A delícia de falar mal
Menotti del Picchia
Foi Afrânio Peixoto quem, com sutileza e graça, disse
que a coisa mais deliciosa da vida é a gente falar bem de si mesmo. A idéia parece superficial, mas é profunda, porquanto só nós mesmos sabemos o
segredo de dizer apenas aquilo que nos agrada.
Se um terceiro nos elogia, pode ele não ter o tato de gabar unicamente aquelas
qualidades que desejamos ver exaltadas. Assim, o parvenu odiará quem, querendo bajulá-lo, disser que ele é um homem que se fez por si e
surgiu do nada.
Comparável à delícia de falar bem de si, só há o prazer de se falar mal de outro.
Pensando bem, gabar-se é diminuir o mérito alheio. Há no auto-elogio uma espécie de
insulto à virtude dos outros. É, de certa forma, ser discretamente malicioso.
Como "falar mal" é um vício chic e muito generalizado, perdeu ele,
hodiernamente, a sua maldade ingênita, para se tornar um outro sport elegante. Todos perdoam essa irreverente petulância, porquanto é tão
recíproco e reproche que, geralmente, não há quem não se dê por pago e satisfeito na bizarra esgrima da maledicência.
É já o instinto da sociabilidade que nos arrasta ao pecado. É natural que uma
conversação, como uma fogueira, necessite de algo sobre que se abordoe ou chameje. E como seria tedioso passar-se uma noitada a falar de arte, de
cavalos e de política, é justo que, sob disfarces de aquilatar qualidades e medir virtudes, se aplique ao vizinho uma dosesinha de ironia e
impiedade. A certeza de que ele, em outro grupo, está a pagar-nos com a mesma moeda, anima a ânsia iconoclasta e desemperra a língua vacilante.
Geralmente o torneio começa como línguas bífidas de serpentes. O veneno aparece
diluído em sorrisos de galanterias, ou na tisana da condescendência. Depois a frase vem mais cortante, o sarcasmo mais acerbo. No fim, anavalhante,
o epigrama desembainhado como uma lâmina, corta e sangra...
- Mlle. já viu como Mlle. B está corada?
- Belas cores... Ou valsou demasiado, ou...
- Talvez ouvisse do sr. Z alguma frase mais ousada...
- Ou, talvez, a lâmpada do toucador estivesse escura, e não reparou no excesso de
carmin que esparramou no rosto...
- Talvez ambas as coisas, excelentíssima...
Isso, como se vê, é natural, simples, cristalino como um correr de água mansa... O
homem é malicioso de nascença. A perversidade vem desde o Éden, digerida com a fatídica maçã que os claros dentes de Eva trincaram, por nossa
desgraça.
Não faltarão por aí risos hipócritas que julguem mal estas verdades. Já Pascal disse
que o homem tem um terror instintivo da sinceridade, e Max Nordau escalpelou corajosamente o verniz de preconceitos com que se esconde a formosa
deusa que só vive nua.
Como vingança contra estas palavras leais, por-se-ão a falar mal desta crônica e
estaremos vingados! Dirão que há algum cinismo em expormos assim, sem tules nem véus, um dos mais deliciosos pecados hodiernos. Em todo o caso, no
fundo das suas consciências, como no fundo turvo de um lago, os ouviremos dizer, penitenciando-se: "- Afinal de contas, é isso mesmo. O cético
cronista tem razão".
A maledicência é um mal a que ninguém escapa. O homem não fala tanto mal dos outros
por perversidade, como por amor a si mesmo. Não há no mundo quem não julgue sempre superior ao seu próprio semelhante. Tirássemos essa deliciosa
ilusão do homem, e ele, enjoado da sua personalidade, humilhado da sua inferioridade constante, perderia a alegria de viver.
É mister que se mantenha o formoso engano de nos julgarmos mais bravos, mais belos,
mais talentosos que os nossos vizinhos. É esse egoísmo que traz a emulação e a glória.
Compreendendo essas coisas, perdoamos, apiedados, as mofinas com que nos tentam
arranhar a piedade. É que, pelo mesmo fenômeno psicológico, temos a doce ilusão de estarmos muito acima do bote rasteiro do maledicente.
Falar mal... Diminuir outrem... Eis a grande delícia da nossa eterna ilusão. Tirar a
outrem virtudes é, de certa maneira, aumentá-las a si próprio. Humilhar nosso semelhante é engrandecer-se perante ele.
Na verdade, nossa malícia não tira nada nem humilha. Mas nossa ilusão é que se
rejubila e exulta, e, para o mundo subjetivo, a realidade é nada e o engano é tudo. Nossa vida interior é espectral e ilusória. As emoções são
trasgos, são fantasmas que nós mesmos criamos. Assim, se imaginamos ter tirado de um espírito o fulgor de uma qualidade, nossa alma goza como se
todo o mundo constatasse a verdade do nosso triunfo.
Aí está, parece-nos, a razão sutil da delícia de se falar mal. Nessa causa íntima está
o perdão piedoso. O pecado diminui e encontra absolvição na nossa fragilidade; o crime desaparece mediante nossa contingência.
Distingamos, porém, essa malícia inconseqüente da perfídia e da calúnia. Essas
infâmias só vicejam nas almas de lesma.
A mania de falar mal toma, dia-a-dia, aspectos delirantes, de verdadeira obsessão. É
assim que, não se tendo, às vezes, de quem se maldizer, acaba-se ferindo a própria individualidade. Nesse sentido, como maravilhoso símbolo,
engendrou-se a história do barbeiro que, tendo falado de todo o mundo, de parceria com seus fregueses, estando só na loja, a limpar um espelho,
viu-se nele retratado e, parando, obtemperou:
- E também tu, o que pensas? És, acaso, melhor do que os outros? Saberás, afinal,
que não passas de um refinado velhaco...
Humanidade! Humanidade! Glória a ti, que és bela, que és audaz, que és perfeita!
Tiveste o dom mágico de procurar no próprio mal o sabor picante das tuas delícias... É do carvão negro que arrancas, claro e fúlgido, o diamante que
corusca como um sol! |