- Eu 'tava encostado ali na capororóca, na beira do rio, perto do rebojo, fazendo as contas da minha vida, e triste
de devéra. Uma tabarana plancheou em riba da água, atrás d'um lambari-tambiú que largou seu pulo desesperado e foi cair saluçando numa lóquinha de
pedra, rende c'uma touceira de capitava. A tabarana sumiu, lograda e cheia de zanga, mas na flor da água apontou uma bolha grande, que desceu quando
muito duas braças, até que o sol lhe deu, e ficou inteirinha cor de ouro, uma boniteza! Mas desmanchou-se no mesmo sofragante, e inda vi uns
respingos em roda, antes que o rio acabasse de alisar naquele trecho.
Pois a minha alegria, quando eu tive por vancê o amor tão forte que tive, sa Rosalia, foi tal e qual aquela boia
d'água: apareceu por nada, enfeitou-se c'o sol, desfez-se logo. E eu fiquei parado na vida, vendo correr as ondas do rio, olhando muito firme,
esperando que uma lindura assim haverá de amostrar-se outra vez, inda que fosse um pequetito pedaço de tempo. Mas porém as ondas passaram, a minha
alegria morreu nelas.
Despois eu quis-me aventurar em novos amores, bati mundo, andei caí-caindo em cada taimbé louco, virando cada morro
tirano, sujando meus pés no lodo, panhando a poeira fina das estradas, que nem o judeu errante. Fui ver o tal d'um verso velho:
Vim descendo rio abaixo
como o peixe lambari,
campeando amores de longe,
que os de perto eu já perdi.
O que eu lhe posso afianças e jurar contra a minha alma, sa Rosalia, é que nunca mais tive os de perto e os de
longe não me serviram. A viagem desse campeio só me trouxe tristeza e malenconia, quando não fúria e quizília.
Quem é tão quarta-feira assim, que cuida que o amor a gente topa quando quer, numa reviravolta de caminho, no
escuro dum capoeirão, na rua duma capela? Amor é uma coisa que afloresce por si mesmo, sem que se espere nem se chame: e quem percura não acha.
Pobre de quem vai intentado, como eu ia, a ter sossego na distância e distraimento nas breganhas da sorte!
Eu sempre acreditei no ditado dos versos, não sei a troco do quê: p'ra mim me parece que quem tem cabeça boa p'ra
fazer um verso bem certo, é porque tem bom coiração e bom sentimento: e quem tem tudo isso e já padeceu na vida seu tanto ou quanto, há de por força
falar verdade, por exame e experiência. Por essa rezão é que este verso nunca me saiu do meu sentido:
O fogo nasce da pedra,
a pedra nasce do chão,
a graça nasce dos olhos,
o amor, do coração.
Vancê fez de mim o que quis, sa Rosalia, p'resces tempos atrás. Por meu respeito eu deixei pai e mãe, ganhei a
minha liberdade a poder de sol e chuva, numa serviçama que inté nem tinha prepósito. Paguei c'ua madrugada o benefício da criação que minha gente me
deu, fui-me ajustar como carreiro no sítio do Franzino, só p'ra ficar vizinhando com vancê, atirando e recebendo olhaduras o dia inteiro, dando
pasto a estes meus olhos que eram de primeiro tão apaixonados, e agora são tão apaixonados e tão tristes!
No sítio, quando a atabulação era por demais (e eu não tinha de ajudante sinão aquele candeeiro, um minguta deste
tamanhiquinho, um cinco réis de home), ché! – não pensava encarreado, a mó que tudo me dançava adeante dos olhos, só porque eu não podia 'tá c'os
olhos bem granados na sua casa. Vancê, nesse rico tempinho, representava ter por mim uma soneira decidida: e eu tinha tanta fiança em vancê como na
minha mão direita, só Deus sabe!
Às vezes, c'o juízo a juro, do trabalho acochado e da falta de ver vancê bem conhece quem, eu ia falar um nome e
falava outro; em vez de gritar, verbi-gracia: "Puxa, Laranjo! Fasta, Venenoso! Abre, Palhaço! Ruma, Batuirão!", o que eu dizia era: "Sa Rosalia!" e
a voz abrandava um pouco: "Sa Rosalia!", inté que já ia de rasto e o meu coiração me garrava num treme-treme sem jeito: "Sa Rosalia!".
Eu ficava passado, e olhava por todas as bandas, e só sossegava despois de ver que nem um ouvido de home não tinha
escuitado a minha loucura. Quando muito, nalgum peito-de-pomba que esparramava a galharia, p'ra estrada, um bando de pintasilvos tinha rompido numa
cantoria alegre, trovando bem uns c'os outros, e afinal avoavam p'r'o laranjal, intimando c'as penas cor de puro leite e azul marinho. Aí eu dava de
rir, isto é verdade, mas porém vancê mesma nunca me fugiu da lembrança.
Agora é que eu tinha vontade de saber: porque foi que vancê se esqueceu de mim d'uma hora p'r'a outra, como quem
joga uma casca de mexerica numa corredeira e não se importa mais co'ela, desça p'ra onde descer?
Antão, se eu não era do seu agrado, vancê não teve tanto espaço de me desenganar, antes de eu fazer a malfeitoria
que fiz p'ra pai e mãe? Se o Lopinho ganhava de mim no ter uma engenhosa de cana, um ruço queimado de vinte anos e dois selamins de terra, eu também
podia de repente, c'o meu créito e corage ('tava no seu querer), assentar o meu cilindro, possuir o tordilho negro do Zé Faustino e amansar da
mataria que me tocou lá p'ra o Ribeirão das Antas.
O Lópinho 'tá muito doce na sua boca, sa Rosalia? Deus permita que não amargue um dia! A gente nunca deve largar o
certo p'ro duvidoso: quem faz ansim é como quem bota dinheiro bom em riba de negócio ruim. O Lópinho arrebentou aqui sem dizer lá vai água, todo
quebra-quebra e muito embonecrado, com seus lencinhos de seda e vidros de cheiro, bigode retrocido e chapéu batido na testa: aqui fez morada em três
tempos, 'tá moendo sua caiana p'ra pouca pinga e quasi açucre nem um: tem estampa, mas porém não tem alma nem peitos de home: serviu-lhe, caiu no
seu chão, sa Rosalia? – pois que se arregalem e que se adivirtam, o mundo é dos que se querem.
Si um dia ele abrir o pala, quando vancê menos se precatar e 'tiver mais enlevada, não se admire: como é que
havéram de viver os ladinos, si no mundo não vivesse um ou outro simple? Vou-lhe repetir um verso que vi certo moço da outra banda da província
soletrar num pagode, e feito ali mesmo:
Não namore, moreninha,
quem tem juízo não namora:
rapaz de hoje é que nem peixe,
morde a isca e vai-se embora.
A minha vida 'tá hoje uma trapeira, isso eu lhe confesso: mas a sua também 'tá meia no balanço. Vancê assentou de
mudar rumo, trocar um moço da terra porum vindouro, 'tá no seu direito, que no seu querer ninguém não manda nem tem juridição. Cada um deve de ser
feliz ou desinfeliz pelo que fizer ou pelo que deixar de fazer. Depois, ele é muito melhor lente que eu, p'ra lhe contar histórias complicadas e
guerras lá de longe: eu mal apenas assino o meu nome, só não peço punho alheio p'ra isso, e faço as contas inté à de repartição. Vancê também é da
moça de preceito, na certeza hão de viver como Deus c'os anjos. Mas o que eu sempre lhe dou de conselho é que não faça muita fé na combersa desses
pelintres que ninguém não sabe donde é que vieram.
Vancê 'tá vendo correr essas águas, alguma serapilheira que caiu das beiradas, alguma folha seca, alguma tanajura
morta? Tudo some, por fim, tudo some na última volta do rio: mas porém o que nunca morre, nem nunca há de morrer, é esse rugido que as águas fazem
batendo nas pedras, solapando as ribanceiras, arrastando os cernes e as folhages.
Eu perdi o seu amor, sa Rosalia, aqui fiquei padecendo a sodade, que me parece, despois de tudo passado, essa voz
delorida das águas. Queira Deus vancê também um dia não se veja como eu agora, não se alembre de mim olhando o rio que desce, não tenha também
sodade e, maginando ver a minha voz, não chegue mais perto dos saltos ou dos remansos p'ra dizer desconsolada:
"Não, não é nada: são as ondeas do rio que vão descendo…"
Das Seréias