Página 11 da revista Fundamentos de janeiro de 1954
Imagem: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Página 12 da revista Fundamentos de janeiro de 1954
Imagem: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Os exilados de 1905
Afonso Schmidt
Nos meses seguintes, passando pelo hotel da Rue d'Assas,
o porteiro Legras chamava-me e entregava-me novas cartas do Brasil, com cheques... Mas, para quê? E o pior era que não podia comunicar-me com a
família, aconselhá-la a preferir outro banco, menos complicado, para mandar-me a mesada de quatrocentos francos... Um drama.
Por essa altura, já conhecia todos os cantos de Paris. Muito melhor que o comum dos
viajantes. A escassez de recursos havia-me desviado da trilha que o comércio organizado prepara, antecipadamente, para receber os turistas. Estes
desembarcavam na estação e eram levados para o hotel, de acordo com as suas posses. Do hotel, para o teatro. Do teatro, para os cafés-concertos.
Passeavam de carruagem pelo Bois de Boulogne. Uma vez por semana, Long-champs. Entre um passeio e outro, visita com cicerone aos museus do Louvre,
Luxemburg e Cluny, ao domo dos Inválidos etc. E giros pelos grandes boulevards. Comigo - ai de mim! - não se deu a mesma coisa. Ao
desembarcar, caí no grand Paris. Mal tive hotel para os primeiros tempos. Não fui ao teatro, ao café-concerto, aos estabelecimentos, onde se
pagava para entrar. Não tive nada disso. Fiquei-me a trocar as pernas pela beira do rio, a ler alfarrábios no cais Malacquais, a fumar compridas
cachimbadas nos bancos de Luxemburg.
País não percebeu a minha presença... Por isso, dentro de algum tempo, eu já
arremedava com certo brilho o argot das Fortifs. Arranhava a linguagem imaginosa dos pequenos cafés do Boul Mich. "Café Biard, dix
centimes la tasse". Ou tinha estudadas preferências entre os cubos de alimentos concentrados Liegig, entre os modestos boullons da Rue da
la Boule. Morava por esse tempo - a expressão é um tanto exagerada - no Quartier des Écoles. Durante o inverno, conheci todas as esquinas, onde a
prefeitura acendia panelas de alcatrão para delícia dos pobres. E a famosa canjica das irmãs peruanas, umas boas senhoras que se interessavam pela
sorte dos patrícios necessitados. Duas vezes por semana, eu representava de peruano. Tive de ir à Biblioteca e enfronhar-me na geografia e na vida
política da formosa República. Aquilo dava um trabalho...
Apesar disso, as coisas iam de mal a pior.
Uma noite em que parecia ter chovido açúcar branco sobre Paris, eu seguia pela Ponte
Nova a arrastar os pés, endurecidos pelo frio. Na outra banda da ponte, um sujeito pôs-se a chamar-me pelo nome. Seria possível: Lá vinha o Jean,
com dois livros debaixo do braço. O diacho do rapaz, depois da aula devia ter corrido os retalhistas de vinho da rive gauche. Estava,
visivelmente, com um grãozinho a mais na asa.
- Já recebeu o dinheiro?
- Ainda não.
- Como vive?
- Estou morrendo, com uma certa largueza...
Ele ficou impressionado, talvez mais do que eu. Depois lembrou-se de qualquer coisa.
- Você bem pode ser russo.
- Mas não sou.
- Pois, eu sou.
Ora essa! Quem diria? Te-lo-ia imaginado marroquino ou dominicano, tudo que quisessem,
menos russo.
- Mas, meu caro Jean, precisarei ser russo para alguma coisa?
- Precisa.
Ora, eu já havia sido peruano com uma certa eficiência, por que motivo não havia de
ser russo?
Cheio de bondade, levou-me a um café, onde retemperei as forças. A seguir, tomamos a
Rue do Louvre, chegamos ao velho Paris do Palais Royal e ali, num dédalo de ruas que me pareceram do tempo de Catarina de Médicis, tomamos a mais
modesta de todas. Parece-me que a Rue de l'Arbre Séc. O nome não vem ao caso. Era constituída de sobradinhos de dois andares, com óculos de
trapeiras a espiarem pelo teto de ardósia negra. Em baixo, estavam instaladas pequenas lojas: retalhistas de vinhos, cubículos de carvoeiros,
armazéns de bonés de couro e de alpercatas.
Entramos num daqueles imóveis. A porta estava aberta. No alojamento do porteiro, não
havia viv'alma. Segundo Jean me contou, aquele prédio tinha sido alugado por não se sabe quem, mas os poetas nas minhas condições encontravam ali
pouso seguro. Mais tarde, vim a saber que os seus inquilinos eram exilados russos de 1905. A Europa estava cheia deles. Ali viviam, trabalhavam e
estudavam. Entretanto, ele saudou o primeiro que encontrou no caminho:
- Dobre vêtchia!
A pessoa correspondeu ao seu cumprimento:
- Pajausta!
Era assim como se dissesse: à vontade, faça o favor... A gente entrava, acomodava-se
onde podia e ninguém indagava da procedência, nem do passado. O essencial era não importunar os demais. Em troca, ninguém incomodava o intruso.
Morei ali no fundo de um corredor, durante meses. Era uma espécie de popotte.
De manhã, o Griska, um rapazinho ruivo, cheio de sardas, passava por todos os
compartimentos com seu saquitel azul, fazendo a coleta para a sopa coletiva, o bosch, uma sopa quente, saborosa, perfumada. Quando eu tinha
uma moeda, o que não era muito freqüente, nem dava para criar praxe naquela bendita mansão, atirava-a no saquitel. O rapaz murmurava spassivo,
como a dizer obrigado, e prosseguia no caminho.
Quando eu não entrava com cousa alguma para o bolo, ele sorria. Eu também
sorria. Tenho a impressão de que aquele adorável Griska se tornava ainda mais amável quando eu não lhe dava coisa alguma. É que naquela família
ninguém brigava. Todos eram amáveis e se entendiam... O ambiente encantador.
Lá por cima, de manhã à noite, havia gente estudando violino, solfejando. Não raro,
uma voz áspera de mulher velha ensinava bailados, dando ordens como se estivesse diante de um pelotão. E as sandálias, simultaneamente, batiam sobre
o soalho, ensaiando passos de ballet.
De quando em quando, um vento de abundância animava o sobrado, quase nu de móveis. Era
quando um cavalheiro bem posto descia do carro e ia parlamentar com os rapazes. Não sei o que diziam. Também nunca procurei saber. Mas o fato é que
quando o homenzinho se retirava, o lépido Griska andava pela casa a sacudir algumas moedas na palma da mão: Rádesti! Rádesti! Esse era o seu
grito de alegria e de felicidade.
Não raro, alta noite, parava um carro à porta e mulheres vestidas como princesas
entravam pela casa a dentro, enchendo de risadas e perfumes os velhos corredores. Eram artistas que, terminado o espetáculo, vinham visitar os
patrícios. Não raro, traziam flores, garrafas de Bordeaux, barras de chocolate, jornais recebidos da pátria distante. E, com o decorrer do tempo,
fui entrando na intimidade daquela gente.
As moças moravam lá em cima, no grenier, e gozavam de certos privilégios.
Dormiam em camas, comiam em pratos, bebiam em copos. Quase todas eram estudantes. Os rapazes também. Apesar disso, trabalhavam em qualquer coisa. O
Griska, aluno do Conservatório de São Petersburgo, tocava piano das 2 às 6 horas, numa casa de músicas do Boulevard des Capucines. Os fregueses
chegavam lá, pediam as últimas novidades e ele ia para o piano, executando a Tonkinoise ou a Valse Brune.
O Vassili, a quem chamavam de Vaska, o homem mais forte que já vi neste mundo, saía de
manhã e voltava à noite. Era idoso. Quando estendia o braço, o Griska podia fazer nele exercícios de barra fixa. E o gigante ria. Não tinha barba,
nem cabelo. Seus traços eram de pedra. Parecia uma cariátide da Ponte Alexandre III. Trabalhava numa litografia. Transpirava ácidos. Onde estava,
era aquele cheiro de água-forte. Os demais estudavam Direito ou Medicina. As moças, quase todas, freqüentavam o Conservatório.
Vi-os dançarem, como nos quadros do Louvre. Vi-os cantarem em dueto, em coro,
músicas lindas que, não sei por que, tinham alguma coisa das nossas.
Durante a semana, só via as moças de passagem, sempre apressadas, sempre preocupadas
com as horas. Aos domingos, porém, elas entregavam-se à arrumação da casa. Esfregavam o chão, poliam os metais, punham uma certa ordem naquela
"república" de estudantes. Vestiam avental, amarravam um lenço na cabeça, arrastavam tinas de água suja de andar para andar. E ficavam
irreconhecíveis. Mas, gozavam infinitamente com o trabalho. Falavam, riam. Até comigo procuravam conversar.
Algumas delas eram formosas, mas não cuidavam da própria beleza. Cheguei mesmo a ter a
impressão de que não gostavam de ser belas: a beleza como que as incomodava. Por isso, usavam grandes óculos redondos, chapeuzinhos de crepe, como
as velhas, vestidos que de tão simples mais pareciam toalhas de cor, amarradas à cintura. No entanto, esse descaso, não sei por que, ainda as
tornava mais sedutoras.
Estou a lembrar-me de Natacha. Era uma mulher, cujos cabelos tanto podiam ser louros
prateados como brancos alourados: tanto podia contar vinte como setenta anos. Alguns companheiros chamavam-na de Bábuska. Uma vez, chamei-a por esse
nome e toda a casa se escangalhou de rir. Vão ver que era palavra inconveniente. Encabulei. Depois, Jean, que na realidade se chamava Boris,
explicou-me que bábuska quer dizer vovó. Era uma alusão aos seus cabelos que um dia seriam chamados de platinum blonde e
custariam fortunas para as elegantes do mundo inteiro.
As outras moças usavam cabelo penteado para trás e um bendengó na nuca, afetando muita
idade. Havia também as que, aparentemente, não se penteavam: os cabelos de ouro caiam-lhe pela testa e pelos ombros, malucamente. Quando saíam,
botavam na cabeça uma boina de veludo azul, como as dos pintores de Montmartre. Levavam a caixa do violino ou a pasta das músicas e iam cantando
pela rua, como se fossem moleques em dia de festa.
Nos domingos em que elas não esfregavam o chão, ficavam a conversar. As mais caseiras
lavavam a roupa com sabonete. E costuravam, cantando cantigas que pareciam brasileiras. À noite, todos se reuniam em torno de uma mesa. Ao centro,
fervia uma máquina de metal dourado a que chamavam de samovar. Bebia-se chá em copos, como água. E entornavam-se pequeninas taças de uma
aguardente cheirosa a que davam o nome de vodka. E cantavam. E dançavam. E repetiam anedotas, cujo sentido eu não chegava a perceber. Jean ou
Boris vinha nessas noites e depois de beber ficava silencioso num canto. Certa vez, mostrando-me a alegria daquelas moças e rapazes, contou-me:
- Muitos deles estão condenados à morte. Há mesmo os que já viram a corda nas mãos do
carrasco...
- Como escaparam? - perguntei eu.
E ele, abstrato:
- Não sei. Eles também não sabem...
Não se falou mais nisso.
Mas eu, afinal, era um menino, todos me tratavam como tal. Graças à sua bondade,
assisti a muitos espetáculos, fui a conferências em salões, tomei parte em alegres piqueniques em localidades cujos nomes a gente só encontra nos
romances.
Para falar a verdade, a vida estava muito melhor. Mas, um dia, Dona Saudade descobriu
aquele prédio, subiu a escada e bateu de mansinho à minha porta...
Página 10 da revista Fundamentos de janeiro de 1954
Imagem: ...E à noite todos se reuniam em torno de uma mesa
Imagem: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Zingarella
Poema de Afonso Schmidt
Certa noite, na Itália, quando eu vinha
para meu quarto, achei-a junto à porta;
era tão bela, mas tão pobrezinha!
De sono e frio estava quase morta.
Ela, pálida e franzina,
eu de sobretudo roto:
- Buona sera, signorina!
- Buona sera, giovanoto!
Ofereci-lhe o quarto de estudante,
de minha estreita cama fiz a sua,
e, enquanto ela dormia, palpitante,
eu vagava, sem teto, pela rua.
De manhã, voltando à casa,
perguntei o nome dela:
- Come ti chiami, ragazza?
- Io mi chiamo Zingarella.
Depois... Eu tinha vinte e três janeiros,
ela contava quinze primaveras.
Eram tão juntos nossos travesseiros...
Veio a paixão. Amamo-nos deveras...
Foi o quadro mais risonho
desta vida fugidia:
- Zingarella, sei mio sogno!
- E tu sei la vita mia!
Mas, um dia, ao voltar do meu estudo,
cheio de mágoas, de ânsias e de frio,
não encontrei seus sonhos de veludo:
o quarto estava gélido e vazio.
Grito embalde o nome dela,
numa tristeza infinita:
- Dove sei, o Zingalrella?
- Dove sei, o mia vita?
E a minha vida prosseguiu inglória...
Fiz coisas de rapaz... Não me envergonho
de recordar ainda aquela história,
quase desvanecida como um sonho:
ela, pálida e franzina,
eu, de sobretudo roto...
- Buona sera, signorina!
- Buona sera, giovanoto!
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