua homenagem, a flor da minha mais sincera amizade.

Com que emoção mal contida deverá o grande escritor, tão modesto e tão simples, percorrer os olhos por essas páginas destinadas à sua pessoa, ele que sempre se oculta, fugindo a qualquer forma de publicidade!

Mas, não lhe escapará também a delicadeza dessa oferenda espiritual, com que os seus amigos festejam o meio século da sua fecunda contribuição para a nossa literatura.

O homem maduro de hoje verá coroado o ideal do moço de ontem, depois de longa jornada, notando as mudanças inevitáveis, mas sentindo ainda acesa a mesma lâmpada que luta contra o vento que a tenta apagar. Giramos sobre nós mesmos como um astro entre a luz e a treva. Continuamos, entretanto, a ser sempre aquilo que fomos desde o começo.

Afonso Schmidt, apesar da farta seara dos seus livros de contos e romances de ficção, permanece sempre com a alma lírica do poeta de Janelas Abertas, continua a ter sempre "vinte anos em algum canto do coração". Olhando conjuntamente a sua obra poética e os seus livros de prosa, surpreende-nos a enorme produção desse homem calmo, modesto, sereno, que pôde construir sem (N.E.: palavra ilegível no original), trabalhar sem alarde, produzir sem ruído.

Em todas as suas produções, a pureza de sua alma sempre permaneceu ilesa. Por isso, em toda sua obra, palpita aquela chama emotiva e humana a apurar ainda mais o seu estilo amplo, correntio, sem formas fixas nem rebuscado de expressões mas com naturalidade e clareza de quem pensa com inteligência e escreve como pensa.

Atrai-nos nos seus livros, sobretudo, a compreensão dos males sociais, a tristeza diante da visão dolorosa da injustiça que impera no mundo, e não obstante, a fé que alimenta por um porvir mais humano, a confiança nos homens, o amor pelas coisas elevadas e nobres.

No seu esplêndido isolamento, Afonso Schmidt, apesar dos prêmios literários que já obteve e da fama que justamente tem granjeado como um dos marcantes escritores da nossa pátria, há de sentir, porque é um bom, a estima dos seus amigos nesta singela homenagem que lhe é prestada pela imprensa dessa terra que é também sua, pela breve distância que a separa do seu berço natal e pelos laços que apertam com afetividade os nossos corações!


Afonso Schmidt

Mariano Gomes

Está-se festejando o jubileu literário de Afonso Schmidt - 50 anos em oblação ao jornalismo e às letras. Magnífica idéia!

Em minha modesta vida literária Afonso Schmidt tem um lugar especialíssimo: - foi ele quem, sendo redator da A Tribuna, aí por volta de 1918, recebeu e publicou meus primeiros versos na sua página literária domingueira. Acredito que se ele então os houvesse recusado, teria liquidado de vez com o meu incipiente prurido de poetar. Ele, porém, sem me conhecer, sem que eu lhe fosse recomendado por ninguém, acolheu-me com tanta lhaneza e bondade que cheguei a supor devesse continuar a perpetrar outros versos.

Guardo-lhe no coração, por isso, indeclinável reconhecimento, não porque me tenha convencido de que havia em mim um poeta de verdade ou que valeria a pena continuar a fazer versos - pobres versos que nunca fariam mal a ninguém -, mas porque me alentou a crer na poesia e me proporcionou confortadores momentos de íntima satisfação na vida.

Piedosa, consolatriz, a Arte preenche muitos vazios que trazemos no coração.

Levo a Afonso Schmidt, que facilitou a publicação daqueles primeiros versos, e a Martins Fontes, que, anos depois, lia em público alguns dos poemas da minha primeira mocidade, indelével, infinita gratidão.

Voltando ao Jubileu de Schmidt, permito-me observar aos amigos que lhe estão promovendo a carinhosa e merecidíssima homenagem, que ele já publicava suas primeiras poesias lá por 1903 e 1904, segundo leio no prefácio da primeira edição de Janelas Abertas, impresso em São Paulo em 1911 e distinguido com menção honrosa da Academia Brasileira de Letras em 1912, pelo voto insuspeito de Sílvio Romero.

Verdade é que, só em 1906, após regressar da Europa, onde perambulara por um ano, se entregaria Afonso Schmidt definitiva e permanentemente ao jornal e ao livro, podendo hoje mostrar ao Brasil uma das mais sugestivas e opulentas bagagens de poeta, contista, ensaísta, teatrólogo e romancista, cinco vezes premiado pela Academia Brasileira de Letras, vencedor do 1º grande concurso de O Cruzeiro, além de outros lauréis.

Schmidt é legítima glória de Santos. E alcançou-a pelo esforço próprio, pela inteligência, pelo amor às letras, numa imolação constante, lutando e sonhando sempre.

Espírito visionário e inquieto, é, sem dúvida, uma das mais altas expressões de nossa literatura e da cultura continental.

Merece o louvor sem restrições dos que podem avaliar o sofrimento, a tortura de quem escreve no Brasil, e vive do que escreve.

Bravo, Afonso Schmidt, meu generoso animador!


Afonso Schmidt

Edmundo Amaral

Afonso Schmidt nasceu em Santos, quer dizer em Cubatão. Nasceu, numa parada de trem do percurso Santos a São Paulo, junto a um bambual que corre rente às plantações de banana. Nasceu no tempo em que ainda fazia calor em Santos e o sol refletia na areia prateada e era um "deslumbramento e mais deslumbramento". E essa parada de trem era toda colorida e iluminada, lembrando um "cromo de tampa de caixa de goma das antigas".

Eu conheci Schmidt na velha redação do Comércio de Santos. Fui-lhe apresentado pelo Nilo Costa, com seu ar de gigante louro, meio estourado, mas infinitamente bom, cheio de generosidade e de talento. Quanto ao Schmidt só mais tarde o fui conhecendo melhor, só mais tarde foi que conheci as Janelas Abertas, por onde entrou minha admiração pelo poeta, o Menino Felipe, As Impunes e outras obras-primas.

O que mais me fascinou na personalidade de Schmidt foi o seu talento e a sua personalidade generosa, não só como escritor, mas também como homem.

Schmidt é daqueles que ajudam, animam, que dão o braço ao trôpego, socorro aos inibidos. A par disso, uma grande e generosa modéstia; no bonde senta-se no último banco, na vida cede o seu melhor lugar, daí o seu prestígio, a sua glória.

Esse homem, quase um tímido, tem traços de audácia. Um dia, sem dinheiro no bolso, só com a passagem, embarcou para a Europa.

É difícil num simples artigo falar da personalidade de Schmidt.

Neste momento, é permitida só uma evocação. E é nessa evocação que lembramos o grande escritor.


Esteta e estilista

Nicanor Ortiz

Afonso Schmidt é um dos nossos excelentes escritores. Prosador delicioso, original, por vezes lembrando os melhores beletristas. Correto por natureza, a sua linguagem agrada pela simplicidade e elegância. Nos seus romances, permanece no mesmo plano dos novelistas da nossa época de ouro. E nos faz lembrar a suavidade de Alencar e o estilo bonito de Humberto de Campos.

Na poesia, sempre o tive entre os nossos grandes vates, com vantagem sobre muitos que começaram mal e mal estão terminando. É sempre novo, longe do modernismo rampeiro e desgracioso que se corrompeu como o ovo que apodrece antes de chocado...

Quando estudante lemos os versos das Janelas Abertas: cantantes, cheios de harmonia, com perfume e viço da primavera. No seu livro de poesias completas, a gente sorri à leitura de cada estrofe: ele, Schmidt, é o mesmo, na sua singeleza, vestido na roupagem limpa de quem tem horror ao atavio, à gravata de ramagem, às meias de cores berrantes, às camisas de sete tons. No entanto, ainda não despiu o seu estilo, como fazem certas criaturas que vão aos banquetes em mangas regaçadas e peito à vela ou entram nas igrejas de calças curtas, gorro no cocuruto e pés em sandálias de couro trançado. A sua linguagem é sempre higienizada pela forma escorreita, pela música da frase e beleza das idéias.

Deve ter aversão à poesia dessas ingênuas mocinhas que deram à gaia arte de trovar muita coisa da sua histeria literária que a irmandade dos desencantados apóia nos concursos dos jornais.

Ao Schmidt, amigo e irmão, amigo cujas mãos nem sempre aperto e irmão de sonho que não mais sonhamos.


Jubileu literário

Durwal Ferreira

Afonso Schmidt, cujo quinquagésimo ano de vida literária estamos celebrando, tinha as janelas fechadas. Os receios dos primeiros passos, "os lírios roxos" da sua modéstia. Entreabriu um dia essas janelas, e mais animado declarou na explicação de abertura de seu primeiro livro de versos, Lírios Roxos, publicado em 1906: "São más é verdade, mas são puramente minhas! - o que muita gente não ousa dizer".

Esta é a atitude de quem num repente se toma de coragem e lança-se à luta. É inciso na sua afirmativa sobre as poesias aí enfeixadas. E assim termina: "Enfim, já que estais no patamar deste castelo, entrai e depois de admirardes os lavores, as panóplias e os lírios da Paros, a Crítica me dirá a vossa opinião!" Note-se-lhe o ponto de exclamação empregado para finalizar a sua declaração. Dá a impressão de alguém que aparenta coragem, mas intimamente tem o coração pulsando descompassadamente.

Em dias não distantes ele abre inteiramente as janelas. Concorre ao prêmio de poesia instituído pela Academia Brasileira de Letras e conquista o primeiro prêmio com o livro Janelas Abertas.

E para sempre ficaram as janelas abertas, por onde a natureza inteira entrou a inspirar-lhe a poesia do nada que o homem insiste em denegri-la. E sempre dessas janelas abertas saíram os raios luminosos do seu talento que tanto penetram e calam fundo a alma da gente humilde como dos maiores. São as [obras] da sua forja, por isto mesmo, numa feliz inspiração idealizou um "Ex-libris", estampado no livro Poesias: em cima de um cepo, a bigorna, e ao alto uma estrela de primeira grandeza. O trabalho contínuo e os louros desse trabalho honesto.

Não ficou pendurado nas janelas, contemplando o quadro da vitória, porque o tempo passa e tudo leva. Conservou-as abertas para a entrada triunfal da Inspiração e fazer-se ouvido o trabalho bem sonante de uma forja bem montada. O que sai do fundo da alma, filtrado pelo cérebro, tem a harmonia dos sons que o vento leva a grandes distâncias.

Janelas simples, iguais à que ele viu por esse mundo afora e perpetuou nas suas obras, a dizer que são sempre novas, sempre belas, sempre alegres.

A glória sorriu-lhe e parece que ele ainda não deu por ela.

OBRAS DE AFONSO SCHMIDT

Poesia

1 - Lírios Roxos

2 - Janelas Abertas

3 - Mocidade

4 - Garoa

5 - Poesias

 

Romances

1 - A sombra de Júlio Frank

2 - A vida de Paulo Eiró

3 - A Marcha

4 - O Assalto

5 - Menino Felipe

6 - Bom Tempo

7 - Primeira Viagem

8 - Saltimbancos

 

Novelas

1 - O Dragão e as Virgens

2 - Zanzalá

3 - Reino do Céu

4 - Colônia Cecília

5 - Aventuras de Indalécio

 

Contos

1 - Brutalidade

2 - Os Impunes

3 - Pirapora

4 - Curiango

5 - Tesouro de Cananéia

6 - Retrato de Valentina

7 - Os melhores contos de Afonso Schmidt

 

História

1 - No tempo do Protocolo...

 

Teatro

1 - As levianas

2 - Carne para canhão (e tradução para o espanhol)

3 - Cesta de hortaliças

 

Crônicas espiritualistas

1 - Somos todos irmãos

2 - Zamir

Semelhança

Afonso Schmidt

Como esse velho que de porta em porta

Pálido anda a tocar modas funestas

De cabeleira branca, faces mestas

Que a nossa alma sensível desconforta!

 

Como o velho que afronta o frio que corta

Embora o vento zuna pelas frestas

E de guitarra em punho, faces mestas

Pálido anda a tocar de porta em porta

 

Sim sou eu... É sério o que vos digo

Embora em vossos lábios brote o riso

- Lâmina dum punhal a que bendigo:

 

Ando a cantar meus versos pelas portas

Para ganhar a esmola dum sorriso

Sob o teu balcão, pelas horas mortas!

("Lírios Roxos")


A Beleza

Afonso Schmidt

Neste crisol do coração, Beleza

que iluminas a nossa noite escura,

és a Bondade - que se fez Grandeza

e a Dor sofrida - que se fez Doçura

 

És a muda expressão da Natureza;

beijo no amor, sorriso na candura,

prece na morte, pranto na tristeza

e, para os poetas, mística tortura.

 

Ninféia azul no pântano estagnado,

flores brotando na aridez das lousas,

ou mistério no páramo estrelado,

 

em tudo o que nos cerca, tu repousas,

porque a Beleza é Deus manifestado,

a nos sorrir pela expressão das cousas.

("Mocidade")


Rosas loucas

Afonso Schmidt

A rosa louca é a rosa mais singela

de todas as rosas, mas é bela

porque nasce nas cercas, nos caminhos

e conta menos flores do que espinhos.

A rosa louca é a rosa mais plebéia

dentre todas as rosas, traz à idéia

a moçoila do bairro, tão bonita

com vestidos de cor, feitos de chita.

A rosa louca é a rosa que se olha

sem na tirar do pé, porque desfolha;

ela pede perdão de não ter graça;

desponta, desabrocha, encanta... e passa.

Estas rosas são breves e são poucas,

como o riso feliz em nossas bocas...

("Garoa")


Caras sujas

Afonso Schmidt

Ao longo destas avenidas,

recordação de velhas lendas,

cantam as chácaras floridas

com suas líricas vivendas.

 

Lá dentro, há risos, jogos, danças,

crástinas, módulas fanfarras,

um pandemônio de crianças,

um zagarreio de cigarras.

 

Fora, penduram-se na grade

os pobres, como gafanhotos;

têm dos outros a mesma idade,

 

mas estão pálidos e rotos.

Chora a injustiça da cidade

na cara suja dos garotos.

("Janelas Abertas")

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