III – CAVALEIRO DO IDEAL
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Ferreira de Castro escreveu a última carta a Martins Fontes, a 26 de abril de 1937, de Lisboa. Agradecia-lhe o apelo e lhe dava a esperança
dizendo que "talvez um dia obedecerei". Martins Fontes sabia que Ferreira de Castro seria capaz de escrever esse livro, porque, entre os escritores de muitos países do mundo, demonstrou identidade intelectual e a mais perfeita técnica literária,
com a obra prima Eternidade, romance dum revoltado.
Foi indescritível a emoção que ocasionou a Martins Fontes a leitura desse romance. Ambos comentamos a obra, a sós, no gabinete de trabalho do grande Poeta. Aí, ele comparou o seu deslumbramento ao que somente a música lhe proporcionava. Quem
escreveu páginas de prosa iguais às do romance Eternidade poderá alçar o voo ao Ideal de Kropotkine e imortalizá-lo.
Ferreira de Castro, cujos romances desenvolvem temas humanos dos mais transcendentes, salientando a tragédia da espécie no conflito econômico entre os interesses das classes, soube agitar as suas personagens dentro de ação dinâmica, empolgante, com
minúcias indispensáveis para o colorido, para a sonoridade, para a psicologia dos grandiosos painéis da vida terrestre.
Em todos os romances, cingindo-nos a Emigrantes, Selva, Eternidade e Terra Fria, há gritos e convulsões de seres desgraçados, em luta homérica contra o determinismo das leis da natureza e contra a sociedade humana, em ânsia incontida de contrariar
o evolver, o progresso, a marcha no aperfeiçoamento da Humanidade.
E vemos, entre as figuras criadas por Ferreira de Castro, o lavrador Manuel da Bouça, o estudante Alberto, o engenheiro agrônomo Juvenal Gonçalves, o negociante de peles Leonardo, figuras centrais desse drama que Kropotkine quis epilogar com a
sociedade futura, sob o regime da Anarquia, apiedado de tanta dor universal.
Mas vejamos as personagens dos romances de Ferreira de Castro através do seu pensamento, com o qual fixou as diretrizes da sua filosofia libertária que tanto encantou a Martins Fontes. Manuel da Bouça, como tantos outros que transitam de Norte para
Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor, olhando para a vida e verificando que a alguns se lhes permite o direito de viver, não se resignou a ver a vida dos mais felizes, e partiu, cheio de ambições,
porque queria usufruir regalias iguais às dos privilegiados, à conquista da fortuna para satisfazer determinados prazeres e assegurar, com o bem-estar da família, a tranquilidade na velhice.
Ei-lo no rodamoinho das correntes humanas nos mares sociais, ora seremos em dias de sol e noites de luar esplendorosos, ora encapelados com a fúria dos tufões revolucionários. Quantos não perecem durante a batalha, fulminados pelo egoísmo dos
vencedores, a perene fonte de inquietações, de desditas inenarráveis para o Homem!
Ferreira de Castro escolheu na Terra, Pátria comum da Humanidade, o Brasil, o Estado de São Paulo, para colocar Manuel da Bouça e fazê-lo sofrer o seu drama. Traçou o mesmo destino ao estudante Alberto, outro emigrante forçado por motivos
políticos, dando-lhe, no entanto, diferente paisagem, menos ridente, porém majestosa, ao Norte do Brasil, a Amazônia, longínqua e enigmática, que torturou os primeiros anos da adolescência de Ferreira de Castro e que lhe deu coragem para o resto da
vida.
Estas duas personagens se completam – um exilado pelo estômago, outro desterrado pelo espírito – porque os une a ambos, indissoluvelmente, a luta pela vida, a conquista do pão e da liberdade, a miragem do ouro – um ouro negro que é matéria e
sofrimento, e a quimera enganadora dos pobres.
Juvenal Gonçalves, viúvo inconsolável, atirado à Ilha da Madeira por um dever profissional, agita-se num tormentoso mundo moral, entre preconceitos sociais e o determinismo das leis biológicas. A ideia do infinito aparece ao se lembrar da morta
querida e as interrogações se atropelam para nos confundirem ainda mais: se tudo era inútil, se a vida não tinha finalidade, se só pela dor se poderia atingir o infinito, comungando com tudo quanto existia? Porque a ânsia de viver, de persistir
através de todos os sofrimentos, de todos os desesperos, de todos os limites? Se tudo se transformava, se o espírito sofria o inexorável destino de todas as composições orgânicas? Porque reagia perante a ideia da morte, considerando-a sempre uma
violência? Porque a contradição? Porque a necessidade de criar deuses, prolongando, pela fé, a existência, querendo sobrevivê-la, querendo imortalizá-la?
Ninguém, ninguém queria morrer. Juvenal Gonçalves, tipo criado à imagem do próprio autor, a quem atingiu a mesma tragédia, sentia-se a seu gosto entre o povo da Ilha da Madeira que passaria com ele no mistério da eternidade, legando a terra
arborizada a outros que passariam também, perpetuando através das gerações o esforço e o segredo de cada existência.
Como a Juvena, as pequenas ilhas fascinam a Ferreira de Castro, porque lhe permitem observar melhor o homem entregue a si próprio, fechado sobre si mesmo e, simultaneamente, disperso no infinito, entre mar e céu, sempre entre mar e céu.
Essa sufocação da terra, sem continuidade, desperta constantes rebeldias e impotências, acorda mil sentimentos ignorados, remexe, tortura, cava fundo na alma até o momento dela se submeter por falta de mais energias. Então, Ferreira de Castro, para
completar a escultura do homem insular, foi encontrar de novo, nas gentes que vivem entre cadeias de montanhas, o homem metido em si próprio, o homem que reduziu o enigma do infinito a simples crença, e a colocou ao canto da alma, como um bordão,
para se servir dela nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bata à porta, imaginando a personagem de "Terra Fria", o vendedor de peles, Leonardo, filho das montanhas, pobre, rude, vergado de humildade, dominado pela ânsia de viver,
ansiedade infinita que nos tortura há muitos milênios, soltando a Humanidade gritos dolorosos e impotentes como este:
- Nós não queremos morrer!
Ferreira de Castro, interpretando essa ânsia, endereçou ao Irmão longínquo, que se perde na hipóteses, sobre o curso de todos os séculos vindouros, a Bíblia da sua dor que intitulou Eternidade, em cujo pórtico escreveu a legenda seguinte>
- Tu, meu Irmão longínquo, que já mataste a morte, que já criaste um novo mundo sobre o mundo em que vivemos, que já tens uma outra noção do homem e do Universo, dificilmente compreenderás como nos foi possível viver assim. Queremos ser eviternos e
temos de morrer; queremos ser felizes e nunca o somos, integralmente. Tu és a única resposta que encontramos para as nossas angustiosas interrogações. Uma resposta que me alvoroça e, simultaneamente, me desespera, porque eu queria ser como tu, eu
queria ter nascido quando a inteligência humana tivesse assassinado a morte, quando a terra não estivesse, como agora, traspassada por tanta dor. E não posso! Não posso! Eu não quero morrer e tenho de morrer, sabendo que não morreria se nascesse
mais tarde, não sei quando, mas um dia, o dia em que tu nasceste. A tua vida terá, no espaço e no tempo, horizontes que a maioria dos meus contemporâneos dificilmente concebe. Eu sinto isto, eu possuo esta certeza, eu vivo com esta verdade, que
ainda é só minha, e, contudo, tenho de renunciar a ela, vencido por essa voz que vem de ti para mim e que me desvaira, me humilha e torna ainda mais desgraçado. Esta é a época que tu sonhaste, mas já não poderás viver nesta época. Mesmo sem
querermos, toda a nossa vida está cortada de renúncias e agitada por esforços em teu benefício, meu Irmão longínquo. Há já muitos milhares de anos que nós vimos sendo os rudes e obscuros cavoucos da obra gigantesca que tu desfrutas e da qual ainda
mal apercebemos os contornos. Dificilmente, porém, me resigno a isto. Eu não queria ser apenas um dos arcos da ponte de passagem que tem levado tantos séculos a atravessar; eu queria estar para lá do rio imenso, queria ficar ao sol, à luz, ficar ao
teu lado! Eu queria ser eterno como tu, no teu mundo de fraternidade e de inteligência, onde já não existirão as iniquidades, as dores inúteis e os absurdos que, hoje, se expõem sobre a Terra, maculando e diminuindo a sua beleza original. Eu sei
que esse mundo, criado pela evolução humana, aberto pelo gênio da espécie, virá a existir; sei que te apossarás do Universo, que dominarás os seus segredos e as suas leis, que te tornarás senhor da vida e que matarás a morte – mas quando eu já não
for coisa alguma, quando eu já não for coisa alguma… E eu não queria deixar de ser! Eu queria estar sempre ao teu lado, amanhã, depois, sempre, sempre – eternamente! Eu sei que quando a Humanidade se encontrar dividida em duas épocas distintas – a
que obedecia, mísera, efêmera, desgraçada, à lei da morte e a que sobre essa lei triunfou – tu, meu Irmão, estarás tão longe de nós e serás tão diferente, que até estas inumeráveis vidas que tem morrido não querendo morrer, que têm morrido
desejando ser imortais como tu, parecer-te-ão lendárias, mesquinhas, tristes coisas que não se pertenciam, rebanho de sombras que cobria, inutilmente, o planeta inteiro. Então, todos estes séculos que já vivemos e que viveremos ainda sob o
despotismo da morte, a nos odiarmos uns aos outros, a nos massacrarmos uns aos outros, a nos espoliarmos uns aos outros, parecer-te-ão, a ti, que triunfaste da morte e dos instintos, que és inteligência e não paixão, compreensão e não
ressentimento, uma vasta, sombria e muda planície. E não te rias de nós, Irmão longínquo, porque sem nós não terias existido, porque tu és filho da nossa inquietação, uma inquietação milenária. Nós sabemos que já não nos beneficiará muito do
trabalho que realizamos e, contudo, continuamos a trabalhar, a lutar, infatigavelmente, para te deixarmos um legado cada vez maior e mai maravilhoso – razão da tua existência. É esse o nosso orgulho e, por vezes, parece ser, até, a nossa missão. E,
no entanto, todos nós nos sentimos lesados, porque todos nós queríamos mais do que temos em felicidade e em perpetuidade… Meu Irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na Terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos.
Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na serra onde eu e quem o meu coração tiver amado, dormirmos o último sono, e leva contigo um pouco do pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei
com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços…
Assim falou Ferreira de Castro, também, cujas palavras Martins Fontes considerou sublimes, pela altura do pensamento, atingindo a distâncias infinitas do mundo futuro que Kropotkine idealizou, julgando-o, pois, único, no presente momento, capaz de
animar o vulto do Apóstolo. São notáveis as semelhanças de ideias, entre os dois intelectuais da língua portuguesa, que, por meu intermédio, se conheciam, de longe, através de correspondência íntima, há pouco mais de um ano, como a igualdade de
Ideal que, em espírito, os aproximava de Pompeyo Gener, o genial precursor da Espanha republicana, cujo futuro revolucionário previu com certeza quase astronômica.
Pompeyo Gener, filósofo da sua máxima adoração, solidificou a cultura sociológica e socialista de Martins Fontes, exercendo salutar influência na poesia de caráter social que abrange mais de metade de todas as produções em verso e prosa, até os
últimos entusiasmos do seu gênio – a exaltação pela moral do Positivismo que substituirá a moral católica, e o culto pelos heróis do Calendário, cuja doutrina serviu de base ao anarquismo científico.
Martins Fontes contava, sempre, às vezes com os olhos umedecidos, a sua visita a Pompeyo Gener, em Barcelona, e o encontro no célebre Café dos Poetas Catalães. O filósofo estava, nessa memorável noite, sentado a uma larga mesa, à espera dos amigos,
comendo azeitonas, tendo em frente de si um copo de cristal cheio de vinho Rioja. Pompeyo Gener parecia um Deus boêmio, com toda a majestade da sua grandeza setuagenária, de smoking, violetas brancas à floreira, com o chapeleirão de aba
larga e a bengala de ébano postos numa cadeira ao lado. Pompeyo Gener, alheio ao ambiente, divagava, remontava, devaneava, fumando em longas baforadas, em novelos de nuvens, que se esgueiravam pelo teto do Café. Martins Fontes se aproximou, se
descobriu e reverenciou a Pompeyo Gener, a quem saudou em nome da mocidade da América, para agradecer e bendizer ao maior pensador de toda a Espanha, em todas as idades, a glória da oferta, a flor de dedicatória, inscrita no pórtico do livro
Inducciones:
- A la juventud intelectual de las Américas Latinas, flor de la Humanidad, que precontiene en estado latente las energías futuras.
Martins Fontes disse:
- Permita que lhe beije a fronte, coroa da nossa raça.
Pompeyo Gener se levantou e rebateu:
- Os homens como nós são Irmãos e se beijam na face.
Ambos emtabularam conversa, verdadeiro fogo de vista, uma pirotécnica. Pompeyo Gener contoou intimidades dos notáveis poetas, escritores e filósofos da França: Verlaine, Mendès, Pasteur, Claude Bernard, Taine, Littré, Flaubert, Gautier, Renan,
outros e o Todo Poderoso Vítor Hugo.
Pompeyo Gener se orgulhava de pertencer ao grupo dos prediletos amigos e comensais de Vítor Hugo, em Paris, às quintas-feiras, na Place de Vosges. O semblante de Pompeyo Gener, em ascendente veemência, ardia, reflamejava, com o mesmo vigor da
mocidade, à medida que palestravam sobre todas as questões de arte, de filosofia, de sociologia, de ciência geral. Encarnava a imagem de Lucifer, de barbica em bico, encaracolada, florida de branco; no olhar, claro e perfurante, luzia a malícia,
entre áscuas de gênio; a frente larga, abobadal, eriçada de cabelos romanticamente soltos, caindo em bucres, coroava aquela máscara inesquecível, de anjo desterrado no pó, com saudades do Inferno.
Ao vê-lo, Martins Fontes imaginou o Diabo que contempla a Criação que aspira ao Ideal, e é só putrefata. O Diabo ri e sente que o mundo prova a Negação. O homem humilhado vive sem ar, sem luz e sem pão. O Diabo ri de Deus que lhe pede a colaboração
ao que aquele a nega. Assim lhe pareceu Pompeyo Gener.
E Pompeyo Gener, outrora namorador galante, madrigalista generoso, perdulário, sábio e romanesco poeta, em longa oração, traçou o esboço de todas as ideias contidas em seus trezentos ensaios, em suas mil páginas de arte, cuja obra culminante A
Morte e o Diabo, Filosofia das duas negações supremas, forma com o Desenvolvimento Intelectual da Europa de Draper, e a História da Civilização da Inglaterra de Buckle, a pedra basilar de qualquer cultura.
E esvaziavam-se as taças, cheias de Rioja. Pompeyo Gener, o homem de fogo, tumultuoso, truculento, incendiador de blasfêmias, com deduções de alta lógica, de pura transcendência, de contínua meditação filosófica, declarava:
- Nós pertencemos, meu caro, a um partido não existente ainda, mas que se chamará Revolução-Civilização, criador, em meio do século XX, dos Estados Unidos e da Europa, e, depois, no final da sua apoteose, dos Estados Unidos do Mundo. Todas as
nações dependem do mesmo centro e estão ligadas por indissolúvel e profunda unidade. A Pátria futura será a Terra. Um dia, no globo civilizado, a nação humana esplenderá. Cidadãos do planeta, todos os homens serão Irmãos… Uma descoberta científica
é mais benéfica do que cem anos de evolução política e de revoltas sociais. A Rússia, com o espírito abnegado que distingue a sua raça, tem em suas entranhas a solução do problema. Eu vos juro que, de lá, vai vir a reforma. A questão não é lutar
contra as religiões, mas sim esquecê-las. Amemos a vida ascendente! Gozemos a vida, intensa, extensa, ativissimamente! Vivamos! Viva a vida! Rejuvenesçamos! Revivamos! Viver é reviver! Amemos a Beleza, moralidade perfeita, redentora da dor! Amemos
o amor! Todos os atos humanos são resultados de motivos suficientes; todos os motivos suficientes são motivos necessários, todos os atos humanos, portanto, são necessidades. A Igreja Católica vive da exploração do Diabo! Pobre Diabo! O Universo é
infinito. Como compreender dois infinitos Que fazia Deus, antes de criar o Universo? Virgem Maria foi virgem antes, durante e depois do parto. Jesus é chamado "o Filho do Homem". Contrariando as leis da Natureza, e sendo Jesus, o Filho do Homem,
Virgem Maria é homem. Deus é perfeito. Se é perfeito, e o Universo não se pode separar de Deus, por que é imperfeito o Universo? Então houve um momento em que ele o criou e, até aí, evidentemente, não era perfeito. Não se pode admirar a perfeição
com errata. Se até aí era imperfeito, então não era Deus, porque Deus não se pode conceber sem a Perfeição. Portanto, o Universo existiu sempre. Todos os trabalhos do espírito são oscilantes, aéreos, passíveis de mutação, por mais sutis que o
sejam. Ora, as leis da criação são cegas, fatais, mecânicas, invariáveis. Este determinismo destrói a ideia espiritualista. O Universo é eterno e fixo.
Nestes princípios se baseia o grande poema de Martins Fontes Prometeu, sob a inspiração dos filósofos do desespero e dos poetas da Negação. Prometeu representa a tragédia da dor, sendo ator o Prometeu e o cenário a Terra. Martins Fontes
sintetizou neste poema todos os anseios das suas pesquisas filosóficas, em busca da verdade suprema, onde procurou condensar a luta do espírito humano, sedento de liberdade, e a ação gigantesca do homem no domínio dos mistérios da Natureza, em
benefício da Humanidade.
Todas as poesias, espalhadas a esmo por dezenas de volumes, em que o Poeta se refere à sua filosofia libertária, são desdobramentos da ideia principal que se corporifica em Prometeu, com as suas fases evolutivas e simbólicas em cada parte do poema.
Vejamo-las. Esquiliana: - As oceânides imploram a Prometeu que não blasfeme contra Júpiter ou Zeus que o acorrentou no alto do Cáucaso onde o abutre lhe devora o coração, enquanto sempre cresce, para não terminar o castigo. Oceano impreca a sua
audácia. As 3.000 filhas das águas choram as suas mágoas. Prometeu persiste em vaticinar a morte de Zeus. O castigo pelo frio, fome e sede, silêncio e abandono, não o obrigarão a mentir. O homem será perfeito como Apolo. Zeus rolará do céu, os
deuses morrerão. Prometeu é a razão, o direito, a justiça, a ordem e a verdade, e se tornou rebelde, em revolta suprema e constante. É amaldiçoado porque não quis revelar aos deuses o destino de Zeus, sendo castigado com o frio, a fome, a sede, a
solidão, a dor, a convulsão na imobilidade. E a marcha dramática do homem começa.
Ascender: O homem primitivo rende o seu culto à mulher na primeira noite da sua existência, e cujo despertar é a primeira aurora do mundo. E assim foi toda a vida.
Titânia: A casa primitiva, arribana onde viveu o primeiro casal, louvando o fumo que sai pelo teto, fogo que iniciou a vida e assim foi pelos séculos afora, de progresso em progresso, a humanidade, através das idades. Parte-se a harmonia do bloco
ante a complexidade das abstrações na unidade do pensamento.
Aqui, vemo-nos no Jardim dos Poetas: ouve-se conselhos aos poetas, a que não ambicionem a Glória, mas procurem tornar a vida mais feliz, sendo como as flores e os pássaros que perfumam e cantam sem
esperar nada. Acolá, entramos no Vergel dos Filósofos onde fazem considerações sobre a vida, mal absoluto, onde não há calma, de forma que os próprios mortos, se ressuscitassem, sentiriam saudades da paz sepulcral.
Se conhecer exaspera e ignorar entristece, o homem somente tem um caminho – sonhar. E o sonho sempre encaminha o pensamento para a Abstração que, em Martins Fontes, deu origem ao culto ao ateísmo e
ao regime futuro da humanidade super-humanizada com a instituição da anarquia. O céu foi indiferente à sorte do Homem que, abandonando-o, melhorará quando se convencer das mentiras religiosas, procurando a redenção moral que Martins Fontes, como
última pedra do edifício social da Anarquia, encontrou na filosofia de Augusto Comte, no Positivismo ou Religião da Humanidade.
Aos poetas, incumbe a missão de criar esse regime de estabilidade, ordem, serenidade, onde a mulher governará, sob o culto do homem, dominando em tudo a Liberdade. Para o sonho deste regime novo, a
imaginação de Martins Fontes pairou no Azul, a última conquista do homem, onde findam e surgem as ideias abstratas que proporcionam os consolos ilusórios das vicissitudes da vida. Mas o homem, depois de perscrutar todas as maravilhas do céu,
retornará à Terra, seu berço e mausoléu, donde nunca devera sair… |