Página 4 da revista Fundamentos de janeiro de 1954
Imagem: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Página 5 da revista Fundamentos de janeiro de 1954
Imagem: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão
Schmidt o poeta na revolução de 24
Abguar Bastos
Quem vê Afonso Schmidt, falando baixo, gestos
sonolentos, sorriso ambíguo, entre felicidade e pessimismo, pensa que o romancista de Menino Felipe é um sonhador, com poucos esforços na
vida. Porém, na medida em que iniciamos uma descida aos subterrâneos das atividades cotidianas do homem, desde os famosos tempos do
anarquismo, até nossos angustiosos dias, vamos assombrando-nos com o seu terrível trabalho, com a sua famigerada onipresença na literatura e na
política.
É que sua maneira de servir às letras, aos congressos, às conspirações ideológicas, ao
jornal e à vida propriamente dita, é a diferente maneira deslizável e silenciosa com que uma aranha tece a teia.
Mestre Schmidt quando termina um livro não solta foguetes, não faz apitar a locomotiva
do escândalo público. Qual nada! Ao contrário: é na ponta dos pés, calçando lã, que mestre Schmidt se aproxima da primeira gaveta e enterra, sem
coroas e sem presença de amigos, a peça recém-produzida.
De repente há um comprido cochicho, um murmúrio de água de fonte, que rola entre os
que gozam da intimidade do poeta. Então, diz-se: - Parece que Schmidt tem um novo livro. - Mas permanece a incerteza...
Daí, já não surpreender quando Schmidt, quase com ar envergonhado, sopra, numa roda:
- A Editora X está interessada em algum dos meus livros. Acho que vou dar um romance
que devo ter por aí, em algum baú, feito... deixa ver se me lembro... feito, lá por 1932...
E tem. Não tem um. Tem dois, quatro, meia dúzia...
Quando O Cruzeiro fez o concurso de romances, com Cr$ 60.000,00 para o primeiro
lugar, mestre Schmidt sorriu por dentro, como é seu jeito. Comeu espagueti, leu Garcia Lorca, ouviu um samba-canção e murmurou:
- Parece que tenho qualquer coisa... a história de um menino... troço que fiz há uns
bons 10 anos. Se achar mando pro Cruzeiro.
Achou e mandou. Mandou e papou, sem nenhum sinal de indigestão, os sessenta mil
bagarotes. Todo o Brasil leu, então, o Menino Felipe.
Assim é Schmidt, como digo, abelha, se quiserem.
A todo instante Schmidt está surpreendendo. Quando ninguém esperava largou no mercado
Colonia Cecília, crônica sobre a primeira experiência anarquista, numa colônia, no Paraná.
Aí a gente conhece o lirismo e o verbalismo sonoro do poeta. Schmidt vai pensando e
vai escrevendo. Não é escritor de burilar, polir, amaciar, enfeitar. Toda a sua obra é uma torrente, espontânea, fluída. É dos que mais escrevem e
mais editam, neste Brasil. É possivelmente, com Monteiro Lobato, o mais lido em São Paulo.
E o seu prestígio intelectual é sólido, monolítico mesmo. Seja na cidade ou no sertão.
Onde mestre Schmidt entra, rodando o chapéu na mão, é de ver a alegria, o orgulho, em receber o mestre. Não é apenas admirado, é querido. Porque
Schmidt é fundamentalmente bom e humano. Não há crispações na sua alma. É um eterno moço, amando a vida, com pena da vida...
Como disse, Schmidt ama os tépidos silêncios. Apavora-se com a sua própria voz.
- Schmidt, estão pedindo para você falar no dia 7. É uma comemoração.
O mestre fica de testa franzida, sacode os braços:
- Não falo, não gosto de falar, não sei falar!
- Um discurso ligeiro...
- Que discurso, nada! Não quero, não vou, não falo!...
E não fala. Só gosta de escrever, de tecer, sob o teto da solidão.
Contudo, a história das grandes lutas sociais registra constantemente o nome de
Schmidt. Pode não falar. Mas está presente e escreve. Não só escreve, agüenta, tranqüilo e calado, as conseqüências. No fundo tem uma têmpera
inimitável. Sob a crosta de tão magnífica mansuetude, está um homem tremendamente forte nas suas idéias e nos seus princípios.
Schmidt, inteiro, e sozinho, é uma geração de ideais e lutas, fracassos e vitórias.
São Paulo sem Schmidt não seria realisticamente identificado, porque ali não vive apenas o romancista, mas o intimerato historiador, o eterno amante
do passado, das glórias passadas. E ninguém mais autorizado do que ele sobre certos assuntos, porque geralmente quase sempre participa dos assuntos,
porque ninguém como ele, com vida mais movimentada, andeja e complexa.
Mas hoje quero falar de um Schmidt que o tempo já riscou do mapa emotivo das multidões
- o Schmidt poeta, e o que será mais curioso: o poeta revolucionário.
Isto foi entre 1924 e 1930. Como sabeis, houve uma revolução em 24, outra em 1930. As
coisas iam tão mal, como hoje. Havia miséria, fome, desemprego, corrupção, roubalheiras, opressão, trabucos funcionando depois da meia-noite.
Liquidaram João Pessoa na Paraíba. E fez-se uma revolução "para salvar o Brasil".
É claro que todo mundo ansiava por uma baderna em grande estilo, que sacudisse fora os
culpados pela derrocada.
Os mesmos insurretos de 1924 se reuniam, conspiravam. Entre eles o capitão Prestes.
Mas, em 1930, o capitão pulou pra trás e disse que só se meteria numa revolução
que nacionalizasse e socializasse o que fosse mais essencial ao bem do povo. A tenentada não quis conversar sobre o assunto e o capitão não se meteu
no barulho.
Mas o poeta Schmidt estava acordado. Via tudo muito claro, muito limpo. A revolução
era necessária, mas seria melhor se o capitão estivesse presente. E os paulistas leram:
Prestes, o cavaleiro da esperança
Surgiu no extremo Sul de nossa terra, à frente
De uns homens de metal, e aquele batalhão
Cortou em linha reta o pampa reluzente
E em linha reta entrou pelo escuro sertão.
Destes pagos do Sul que a carqueja colore
Às cantigas do Norte, onde o ar cheira a mel
Não há patrício meu que a recordar não chore
O cavaleiro santo, o de São Gabriel.
Ao longo do Brasil, se todos os gemidos
Por um milagre a gente pudesse escutar,
O coro redolente e vão dos oprimidos
Seria mais profundo e triste que o do mar.
Mas ele há de escutar, e ao trom da sua gente,
A terra há de tremer e os brutos fugirão;
Há de vir até nós, abrindo no poente,
Uma estrada de luz a golpes de facão!
Esta poesia é de 1929, o ano em que lavrava a inquietação nacional, que culminaria em
outubro do ano seguinte com a queda do Governo Federal e ascensão de novos senhores.
Em 1924, a revolução contagiava todo o mundo, principalmente os moços, principalmente
os poetas. E os paulistas leram:
Barcarola
Meia dúzia de bandidos
enche a terra de gemidos
porque os homens desunidos
lamentam-se e nada mais;
Se o nosso povo quisesse
a terra seria messe
que o ano inteiro floresce
e não se extingue jamais.
Povo! Eu sei! Na tua casa
o fogão já não tem brasa
e o pranto os olhos arrasa
quando vês os filhos nus;
solta, afinal, o teu grito,
verbo feito de granito
que tombando do infinito
traça roteiros de luz.
......................................
Sobre o bairro que semelha
o brasido de uma grelha
ergue a Bandeira Vermelha
da nossa revolução;
este momento não volta.
Aproveita! As iras solta!
Contra a miséria, a revolta!
Contra os fortes, o canhão!
Lá estava, vigilante, atento, insuflando brios ao povo, alcançando a flâmula da poesia
condoreira, que fizera a glória de Castro Alves, lá estava, envolto naquele silêncio paradoxal que continha as mais retumbantes vozes do tempo, lá
estava, de atalaia, o poeta Schmidt. E os paulistas ouviram:
A palavra da esperança
Nos bairros pobres da cidade,
a noite é má, o frio corta...
Diz uma voz com ansiedade:
- A fome bate em nossa porta!
................................................
O ouro bendito do trabalho
nutre a vaidade das panteras;
o deus Plutão fez um serralho,
Creso comprou as primaveras
................................................
Talvez daqui a poucos meses
a vida fique boa e mansa
Porque o canhão, algumas vezes
diz a palavra da Esperança!
Esta poesia é de 1924, ano da revolução paulista, que deu motivo à Coluna Prestes. O
quadro que o poeta mostra não tem diferença do que se passa hoje. E a sua voz é altaneira, coruscante e enfática! E os paulistas ouviram:
Na cidade e nos campos
Menino pálido, vai à escola
e acalenta um desejo no caminho;
mendigo de bordão e de sacola,
menos pobre de pão que de carinho.
Mulher que na oficina se estiola
e canta, presa, como um passarinho;
matuto que ponteia na viola
enquanto o dia cai devagarinho.
Todo aquele que pensa, que trabalha,
que sente a vida, pela terra espalha
o sonho desta nova geração.
E as altas chaminés das oficinas
estendem pelos bairros e campinas
Nove letras de sol: REVOLUÇÃO!
Mestre Schmidt continuava auriflamando o verbo, sem medo das vinditas, desafiando a
opressão, grande e varonil na sua pregação.
E os paulistas ainda ouviram, misturado o som ao tropel da cavalgada que invadia o
sertão, com Prestes, Siqueira Campos, Miguel Costa e outros:
O lenço vermelho
Quando o canhão rugiu na noite, um deus
arrancou-lhe da boca a luz, e, com assombro,
viu que tinha nas mãos um farrapo vermelho,
e, sem saber por que, atirou-o ao ombro.
O soldado que o viu fez outro tanto e logo
quando desabrochou nos longes o arrebol
pela cochilha azul vinte mil cavaleiros
traziam no pescoço um punhado de sol.
Depois foi a nação. Quem tinha dentro d'alma
uma gota de luz fez um palmo de seda,
e tingiu-a de sangue e encharcou-a de sonho,
desdobrou-a, no céu, como uma labareda.
É assim que, amanhã, quando todos os homens
atarem ao pescoço os seus lenços vermelhos,
o povo ficará como se o sol entrasse
em trinta e seis milhões de límpidos espelhos!
Eis o ponto alto da poética revolucionária de Schmidt, em 1924. A poesia acima é
datada de 1927. Nesta altura a epopéia da Coluna Prestes era o grande fanal do nosso povo.
E Schmidt, tocado pela veneração aos heróis, escreve uma peça de rara envergadura
poética, que é autêntico hino.
Este é o Schmidt de 1924. Forte e audaz. Semeando a semente, semeando a semente...
Acordando, de madrugada, para ver as rútilas searas...
E não se fatiga nunca. Ao contrário: rejuvenesce
todos os anos, porque mestre Schmidt conhece o segredo de se criar a si mesmo.
Aos seus concidadãos, aos muitos amigos que possui
no Brasil e no exterior, Fundamentos reitera o apelo que nunca é demais repetir: é um dever de todos os homens de inteligência e cultura
lutar pela liberdade de Prestes, pela legalidade do seu Partido. Ele é a lúcida bandeira, o mestre e o amigo de cada um de nós, brasileiros, na
defesa comum da dignidade humana, dos direitos democráticos, da emancipação nacional, da convivência pacífica entre todas as nações, dos anseios de
progresso, enfim, que nos podem unir independentemente de filiações políticas e ideológicas, de escolas ou tendências literárias e artísticas.
Os redatores de Fundamentos procurarão ser sempre fiéis à sua lição e ao seu exemplo.
Que Luís Carlos Prestes possa continuar, por muitos anos ainda, o bom combate contra os inimigos do nosso país e do nosso povo. |