Imagem: reprodução parcial da página 1 do
jornal de 11/12/1902 (Acervo Estadão)
Paixão de raiz
- Aquilo é que era mulher (dizia o Agostinho, do Mandaguari): nem bem o dia clareava, já lá ia p’r’o terreiro
tratar das galinhas e do resto da criação. Dormia comigo na cama e amanhecia c’os porcos no chiqueiro! Muitas vezes, quando eu acordava, e o sol
ainda se via a uma altura pequena, já o café ‘tava pronto, a casa varrida e o feijão no fogo. Aquilo é que era mulher!
Foi realmente grande perda, a morte de nhá Gertrude: quem a conheceu, há de até hoje repetir que era de dar
tristeza, um acontecimento assim. Apesar de terem já passado uns três anos, o pessoal do Mandaguari ainda a pranteava. Nhá Gertrude deixou umas
quatro dúzias de comadres esparramadas pelo mundo: umas que a procuravam meio às escondidas, p’ra lhe pedirem que batizasse o pobre dum anjinho que
não tinha pai; outras, que mandavam os filhos já viçosos à casa dela dizer que a queriam por madrinha: e outras, afina, que propunham no meio duma
conversa, como se viesse por acaso de talho:
- E não é que nhá Gertrude bem podia levar o meu caçula p’r’a pia?
Ora se levava, isso nem havia dúvida! Pois porque é que não havia então de levar? Uma coisa tão fácil que nem mudar
uma palha! E as mães das crianças ficavam muito satisfeitas, muito alegres: esta nhá Gertrude era deveras uma alma de santa! No seu coração batia
decerto um pouquinho de coração de Nossa Senhora!
E p’ra dar esmolas? Parece que trabalhava só p’r’o gosto de no domingo repartir as economias com os pobres que
viajavam pelo sítio. Até aí por volta das duas da tarde, quem chegasse ia servido dalgum dinheiro, tão certo como três e dois serem cinco. Depois, o
cobre ficava vasqueiro e por fim sumia, que ela também não era uma ricaça. Mas nunca foi capaz de cantar p’r’um pedinte: - Vá-se com Deus, agora não
se tem! – Nunca! Dava-lhe então de comer, dava-lhe qualquer peça de roupa, dava-lhe quitandas, dava-lhe caninha. Ninguém saía descontente.
Boca abençoada era a de nhá Gertrude. Não flava da vida alheia, quando a murmuração era coisa bem correntia até nos
costumes da vizinhança! Se estavam tosando uma pessoa ausente, ela barganhava de conversa tão logo, que os maldizentes estuporavam de vexame. Morder
na honra das famílias foi malvadez que nunca ninguém conseguiu perto dela, porque, se principiava o nhe-nhe-nhe, no mesmo instante ela recordava: -
Olhe, seu Fulano, que vancê também tem mulher e tem filhas! Ninguém ‘tá livre dúa mal-falada! – E o sujeito ficava na embatucação.
Pois bem: morreu… está morta: o que se há de fazer? Quem pode tudo assim determinou: resta que a gente se conforme
com as vontades de quem pode tudo, principalmente porque não há outro caminho a seguir. P’ra que tamanhas lamentações, agora? Diz que o chorar
alivia, e é certo, mas o queixar-se e o lamuriar é que não adianta nada. Que rumor então era esse que o Agostinho andava levantando, volta e meia,
com dizer que aquilo é que era mulher? Glória a Deus nas alturas, e paz aos homens e às mulheres que estão na terra e debaixo da terra! Por estas
falas, mais ou menos, é que o Rodrigo aplacava as choradeiras do Agostinho, todo santo dia.
E o Agostinho não arredava pé daquele triste costume. Se lhe contavam que a porca de um tal tinha parido tantos
leitões, que eram muito bonitos, ele recordava que nhá Gertrude, p’ra cuidar duma barrigada de leitões, estava sozinha; se lhe noticiavam que a
peste de gogo deu na galinha carijó da filha mais moça, ele suspirava, dizendo, ato contínuo, que em vida de sua defunta mulher nunca tinha
acontecido isso no galinheiro do sítio, onde os cochos de pau-santo viviam então sempre cheinhos d’água; se via passar a égua lobuna, lembrava-se na
mesma hora de nhá Gertrude (não haja trocas de sentido!), porque nhá Gertrude, quando montava na supradita égua, estava satisfeita que nem uma santa
no altar, ainda que a semelhança seja meia herege. A égua saía numa guinilha miúda e muito engraçada e nhá Gertrude ia só bambeando o corpo em riba
dela! Ai! tempo, tempo que não havia de voltar mais!
Não lhe dissessem que dona Sicrana era boa, que dona Beltrana era decidida, porque no mesmo repente ele contestava:
- Qual histórias! Qual nada! Como nhá Gertrude nunca há de vir outra a este vale de lágrimas.
E p’ra provar que este vale é realmente de lágrimas, um punhado delas corria devagar e devagarzinho por aquelas
rugas compridas, que se tinham formado em continuação das olheiras; passava a cacunda da mão direita p’ra enxugar a água amarga, e fincava o olhar
em qualquer ponto da casa, como se estivesse querendo ver uma coisa que ninguém via, com ânsia e com desespero.
Mas apareceu-lhe um casamento. E quem não havia de ser a noiva? – a filha mais cresçuda do próprio Rodrigo, uma
chibantona e tanto, que dava sota e basto nas funções daquele pedaço de mundo. O Rodrigo, quando lhe praticou em tal assunto, foi logo explicando as
coisas tim-tim por tim-tim, dando o nome aos bois, como dizia:
- Você, seo Agostinho, já não é criança, isso é verdade. Com certeza já anda nos corenta e cinco, p’ra mais, que
não pra menos. Mas isso não osta, a Malvina também já não 'tá mais nos cueiros, é coisinha mais nova que a Antonia, e a Antonia, por ser simple,
como você sabe, não se pôde arranjar até agora, com vinte e oito que já tem. P'ra você viver sozinho neste canto, ‘tá aí o que não dá certo: um
home, seja como for, percisa sempre duma companheira, e companheira de virar e romper. Se você entender que a Malvina lhe serve, eu não contrario o
casamento.
Fez-se tudo em pouco tempo: o Agostinho foi se acostumando a olhar p’r’a noiva com bons olhos, reparando-lhe nos
modos desempenados e na prosa larga, e muito mais em certo luxinho que a moça fazia nas sobrancelhas, quando parecia duvidar do que se lhe afirmava.
Era uma tentação! Depois, arrumadeira da vida: sabia moquear um peixe como ninguém, cerzir com todo o cuidado a meia mais puída, cortar e costurar,
dar o melhor ponto a um arroz, plantar e quebrar um milho com destreza, e até (ninguém nunca o tinha visto, mas era coisa afirmada de certeza pelo
Agostinho) fazia rendas entusiasmadas, como essas que os turcos vendem com faixas de papel vermelho.
Moveu-se o bairro em peso, p’r’assistir ao casamento. Foram chamadas umas moças dos Campos, as mais cumbas que
havia no sertão p’r’a dança de quadrilha, que não se sabia por estes mambembes; veio o sanfonista melhor que morava na vila, p’r’a tocar a música da
tal dança; apareceu a rapaziada meia afiada p’r’o fandango, e cada violeiro levado do sarro; não faltou a negraria que esquenta os sambas por perto
da Ilha Grande, e o maior tocador de caixa dos arredores, o João Velho; e até, p’r’a ficar tudo completo, mexeram da Onça uns homens que inventaram
agora um folguedo diferente, muito vagaroso e esquisito, a dança de corvo.
Lugar houvesse p’ra tanto povo! As moças dos Campos de par a par c1uns rapazinhos engravatados que também surgiram
como por maravilha, encheram os olhos da gente da casa e do bairro: dançaram depois umas rodadas, coisa de admirar! Um cantador do Capivara, que
pegava no pinho com maneiras muito macias, encarreou nada menos que uma dúzia de modas desconhecidas; cantou algumas pelengas sentado, fez o que
quis da viola e da caipirada, passarandagens difíceis, cada sorte de assustar: ponteava que era um encanto, e chegou a apresentar certos toques que
nunca se tinham ouvido, com batido de papilotes na caixa do instrumento e voz ensurdecida de cordas.
Não faltou nada bom na festança. O Rodrigo, que era um sujeito de melúria, jeitoso como ele só, teve artes de
justar um doutor na vila p’ra fazer um discurso: e veio o doutor, e fez um discurso bem arranjado, gabando o mais que podia o noivo e a noiva,
falando em felicidades e flores, palavras muito bonitas e que caíram muito direitas naquela ocasião. O coreto que se cantou depois do discurso, esse
então nem se fale! – foi de arripiar os cabelos: o Agostinho, que é um homem de coração maneiro, como ele mesmo sempre conta, ficou até c’os olhos
cheios d’água.
A noiva estava numa puba em demasia: tinha vestido cor de rosa (diz que as noivas agora não precisam mais trazer
vestido branco), uma capela grande de flores de laranjeira, tanto das que vêm da loja como das apanhadas no pomar, uns brincos de ouro e lequinho de
penas também cor de rosa mais claro, sapatos de cetim cheios de histórias… uma boniteza!
O Agostinho, p’ra dizer que estava muito senhor dom, não estava: mas encomendou roupas novas, botou-se todo na
estica, de barba aparada e cabelo repartido no meio, c’um par de botinas que alumiava, e, no peito da camisa, dois botões de brilhantes tão grandes,
que pareciam aquelas últimas estrelas que se apagam quando o dia vem rompendo.
Chegou a hora dos noivos se acomodarem. Mas muito tempo ainda muito tempo, em quanto não clareou, o sapateado do
fandango e o rufo louco da caixa bateu sem parar e em cheio nas covancas e arrastou-se bem longe pelo embromado escuro das capoeiras.
O Agostinho não esperou, na casa do sogro, que passassem os três dias de hospedagem. Mandou logo cedo arrear a
tropa. A neblina era grande, mas viu-se, daí a um pouco, o primeiro raio de sol, como uma fina lança de fogo, atravessar a cerração: e ouvia-se
ainda a moda última do João Velho, na roda do samba, quando se levantou na estrada o rumor da ferragem dos animais em marcha.
Ia a Malvina montada num baio açafranado, um cavalinho marchador e faceiro, manso como um cachorro e engraçado no
pisar como não se achava outro na comitiva.
A par c’o Agostinho caminhava um fulano Lope, seu compadre e amigo desde moço, que lhe falava bem da Malvina e ao
mesmo tempo lembrava as boas qualidades da defunta Gertrude:
- Coiração delicado tava ali, não hai dúvida; mas contanto que sa Malvina também é ûa moça às direitas. J's e vê
que você tirou duas vezes a sorte grande!
Depois, como dobrassem o espigão e o pendente de outra banda fosse mais forte, agarrou o baio da Malvina uma
andadura esquipada, muito bonita e doce, que fazia dançar dum belo jeito o roupão da cavaleira. O Lopo virou de conversa:
- Agora, falando um pouco de verdade, o Rodrigo não fez
cainhage nem ridiqueza c'a filha: aprontou-lhe uma rica festa, vestiu-a feito uma rainha, e ainda por cima de tudo lhe
dá de presente um cavalo daquele feitio! Bom cavalo, compadre, repare bem: é tocar-lhe um pouco na rédea, pega num picado lindo que dá gosto; é
afrouxar a mão outro pouco e descansar-lhe o corpo em riba, sai-se desvirilhando numa balancinha que parece uma rede. Não dá trabalho nem um, tem
todo o preceito!
Mas o Agostinho ficara ainda em nhá Gertrude. E foi c’uma voz carregada de tristeza que ele respondeu ao outro:
- Qual! Como a Gertrude não hai! Aquilo é que era mulher!
Valdomiro Silveira
Imagem: reprodução parcial da página 2 do
jornal de 11/12/1902 (Acervo Estadão) |