O Piano na Obra de Gilberto Mendes
Antonio Eduardo Santos (*)
Introdução
Este trabalho tem como tema a obra pianística de Gilberto Mendes, propondo um
levantamento histórico, estético e analítico da produção para piano desse compositor, e tendo como eixo de referência o Movimento Música Nova.
Parte dela já resultou no livro O Antropofagismo na obra pianística de Gilberto
Mendes, publicado pela Annablume Editora/Fapesp e posteriormente no CD Amor Humor e outros portos.
Piano na obra de Gilberto Mendes
Gilberto Mendes nasceu em Santos em 1922, no ano da Semana de Arte Moderna, divisor de
águas em nossa cultura, que influenciou com seus anarquistas, futuristas, comunistas, militares, canibais e dadaístas, todos os movimentos de
ruptura deste país desde então.
Considerando a influência da música de cinema, rádio, dos movimentos Concretista e
Música Nova, entre outros, influência assimilada por Gilberto Mendes e transformada de maneira particular em sons, procedemos à divisão dessa sua
obra em três grandes fases:
a) Fase de Formação (1945-1959), em que o compositor nos apresenta
referências nacionalistas, particularmente as rítmicas, como resultado de discussões e reflexões em torno do Manifesto Jadnov
[1].
b) Fase do Experimentalismo (1960-1982), caracterizada por uma destruição
lógica da organização tradicional.
c) Fase da Trans-Formação (após 1982), marcada por uma nova sintaxe,
em que o som é recolocado em sua posição integrante de um conjunto mais longo e mais complexo. Como afirmou, certa vez, o próprio Gilberto Mendes
[2]:
"Meu espírito é integracionista. Fundir e fazer uma grande geléia de
tudo"[3].
Nos anos 40, quando estudava harmonia com Savino de Benedictis e piano com Antonieta
Rudge, no Conservatório Musical de Santos, surgem suas primeiras obras: algumas canções para canto e piano e pequenas obras para piano, como os três
Primeiros Prelúdios para Piano, entre os anos 45 e 47, e o Pequeno Álbum para Crianças, de 47. A sua produção, nessa fase, é marcada
por acentos rítmicos, planos harmônicos e estruturas melódicas de natureza, de certo modo, brasileira, mas envolvida pelo impressionismo musical
francês.
Embora Gilberto Mendes não tenha nada a ver com a música popular, suas canções, assim
como algumas das peças para piano, podem ser consideradas, de certa forma, precursoras da Bossa Nova, porém aqui se revela já o seu espírito
integracionista, pois, como ele mesmo afirma:
"Não tenho formação de ouvido nacionalista. O que sempre gostei foi
mesmo de Chopin, Beethoven, depois Schumann, Stravinski, Bártok e Debussy. Não ouvi folclore nem ciranda, pois em Santos não tinha folclore"
[4].
Cabe acresentar aqui sua Vacariana, variações sobre um tema
folclórico, a partir de uma canção do Sul do Brasil recolhida por Mário de Andrade, que consta de seu Ensaio sobre Música Brasileira. Esta
obra foi escrita no início dos anos 50 e não constava de seu catálogo de composições. Durante minha pesquisa encontrei-a esquecida e toquei-a para
Gilberto Mendes, insistindo para que ele a incluísse no seu catálogo. Ele, então, terminou a última variação, que só tinha ainda dois compassos, e
teve a idéia de finalizar a obra com a repetição do tema, à maneira das Variações Goldberg [5],
de Bach.
Por esse tempo tomou algumas aulas com o compositor Cláudio Santoro, iniciando
posteriormente uma longa convivência com o maestro Olivier Toni, um grande divulgador do vanguardismo musical brasileiro dos anos 50 e 60.
É do início dos anos 60 o seu primeiro contato com os poetas do grupo Noigandres (dos
irmãos Campos e Décio Pignatari). A Poesia Concreta encontrou aí o seu sonorizador. Pierce e Levy-Strauss eram os modelos teóricos, Mayakovski e
Osvald de Andrade (Estética antoprofágica), seus estofos ideológicos.
Assina em 1963, em conjunto com Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat,
Júlio Medaglia e outros, o Manifesto Música Nova, logo após seu retorno de uma de suas peregrinações a Darmstadt (na época, o grande centro
da Neue Musik experimental européia) e de seu contato com Henri Pousseur, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. O Manifesto propõe uma
ruptura com o contexto da época em favor de uma nova Música Brasileira. Justificava-se, dizendo: "somos radicais porque a contribuição, na música
brasileira, entre a produção imediatamente anterior e a atual só pode ser resolvida por uma ruptura"[6].
Manifesto Música Nova foi publicado (1963) pela revista de arte Invenção,
dos poetas do Grupo Concretista. Os textos desses poetas serviram de base para futuras composições de Gilberto Mendes, norteando grande parte das
composições do mestre santista e alimentando os caminhos da nova música brasileira. Essa fase é marcada pela geração de uma nova técnica
composicional, assim como de uma nova grafia musical, em razão dos procedimentos por ele utilizados: aleatórios, concretos, teatro musical,
happenings.
A sua Peça para Piano nº 1 (1962) é caracterizada pelo uso da
técnica dodecafônica [7], aleatória e por um novo grafismo musical. Algumas
inovações já começavam a ser prenunciadas com a Peça para piano nº 16, de 1959, que se constitui no ponto de partida para o seu novo estilo
pianístico. Escreve também Blirium C-9, obra aleatória sem partitura escrita, trazendo apenas instruções para execução pelo intérprete.
É também o período em que Gilberto Mendes compõe Santos Football Music,de 1969,
obra que concentra todas as características da Neue Musik da segunda metade deste século, como o som concreto, através de fitas gravadas (de
locuções esportivas), participação do público, blocos atonais de sons orquestrais e músicos simulando um jogo de futebol. Sua grande invenção
radical.
Fundador e diretor artístico do Fesival Música Nova, um dos mais representativos
painéis da contemporaneidade musical e palco importante para a divulgação da linguagem de novos compositores.
A partir dos anos 80, vemos um Gilberto Mendes pós-renovado, pois a música de invenção
deste momento desconhece rótulos. Essa é a fase da simultaneidade em que o sistema atonal é encarado por Gilberto Mendes como uma projeção e
expansão do sistema tonal, estabelecendo-se, assim, um jogo entre os dois sistemas, que o compositor, em realidade, considera uma coisa só.
Suas obras mais marcantes deste período são: Vento Noroeste (1982), Recado a
Schumann (1983), Los Três Padres (1984), Três Contos de Cortázar (1985), Il Neige... de Nouveau! (1985), Viva Villa
(1987), Vers les Joyeux Tropiques, Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul... (1989), Estudo Magno (1993), Für Anette (1993),
Pour Eliane (1993) e sua homenagem póstuma ao compositor português e amigo Jorge Peixinho: estudo ex-tudo eis tudo pois...!! (1997).
Suas novas obras nos falam de seu imaginário musical particular, onde
Friedrich Höllander e Bronislaw Kaper reencontram-se em uma Big Band, Eisler e Webern caminham juntos em alguma praia nos mares do Sul, Ulysses
surfa em Copacabana com James Joyce e Dorothy Lamour, como afirma Álvaro Guimarães [8].
Enfim, de paisagens evocativas dos mares do Sul, que não são apenas os mares do sul
da Oceania, mas também os mares do Atlântico Sul. Gilberto Mendes é um apaixonado por suas praias tropicais, entre Santos e Rio de Janeiro; do
Boqueirão a Copacabana.
E por aí vai Gilberto, passeando livremente em suas idéias sonoras, envolto numa
atmosfera idílica de vento noroeste e outros ventos marítimos, das praias santistas, com muito amor e humor.
Este é, portanto, o sentido (antropofágico) que procuramos atribuir ao compositor,
singularizado por um processo de transformação muito pessoal desse material sonoro à sua volta, à semelhança de um canibalismo, como afirma o
maestro Roberto Martins, o maior intérprete de sua música coral.
Gilberto Mendes é um compositor pleno de surpresas, transformando todas
suas imagens em sons. É também um músico independente, aberto e capaz de manter diálogo com a nova geração de compositores
[9] e permanecerá sempre assim.
Gilberto é hoje uma unanimidade na cena musical brasileira.
REFERÊNCIA
[1] Para o jadnovismo, a
música realista (clássica) deveria fundamentar-se em: 1) emprego do atonalismo não-ortodoxo e do sistema tonal; 2) expressão do 'natural', do belo e
do humano; 3) reconhecimento dos valores herdados do classicismo; 4) organicidade ligada à pesquisa da música popular; 5) concepção de cultura
popular para a divulgação da produção, almejando a conquista das massas; 6) assimilar, no sentido do agradável, essa música, tornando-a fonte de
prazer, de otimismo, devido à sua fácil compreensão. E repudiava, conseqüentemente, todo o contrário desses princípios: as dissonâncias sucessivas,
os sons de conotações falsas, vulgares e patológicas, o modismo decadente, o individualismo, o egoísmo.
[2] SANTOS, (1997:13)
[3]Tribuna de Minas -
Entrevista - 3/1/1989
[4] SERRANO JR., J.M.
(jan/fev/1981, 4:8-9).
[5] As Variações Goldberg,
um dos monumentos da literatura de teclado, foram publicadas em 1742, quando Bach - 1685-1750 - tinha o título de compositor da corte eleitoral real
da Polônia e da Saxônia. Num total de 29 Variações, Bach devolve ao seu final a Ária da Capo.
[6] NEVES, J.M. (1977:311)
[7] Dodecafonismo: técnica
musical utilizada pelo compositor austríaco Arnold Schönberg. Sistema desenvolvido por ele entre 1908 e 1923, quando buscava um princípio em torno
do qual se pudesse organizar uma música atonal, ou seja, a obra musical que evitasse uma tonalidade central, bem como todas suas relações tonais.
Foi a primeira e a mais famosa formulação do concreto de serialismo e a inovação de maior alcance da música do século XX. Dispondo-se de 12 notas da
escala cromática numa ordem particular, forma-se uma série que pode também ser usada em três variações: na versão retrógrada (do final ao
princípio), na inversão (de cima abaixo, todo intervalo ascendente se converte em descendente e vice-versa) e na inversão retrógrada
(de cima abaixo e do final ao princípio). As notas podem ser utilizadas uma depois da outra, como nas melodias, ou em blocos, como nos acordes. O
serialismo é a repetição e a variação de uma seqüência (ou série) dada em qualquer elemento musical, não só o tom, mas também o ritmo, o timbre e
inclusive os blocos de som ou níveis de intensidade.
[8] GUIMARÃES, Álvaro: (199:
P.4)
[9] TRAGTEMBERG, L.
(1991:43).
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Maria & GUEDES, Zuleika Rosa - O Piano na música brasileira. Porto
Alegre: Movimento, 1992.
BÉHAGUE, Gerard. Music in Latinoamerica: Introduction. New Jersey, USA:
Prentice-Hall, 1979.
MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Brasília: Civilização Brasileira/INL-MEC,
1981.
MENDES, Gilberto. Uma odisséia musical. Dos mares do sul à elegância pop/art déco.
São Paulo: Giordano/EDUSP, 1994.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1977.
SANTOS, Antonio Eduado. O Antropofagismo na Obra Pianística de Gilberto Mendes.
São Paulo: Annablume/FAPESP. 1997.
TRAGTEMBERG, Lívio. Artigos Musicais. São Paulo: Perspectiva, 1991. Col.
Debates.
Artigos:
GUIMARÃES, Álvaro: artigo: O Meu amigo Gilberto Mendes, CD.: Gilberto Mendes
- Chamber Music
SERRANO JR., J.M. cf. Não me interessam mais as discussões estéticas.
Entrevista com Gilberto Mendes. (In Caderno de Música, 4:8-9, jan/fev/1981).
(*) Antonio Eduardo Santos é mestre em Artes pela
UNESP e doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC)/SP. |