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Narciso, o vento e as maresias
Maurílio Tadeu de Campos (*)
Colaborador
Conheci Narciso de Andrade, num primeiro momento, através de suas crônicas que
eram publicadas em A Tribuna. Ali aprendi a perceber nele um escritor digno de ser admirado e imitado. Naquela época, ele era para mim apenas
um nome, um quase mito. Estava ligado a outros escritores como Roldão Mendes Rosa,
por exemplo. Eu imaginava como seria bom conviver com esses intelectuais e o quanto aprenderia com eles. Depois, conheci os poemas de Narciso,
jamais editados em livros, mas que podiam ser lidos em jornais. Revelavam um talento e uma sensibilidade comparáveis às dos grandes escritores.
Então, me perguntava: por que essas crônicas e poemas não estavam reunidos em livro? Onde poderia encontrar algo mais sobre Narciso de Andrade?
O tempo foi passando e a admiração por aquele personagem, fisicamente desconhecido mas já bastante íntimo quando
encravado nos textos de sua autoria, cresceu e deu a mim um dever de quase idolatria.
Onde andaria Narciso? Minha pergunta sem resposta remeteu-me a sair procurando, indagando... Uma pessoa amiga, um
dia, deu-me o endereço de Narciso, pois eu estava coordenando um concurso literário e a idéia seria aproveitar a oportunidade para homenagear um
poeta. Claro que a escolha recaiu sobre Narciso. Ele aceitaria a homenagem?
Na casa de Narciso, fui recebido por d. Amélia, sua esposa, gentilíssima. Ela foi, de início, a intermediária no
contato com o poeta. Consegui a autorização.
Precisei retornar à casa de Narciso para que fossem escolhidos alguns poemas seus para ser interpretados na noite
da premiação do concurso. Dessa vez o próprio Narciso me recebeu. Finalmente o escritor revelou-se a mim fisicamente, um ídolo mostrando-se ao seu
admirador. Sua figura simpática, sempre sorridente e amável saudou-me com emoção, percebi. Eu também estava emocionado. Esse contato foi o início de
uma grande amizade.
Mais uma visita e já estava eu amigo de fato do meu quase mito. Falamos de poesia por quase três horas. A modéstia
não permitia que ele ficasse prosa com os elogios que eu fazia aos seus poemas, à sua pessoa.
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Como poucos, o poeta soube como trabalhar as palavras
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A homenagem e a premiação do concurso aconteceram no dia 13 de maio de 2005, no
Teatro Municipal, em clima de emoção e muita energia, reveladas pelos poetas finalistas e transmitidas a
todos através da presença de Narciso de Andrade, um poeta de fato, grandioso, feliz. Ele estava onde gostava, entre amigos, no meio de poetas. A
emoção estampada no rosto de Narciso e de seus familiares encheu a noite de brilho. A homenagem tornou-se pequena, diante de um grande escritor e
poeta. E lá estava ele, presente, comovido.
Passada essa noite mágica, surgiu uma preocupação: a homenagem acabaria ali, sem que outros momentos iguais
pudessem acontecer, em reconhecimento a esse grande poeta?
Narciso soube, como poucos, trabalhar as palavras e usá-las para demonstrar seu singular talento e nos transmitir
mensagens e impressões que só a real sensibilidade pode capar e reproduzir. E, só por isso, não fosse por inúmeras outras qualidades que possui o
cidadão Narciso de Andrade, as homenagens devem continuar, sejam elas simples ou grandiosas, mas sempre dignas desse arauto das boas palavras.
Neste 20 de julho Narciso completou 80 anos. Mais um momento a comemorar, mais uma homenagem a esse homem notável,
exemplar, companheiro do mar, do vento e das maresias.
"Com tanto navio para partir, minha saudade não sabe onde embarcar..." Esses dois versos iniciais do poema "Cais",
de autoria de Narciso de Andrade, são tão significativos que, caso ele quisesse e sem desmerecer o poema inteiro, poderia escrever somente os dois
versos e o seu poema estaria completo. Por esse exemplo e por muitos outros, contidos nos poemas de Narciso, fica impossível falar do Porto de
Santos sem associar a ele a figura de Narciso de Andrade. Ele foi, por coincidência, repórter de A Tribuna e responsável pelo caderno do
porto, uma de suas paixões. E sobre Santos, seu cotidiano e o seu porto, Narciso soube registrar, como ninguém, o que de mais preciso e singelo
existe nesse ambiente.
Inúmeras crônicas publicadas em A Tribuna, sempre aos domingos, até o ano de 2001; vários poemas publicados
em jornais; nenhum livro publicado. O que falta para que o trabalho de Narciso de Andrade seja reunido em livro, para que todos possam usufruir seu
talento? Quando questionado sobre o fato de não ter editado um único livro, Narciso diz: "Sempre foi difícil encontrar editor disposto a investir em
poesia".
Lúcio Menezes ilustrou vários poemas de Narciso, publicados em A Tribuna. Por que não reunir esses
trabalhos em livro? Por que não perpetuar a memória cultural santista através da iniciativa de editar Narciso?
Do seu apartamento na Ponta da Praia, Narciso pode ver toda a orla da baía de Santos e seus "crepúsculos
modorrentos". Essa paisagem, certamente, deve ter inspirado Narciso a colocar no papel textos iluminados, belos e carregados de mensagens que
refletem o senso crítico do homem que consegue traduzir o seu tempo, pois tem o dom, a sensibilidade e a rara capacidade de bem escrever, qualidades
essas somente encontradas nos grandes escritores.
Narciso merece ser reconhecido como o "poeta do vento e das maresias", pois está impregnado no mar, no cais, nos
navios que chegam e tornam a partir, na saudade e na vida agitada mas também tranqüila de Santos.
(*) Maurílio Tadeu de Campos é professor,
escritor e poeta. É presidente da Contemporânea - Projetos Culturais, entidade voltada à cultura. |