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O quiromante sinistro
Conto de Pedro Uzzo
Além de muito popular naquela cidade pela fisionomia e extravagância da indumentária, Benigno
Piedade era também o que se poderia dizer um indivíduo misterioso.
Ninguém precisava seu paradeiro a determinadas horas, ninguém decifrava a dubiez de sua
psicologia, ninguém lhe podia aquilatar o grau de cultura intelectual. Daí então as mais disparatadas versões circulavam de casa em casa e de boca
em boca a seu respeito - a respeito de um pobre diabo que jamais se intrometera na vida de quem quer que fosse.
Supunham geralmente que aquela tez macilenta, aquela abundância pilosa e aqueles olhos
excessivamente irrequietos eram produtos imanentes do fardo aziago que às costas involuntariamente suportava - ser lobisomem.
E não era para menos: quem sozinho, a horas duvidosas da noite, era entrevisto por aqueles
recessos adumbrosos, com um fraque surradíssimo, desbotado; camisa encarnada, gravata preta de laço, enorme bengala à mão e um livro muito esquisito
sobre o braço, procurando ainda fugir, ocultar-se à vista de seus semelhantes - não poderia mesmo infundir outro conceito a populacho tão eivado de
lendas, superstições e exorcismos.
Daí então qualificarem-no de bruxo, feiticeiro, lobisomem...
O diário da terra, jornal riquíssimo em notícias reclames, mas paupérrimo em literatura, possuía
uma seção grafológica regularmente organizada.
Essa, conforme voz corrente, era redigida por Benigno Piedade, e o pseudônimo de "Oráculo", que
subscritava as respostas às consultas, escondia o nome do bruxo que, com poder verdadeiramente mefistofélico, desvendava pela grafia as menores
particularidades dos consulentes.
Além de grafólogo, afirmavam que possuía vasto conhecimento de sortilégios, sendo para ele também
a quiromancia uma arte sem segredos.
Com exatidão absoluta prenunciava, pelos vincos das mãos, cuja leitura lhe era confiada, as
vicissitudes e pegadas da vida pelas quais as criaturas teriam que chegar ao término de seu destino.
E tudo, diziam, tudo dava certo!
***
Uma ocasião, certo rapaz, que vinha a altas horas do
arrabalde onde fora velar um cadáver, cabelos ouriçados e transido de pavor, dissera haver encontrado debaixo de um galinheiro o bruxo transformado
em lobisomem. Este, segundo o tímido informante, tinha todos os característicos de cachorro fantástico: orelhas relaxadamente caídas como se fossem
formidáveis pelancas; olhos vivos, desmesuradamente esbugalhados, projetando flamas; boca aberta e língua de fora, num arquejar ofegante e
intermitente - assemelhava-se o monstro, correndo de lado a lado sem sossego, a esquisita locomotiva em desgovernada carreira...
Num arreganhar de dentes, o hórrido fantasma deixava transparecerem vestígios do asqueroso acepipe
em que se banqueteara.
Se puséssemos em resenha o acervo de invencionices estapafúrdias que deixavam em época aquela
inocente criatura, Benigno Piedade talvez fosse o mais decantado dos doentes existentes na face da terra!
Entretanto, sopitando o alarde que essa caterva de
maldizentes punha em evidência, outros, em parte bem menor, contrastando, levavam a palma da mão; nele viam um espírito culto e superior, afeito
sempre aos grandes e secretos atos de caridade, e a admiração que lhe tinham, pela modéstia com que escondia suas qualidades altruísticas, era
sobremaneira notória.
***
Uma noite, às 23 horas - noite de tempestade alta, sem
lua, sem estrelas e com prenúncios de borrasca, num dos arrabaldes mais escuros e desprovidos de movimento, encontrei Benigno Piedade.
Estava só, com a indumentária habitual, postado sob vetusta figueira, onde enorme revoada de
morcegos e corujas, assoviando e tatalando asas, infundia pavor aos próprios irracionais.
E que fazia Benigno Piedade, a tal hora, por aquelas alturas? Estaria eventualmente aguardando o
ensejo fatal para sua propalada transformação? Estaria à espera de algum espírito mau para uma subseqüente conferência? Que fazia, afinal de contas,
ali, Benigno Piedade?
Palavra que tive aquele dia, apesar de ímpio, um medo horrível da inofensiva criatura.
Calafrio cortante me percorreu de ponta a ponta a espinha dorsal, e minha voz a custo saiu da
garganta, quando a pouca distância:
- Boa noite, Benigno...
- Boa noite, com Deus, Baltazar!
Reanimei-me.
A maneira pela qual retribuiu meu cumprimento fez-me tornar de pronto ao estado psíquico habitual.
- Então - perguntei-lhe - que faz você aí no meio desses morcegos e corujas, a estas horas,
Benigno?
A passadas lentas dirigiu-se para mim e, aproximando-se com aquela sua fleuma proverbial, deu de
me explicar:
- Você está vendo, nesta direção, aquele prédio profusamente iluminado, de três andares? - e
apontou-mo com a bengala. Ali - continuou ele - como deve saber, é um dos mais populares meretrícios desta cidade. E, meu amigo, como é você a única
pessoa com quem às vezes converso e por quem sempre nutri acentuada simpatia, vou revelar-lhe uma coisa, que peço sepultar no seu íntimo: a
derradeira janela do último andar, à direita, é do quarto de uma soberba mulher de cabelos louros, por quem sou, apesar de minha idade avançada,
desvairadamente apaixonado.
- Todas as vezes que acidentalmente encontro essa interessante criatura, estendendo-me as afiladas
mãos ela me pede com toda instância que lhe faça um estudo quiromântico minucioso.
- Hoje, com saudades, deliberei visitá-la e fazer-lhe a vontade: dizer-lhe a sorte que lhe está
reservada, dar-lhe muitos bons conselhos e, se possível, incutir-lhe no espírito a idéia de se regenerar e abandonar de vez aquele antro de
prostituição. Você me quer auxiliar nessa tarefa, chegando até lá comigo? É uma obra de caridade que fazemos, Baltazar.
Interessado em conhecer a decantada mulher que tanta influência exercia no espírito de Benigno
Piedade, resolutamente deliberei:
- Vamos.
E rumamos em direção do iluminado prédio.
***
Logo à entrada recebeu-nos o porteiro do alcouce - rapaz
espigado, de voz fina, maneiroso, que manifestou indizível admiração ao ver Benigno Piedade. Desmanchando-se em amabilidades, indicou-nos por onde
deveríamos subir, o que fizemos sem hesitação.
Cada andar que atingíamos, surpreendiam-nos muito contra a vontade de Benigno, grupos de rapazes
ligeiramente embriagados, cada qual com uma rameira ao colo e à frente de um acervo de garrafas já esvaziadas.
Um fartum horrível de fumo e bebidas, em mistura com perfumes estrambóticos, percorria os mais
recônditos recintos da casa; e entre ditos chistosos e obscenos, proferidos amiudadamente, ressaltavam tonitruantes gargalhadas.
Alguns pares muito chegados, aqui e acolá, dançavam concupiscentemente ao som monótono de uma
vitrola.
Afinal, fatigados já de subir escadas, alcançamos o terceiro andar.
Ao defrontarmos a porta do salão, notamos que o movimento ali era pequeno: poucos homens, mulheres
algumas.
Uma estrangeira gordalhona, que trazia à mão um molho de chaves, logo que nos percebeu veio a
nosso encontro:
- Desejavam alguma coisa, cavalheiros?
- Queremos a Valquíria - adiantou Benigno.
- Sigam por este corredor. É o último quarto à direita.
Encaminhamo-nos ao lugar indicado. Meu companheiro bateu de leve à porta com o dedo médio e esta
se abriu, aparecendo com todo o esplendor de sua mocidade e beleza a encantadora mulher.
- Você por aqui, Benigno de minha alma!
- Não pude sopitar a saudade, Valquíria.
E estreitaram-se ambos em demorado abraço.
Fiquei extasiado, perplexo ante o quadro que meus olhos fixavam: uma mulher como aquela,
verdadeiramente majestosa, com toda sofreguidão e amor enchia de beijos ardentes o rosto e a boca de meu feiíssimo companheiro.
Diante de tudo cheguei a convencer-me de que a afeição que Benigno dedicava a Valquíria era por
ela correspondida, talvez até com maior intensidade, e que ele, por mero princípio de modéstia, recusara me contar.
Tive, francamente, insólita impressão de estar vendo um Fauno repelente e uma suntuosíssima Friné,
abraçados em amor recíproco, em expressivos arroubos de carícias...
Afinal, quando se separaram após expungirem a saudade, Benigno, em gesto repassado de fidalguia,
apresentou-me a ela, que até então parecia não me ter visto.
Valquíria puxou para perto de um divã uma cadeira, ordenando-me que sentasse, enquanto ela e meu
companheiro, unidos como um casal de pombos, tomavam lugar naquele confortável móvel à minha frente.
Benigno, sem rodeios, encetou a palestra:
- Pois é, Valquíria: eu e este meu amigo, que é um homem muito sério, bom e de vasta cultura,
deliberamos chegar até aqui para conversar com você e, ainda de comum acordo, indicar-lhe uma rota certa, bonita e vantajosa, a fim de que doravante
possa mais nobremente palmilhar o caminho pedregoso da vida.
- Muitas criaturas, quando não obrigadas pela força do destino, às vezes por mera falta de
conselho, vivem toda uma existência chafurdada no mais asqueroso tremedal que o mundo nos apresenta.
- Você, por exemplo, segundo estudos psíquicos que há muito venho fazendo, é sem dúvida uma dessas
vítimas incautas. A dedicação, bondade, meiguice e sobretudo a atitude que mantém, não se imiscuindo, nem se depravando tanto como essas outras
mulheres da casa, são provas irrefutáveis do que acabo de afirmar. E melhor demonstrado ainda ficará isso quando eu puser em prática o que há muito
você me vem pedindo e nunca me encorajei a fazer - ler sua mão.
- Hoje, todavia, determinei tudo lhe revelar com rigorosa exatidão e, aqui para nós apenas,
procurarei ser positivo o quanto possível. Assim, para seu bem e gáudio de todos nós, atingiremos, se Deus quiser, nossa finalidade.
Valquíria, cujos olhos começaram a umedecer-se, trêmula e nervosa, em gesto decidido apresentou a
Benigno a mão direita:
- Leia, leia e diga tudo com sinceridade...
Meu companheiro, ao lançar o primeiro golpe de vista na mão que tomara, após trejeitos esquisitos
foi logo expondo o que seus olhos perscrutaram, tomando sua fisionomia assomos de profunda e inquietadora mágoa:
- Terá vida por pouco tempo, repassada de grandes dissabores; morrerá fatidicamente,
suicidando-se...
A linda mulher, que se mantinha em horrível estado de nervos, não resistiu: prorrompeu em copioso
pranto, ao tempo que recolhia com violência a mão que confiara a Benigno.
- Basta! Basta, por Deus, Benigno!...
A atitude da moça, que previa já a consumação do tremendo vaticínio, comiserou-me e, na qualidade
de incrédulo, procurei despersuadi-la do que tinha ouvido:
- É brincadeira de Benigno! Não creia...
- Não! Não é! Ele não brinca, e o que diz dá sempre certo!
Por dignidade talvez, meu companheiro baixou a cabeça e absorveu-se em profunda meditação. Ficou
largo tempo hirto, com os olhos pregados num único ponto do assoalho; não se movia, não articulava palavra, como se protestando em silêncio contra
meu humilde parecer.
Súbito, porém, suspirando prolongadamente, Benigno se pôs de pé e, em tom grave, severo,
sacerdotal, como quem cumpre elevada missão, dirigiu-se a Valquíria:
- Sua mão diz isso, minha querida. Às vezes, porém, a gente se engana... Os vincos pouco profundos
não revelam a verdade; e as Parcas, que estão prestes a cercear o fio de nossa preciosa vida, fogem para longe, muito longe... Nesse caso sua
existência será duradoura, e sua morte, ao invés de suicídio, poderá - quem sabe? - assemelhar-se à de um justo. Em face disso, Valquíria, ainda é
tempo de se arrepender. Foi Cristo quem o disse: "Os arrependidos são os que se salvam".
- Abandone já, imediatamente, esta vida sórdida, e procure, para seu bem, esquecer o passado.
Levante a cabeça, firme o olhar no porvir e siga o caminho da honestidade. Se acaso não se cumprir seu destino, à velhice de uma hetera é mil vezes
preferível à morte. Ouça, Valquíria, ouça muito bem estes versos de virtuoso sacerdote, que revelou, em linguagem concisa, o exemplo do que a
posteridade reserva a essas infelizes. Ouça e medite:
Essa mulher de face escaveirada,
que vês tremendo em ânsias de fadiga,
estendendo a quem passa a mão mirrada,
foi meretriz antes de ser mendiga.
Fugiu-lhe em breve, nessa vida airada,
da mocidade a doce quadra amiga,
e chegou a ser velha a desgraçada
antes do tempo... A tanto o vício obriga!
Ontem, de gozo e de volúpia ardente,
fosse a quem fosse, dava, a qualquer hora
o seio branco e o lábio sorridente...
E hoje - triste sina! - embalde chora,
pedindo esmola àquela mesma gente,
que dos seus beijos se fartara outrora.
À proporção que Benigno declamava, o semblante de Valquíria tomava aspecto aterrador: os olhos
arregalaram-se tanto, que pareciam projetar-se das órbitas; a cor saudável do rosto fugira-lhe completamente e um rictus idiotizado
repuxava-lhe os músculos da face, em convulsões estrambóticas.
Quando meu companheiro proferiu com acentuada eloqüência a chave do soneto, a desgraçada mulher
escabelou-se toda, deu vários saltos acompanhados de meneios de corpo, largou estridente gargalhada e correu para a janela que estava aberta.
Aterrado, pressenti a consumação do vaticínio de Benigno:
- Terá vida por pouco tempo; morrerá por suicídio...
Baldos foram os esforços que fizemos para embargar-lhe o intento.
Demasiado tarde.
Valquíria debruçara-se na janela e, quando corremos para segurá-la, já seu corpo se precipitava no
espaço.
Lá de baixo, da calçada, um baque surdo e insólito veio compungir-nos a alma.
Estarrecido, chocado, volvi-me para Benigno que, sinistro e com um risinho demoníaco nos lábios,
exigia minha atenção:
- O destino de Valquíria está cumprido. Cumpra-se o meu também.
E azafamado, como doido, desmanchando-se em carantonhas
lorpas, atirou-se pela mesma janela.
***
No dia seguinte, eram ao mesmo tempo sepultados dois
cadáveres no cemitério local, e eu, na polícia, à presença da autoridade em serviço, prestava com toda minudência meu horrível depoimento. |