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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (12)

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O livro A canção de Ariel, foi editado postumamente, em junho de 1938, com impressão e composição de Elvino Pocai - Rua Rodolfo Miranda, 207, S. Paulo -, com capa desenhada por Alex Rossato e 129 páginas. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução da capa da obra

A canção de Ariel

Livro póstumo

Martins Fontes

Edição da Comissão glorificadora de Martins Fontes


Imagem: reprodução da folha de rosto da obra

OBRAS DE MARTINS FONTES

Verão

As Cidades Eternas

Volúpia

Vulcão

Rosicler

Marabá

Pastoral

Prometheu
Escarlate

O Céu Verde

Schahrazade

Arlequinada

Partida para Cythera

Boemia Galante

A Fada Bombom

A Laranjeira em Flor

O Colar Partido

O Mar, a Terra e o Céu

No Templo e na Oficina

A Flauta Encantada

Sombra, Silêncio e Sonho

Decameron

Sevilha

Granada

A Dança

Prométhée

Terras da Fantasia

Nós, as Abelhas

Fantástica

Teatro

Paulistânia

Guananara

Nos Rosais das Estrelas

Sol das Almas

Il Fioretti

Canções do meu Vergel

A Canção de Ariel

Um Manifesto socialista, escrito, por Silverio Fontes, em dezembro de 1889

Indaiá

Tataoca - Cerâmica Paulista

Nos Jardins de Augusto Comte

Calendário Positivista


Imagem: página com foto do autor

A realidade já não nos contenta. Queremos sair da Natureza. É impossível, mas tentamos este absurdo. os desejos irrealizáveis são os mais ardentes. Sofremos a ânsia do desconhecido, a sede do além. Queremos o novo, outra coisa. Atrai-nos o invisível, o intangível, o irreal. O universo sensível somos nós. Fujamos de nós. A ultrafísica, a hiperquímica deslumbram! Pesemos a luz, decomponhamos o espectro solar. Imponderabilizemo-nos. Cantemos o perfume da claridade, os aromas sonoros, a aparência das coisas, a matéria em estado radiante, transirradiante! Todas as criaturas bem nascidas sentem a tortura da humanização. Alteremos as formas. Alar! Realizemos os sonhos impossíveis. Povoemos de fantasmas toda a terra. Espiritualizemos todo o universo.


Imagem: detalhe da página 7 da obra

Índice

A Arielesca Oferenda 9
Entre a Saudade e a Esperança 10
Estado radiante da matéria 11
Nos Reinos do Invisível 12
Viático 13
Sonâmbulo 15
Hiperestesia 16
Flor escondida num álbum 17
Flor do meu pranto ao meu mais triste amor 18
Quem será? quem serão? 22
Hugoannete 25
Arielice 27
A respiração do silêncio 30
Canção do Príncipe Triste 32
Bem-te-vi 34
Que diz de pérola a pérola 35
Bandurra 37
Vendo o pranto sorrir na terra iluminante 38
Maio 39
A única porta aberta no presídio 40
Piedade 41
Monólogo de Tiago, o Taciturno 42
Ontologia 43
E outras ondas virão, no mar do tempo... 44
Omnisplendência 45
Visita de Frei Junípero a São Francisco de Assis 46
Ouvindo sem ter ouvidos 47
E vendo sem ter olhos 48
Ontem 49
Hoje 50
Amanhã 51
O Iagê 52
Nossa Senhora da Anarquia 53
Jequitibá 54
Soneto de São Francisco de Assis 55
O Rei dos Reis 56
Vitórias régias 57
A Academia Brasileira, pela voz 58
Resposta expressa a uma desconhecida 60
O gosto e o tato 61
Poesia 62
A Astroterapia 63
Magnetismo 64
Atlântica 65
Este corrompe virginais purezas... 66
Cósmica 67
Silenciosissimamente 68
Monasticon 69
Segredos do ofício 70
O espírito da matéria 71
Argumento de defesa 72
Violeta azul 73
Continuam a roubar crianças nos E. Unidos 74
Gratitude 75
Arte de Amar 76
Súplica 78
Foi por estas razões... 79
Eco 81
História trágica 82
Eu, pecador 84
Harpa 85
Lembrança do meu querido Villaespesa 86
Noivado 87
Baldelairiana 88
A morte de Valmiki 89
Alumá 91
Maya! Maya! Maya! 92
Sentindo a força e vendo o caso 94
Retrato de São Francisco de Assis 98
Folha solta 99
Algumas das últimas conquistas do Instituto do Cérebro de Moscou 100
Stella Consolatrix 101
José Maria 102
Subjetivismo 103
Pensamento de uma flor 104
Spiritualis pudor 105
Humanamente 106
Humanissimamente 107
No andar e no falar 108
Ramo das violetas do meu culto 109
Ante o retrato de Miguel Lemos 110
Aplausos, parabéns a André Maurois 111
As três Marias 112
Consolação 113
Tule 114
Similitudes 115
Filosofia da Arte - Da Eternidade 116
Da Infinitude 117
Auréola 118
Rimance para adormecer Cleómenes Campos 119
Canção Tristíssima 122
Índice 125
 

A Arielesca Oferenda

 

Cleomenes Campos: na espiral do incenso

A oblata se traduz, que te levanto:

Meu coração, sentindo o teu encanto,

Equivale a um turíbulo suspenso...

 

Pela Doçura te tornaste Santo:

Ao bendizer-te a suavidade, penso

Ver a imagem nimbar-te um brilho intenso,

Brilho de ouro solar, cor de amaranto...

 

A evolar-se, em volutas, envolvente,

A inspiradora essência da harmonia

Desprende-se de ti, radiosamente...

 

Poeta sensibilíssimo, a Poesia

És tu! Conténs o dom que se pressente

No perfume que a música teria.


Entre a Saudade e a Esperança

 

Cantar quisera, surdinando, agora,

Na despedida da serenidade,

O colorido, a musicalidade

Do abrir do dia, do apontar da aurora.

 

Cantar quisera o ideal, fugaz embora,

Em cuja essência, espiritualidade,

Se aspira a graça, a naturalidade

Do sobrenatural, que se evapora;

 

E o soneto esbater, tendo o consolo

de, um arco-íris minúsculo, alvorando,

No céu de rosa, ainda em botão, depô-lo...

 

Tal um sorriso de criança, quando

Dorme, e dizem as Mães, em doce arrolo,

Que ela com os anjos deve estar sonhando...


Estado radiante da matéria

 

Longe da terra, abandonando a argila,

Isentado da humana contingência,

Tentarei descrever a supraessência,

Em palavras aladas exprimi-la.

 

Dentro da alvura da amplidão tranquila,

Em semissonho ou semissonolência,

Conservando a lembrança da aparência,

Suponha-se ainda que a razão vacila.

 

Imponderavelmente, em tal suicídio,

O fluído que, a ascender, se desenrola,

Dir-se-ia cor de pérola ou de irídio.

 

A alma, o aroma do espírito, a corola

Carnal despreza, e foge do presídio

Do corpo, e em ondas eteriais se evola...


Nos Reinos do Invisível

 

Como vivem milhares e milhares

De entes na terra, assim, sem o saberes,

Deverão existir, povoando os ares,

Maravilhosos, invisíveis seres.

 

Tendo formas diversas, singulares,

Estranhos todos, lindos pareceres,

Possuirão, esses nossos avatares,

Outras aspirações, outros deveres.

 

Vindos de milenária procedência,

De desencarnações, heterogêneos,

Sobem, graduam-se em resplandecência.

 

Contarão os seus dias por decênios,

E, iluminados, em clarividência,

No seu duplo sentido, serão gênios.


Viático

 

Fazemos parte dos desgraçados

Que não desejam ser consolados.

 

Temos as ânsias indefinidas

Das almas puras ou bem nascidas.

 

Nunca te esqueças, mísero velho,

Desta verdade que há no Evangelho:

 

A dor é tudo. Lembre-te, ó triste,

Que, fora dela, mais nada existe.

 

Por este grito, rouco e profundo,

É que o Evangelho domina o mundo.

 

Se a dor tirarmos da natureza,

Tudo é miragem, tudo incerteza.

 

No entanto, a causa por que gememos,

Em vão buscamos e não sabemos.

 

A dor é a nossa fatalidade,

Razão secreta da humanidade.

 

Todos os santos, cheios de mágoa,

Erguem os olhos, mas rasos de água.

 

Por isso a amemos, chorando tanto,

Que ela nos lave com o nosso pranto.

 

Felizes sejam os que choraram,

Porque sofrerem, porém amaram.


Sonâmbulo

La misère? Ça n'existe pas pour un Artiste.

LEÓN DIERX

- "É a Princesa! Silêncio! Olhai-a, Irmão!

Quando a lua anuncia a primavera,

Ela, sorrindo pelo olhar, me espera,

Entre os lírios azuis do seu balcão!"

 

Deserta, a rua imensa. Na amplidão,

Nenhuma estrela solitária. E mera

Fantasia, produto da quimera,

Ele a amava, à janela da ilusão!

 

- "Mas que Princesa?" interrogou Verlaine.

E o Sonâmbulo, alheio à vida vã,

Nem respondia, num sonhar perene...

 

Rei de Rodes, Senhor de Mobihan,

Conde-Templário, Mestre de Maltene,

Assim era Villiers-de-L'Isle-Adam!


Hiperestesia

 

Há um estado que faz que nos livremos

Da substância corpórea, espessa e bruta,

E com o espírito a matéria luta,

E é vencida em seus trâmites extremos.

 

Da argila foge, eleva-se, em voluta,

O fluído astral que todos nós contemos:

O íris, em cada raio, percebemos,

E visualmente a música se escuta.

 

Ouvem-se as cores, vendo-se os sonidos,

Tal como, sem tocar, se conhecesse

A macieza dos tons nos coloridos.

 

Nessa loucura estesiante, nesse

Delírio, ouve-se até sem ter ouvidos,

Fechando os olhos, o mistério vê-se.


Flor escondida num álbum

 

A Dona Josepha

Senhora, a graça da Beleza, e a graça

Da Bondade, encantando o vosso rosto,

Querem que o madrigal que se vos faça,

Antes de se dizer, seja suposto.

 

Quem, ao ver-vos, Senhora, em nossa raça

De artistas sábios, de apurado gosto,

Não sentirá que sois, sempre sem jaça,

um diamante lirial ao sol exposto?

 

Branca e bela, quem há que não se agrade

Da luz dos vossos olhos de turquesa,

Ou da alvura da vossa mocidade?

 

E se assim sois, tão doce, na pureza,

Bendita sejais vós, pela Bondade,

Bendita sejais vós, pela Beleza!


Flor do meu pranto ao meu mais triste amor

Já não te peço amor, abasta que tenhas dó,

E que não te provoque o riso o meu desgosto,

E uma lágrima longa umedeça o teu rosto,

Quando eu por ti passar, pobre, esquecido e só.

 

Carregando, a chorar, este féretro santo,

No qual, por tuas mãos, assassina querida,

Dorme o seu sono eterno, orvalhada de pranto

A mais pura ilusão de toda a minha vida.

Palavras a uma Noiva

Meu coração jamais, querida,

Esquecerá

O que disseste, à despedida:

"Não partas já"

 

"Fica um minuto ainda comigo.

Irás depois.

Fiquemos juntos, meu amigo,

A sós, os dois."

 

Tão simples foste e tão sincera,

Tão natural...

Ai, nestes versos, quem me dera

Ternura igual!

 

Calei. Venci-me. E triste, triste,

Baixei o olhar.

Da mesma forma traduziste

O teu pesar.

 

Foste a maior paixão que tive,

O grande amor.

Trinta e três anos mal contive

O seu clamor.

 

Disseste ainda nesse dia,

Um ano faz:

"Oh! que surpresa! Oh! que alegria,

Hoje me dás!"

 

"Sempre florido!" E, entre louvores,

Gratos, bem sei,

Te referiste às lindas flores

Que te levei.

 

De que maneira eu te adorava,

Não quis dizer.

Do teu orgulho eras escrava,

E eu, do dever.

 

Indiferente, sem contraste,

Ou sem supor

Quanto eu sofria, amarguraste

Meu pobre amor.

 

E eu te contemplava, pasmado,

Cheio de dó,

Revendo o sonho do passado

Desfeito em pó.

 

Meu coração em flamas arde,

Sentimentais.

Porém agora é tarde, é tarde.

Tarde demais.

 

Disseste ainda, comovida,

Sem efusão:

"Amas a vida, amas a vida.

Eu, não; eu, não.

 

Tudo acabou. Não tive sorte,

Tendo altivez.

Só peço a Deus a paz que a morte

Nos dá, talvez".

 

Mágoa maior não suponhamos

Que possa haver

De que a mulher que tanto amamos

Ver padecer.

 

Jamais as tuas agonias

Disseste a alguém.

O mal atroz, que tu sentias,

Senti também.

 

De novo, a tua mão, tremente,

Beijei, premi;

E ansiava por, unicamente,

Fugir de ti.

 

E assim o fiz. Como um finado,

No chão rolei.

Dentro da noite, alucinado,

Chorei, chorei.

 

Meu coração ser teu amante

Não quererá,

Mas se disseres noutro instante:

"Não partas já".

 

Oh! sem pensar no teu futuro,

Ou que és mulher,

Não partirei jamais, eu juro,

Haja o que houver.


Quem será? quem serão?

I

Dedicatória de um retrato oferecido a Annibal Theophilo.

Dez anos ela foi, com o maior sacrifício,

Capaz de demonstrar a mais santa cordura.

Sua dedicação, atingindo a loucura,

Revelou-se total, integral, desde o início.

 

Formosíssima, sim, e amável quanto pura,

Não desejando mais do que o próprio suplício,

Em tudo que era seu não havia artifício,

Tanto era apaixonada essa flor da ternura.

 

O amor, quanto mais dá, mais quer dar. Impaciente,

E insaciável também, mártir incontentada,

Num retrato escreveu, comovedoramente,

 

Esta frase ardorosa, oferenda exaltada:

- "A quem sempre me quis, querendo-me somente,

A quem tudo me deu e a quem nunca dei nada".

 

II

Às três horas da manhã, na capela mortuária de Annibal Theophilo.

Romanesca, alta noite, embuçada, desponta,

Tendo cravos nas mãos, ensombrando a Capela,

Uma estranha mulher que, a correr, se atropela,

Toda, no seu negror, fantasmática e tonta.

 

Chega junto ao caixão. De nada se amedronta,

E soluça, beijando aquela face, aquela

Boca, cheia de mel, que era, sendo tão bela,

Nobre até no cartel ou castigo da afronta.

 

Quem será? E nenhum dos amigos, no instante,

Tentou saber quem era essa Desconhecida,

Respeitando-lhe a dor, a paixão lancinante.

 

Depois, sombra talvez entre sombras perdida,

A imprecar, afastou-se, encobrindo o semblante,

E desapareceu, para sempre, na vida.

 

III

Todos os anos, no saguão do Jornal do Commercio, aparece, sem que nunca se saiba quem o envia, um ramo de rosas brancas, tendo, numa fita, em letras de ouro, a seguinte legenda - Nesta data, aqui foi assassinado, pelas costas, o poeta Annibal Theophilo.

Recebei, todas vós, que, a servir, abençoamos,

E Annibal Theophilo ouve, entre oblatas radiosas,

A nossa gratidão, que se afeiçoa em rosas,

Como as que lhe trazeis, irmanadas em ramos.

 

Musas angelicais, Madonas lacrimosas,

Que exprimis o fervor com que nós o lembramos,

A dádiva aceitai, aos molhos e em recamos,

Da nossa adoração, ó Mulheres Piedosas!

 

Porque nunca esqueceis o nosso Irmão, Senhoras,

Porque não permitis que o sonho se desfaça,

Porque assim praticais a saudade, Lenoras,

 

Natércias do Brasil, flores da nossa raça,

Lírios do nosso amor, Claras Consoladoras,

Benditas sejais Vós, almas cheias de graça!


Hugoannete

 

Adoro a Suzette,

Mas quero a Suzon...

Suzette em toilette,

Suzon sem jupon...

Ah!! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!

 

Rimando a Suzette,

Abraço a Suzon...

Amá-las compete,

Variando de tom...

Ah! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!

 

A mão, a Suzette,

A boca, a Suzon...

Quem ama reflete,

Se prova um bombom?

Ah! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!

 

Ao baile, Suzette,

Ao bosque, Suzon...

Flonflon larinette,

Cantava um piston...

Ah! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!

 

Pensando em Suzette,

Amando a Suzon,

Pintamos o sete,

Ao sol de Meudon...

Ah! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!

 

Sonhei com Suzette,

Beijando a Suzon...

E o amor me promete

Fundi-las num som...

Ah! Suzon, Suzette,

Suzette, Suzon!


Arielice

 

Ariel, menino peralta,

Fez, entre mil criancices,

Esta que é, das traquinices,

A mais sutil e a mais alta.

 

No alvorar da primavera,

Troca das flores a tinta

Com que a natureza as pinta,

E inteiramente as altera.

 

Leva a extremos os delírios

Das mutações fantasiosas:

Repinta de roxo as rosas,

Colore de verde os lírios...

 

Entretém-se com os bruxedos

Das incríveis peraltagens:

Torna de anil as folhagens

De todos os arvoredos...

 

Às asas das borboletas,

Carochinhas, beija-flores,

Dá novos brilhos e cores,

Faz níveas as que eram pretas...

 

De manhã, Titania, ao vê-las,

Diz a Oberon: - Quem teria

Soltado na luz do dia

Tão fantásticas estrelas?

 

E Robin, o companheiro

Em tantas desenvolturas,

o efeito das travessuras

Observa num jasmineiro...

 

Mas, com a alteração esparsa,

Ficam os numes confusos,

Sem saber quem, contra os usos,

Preparara aquela farsa...

 

As regras da Natureza,

As leis da eterna harmonia

houve quem, por fantasia,

Transmudara, com certeza...

 

Ai, que brincadeira cara!

Porém foi tal estroinice

Que permitiu que se visse

O que jamais se sonhara...

 

Foram essas inocências

Que ainda nos fazem, agora,

Ver certos róseos da aurora

E o azul de algumas hortênsias...


A respiração do silêncio

 

Rumores da noite morta,

Da Natureza dormindo:

O escorrer de uma comporta,

Da água do açude fluindo...

 

Chios, cochichos, gemidos,

Ecos, suspiros, segredos,

Inconscientes estalidos,

Tosquenejar de arvoredos...

 

E o mistério, por seu turno,

Que faz que a sombra se amoite,

Dentro do abismo noturno,

Pela calada da noite...

 

Vozes vindas do negrume,

Veladas, sob a neblina,

Confundidas com o perfume,

E diluindo-se em surdina...

 

No sertão da minha terra

Dá-se um nome lindo, lindo,

A essa eloquência que encerra

o campo imenso, dormindo...

 

A horas velhas, a harmonia

Que se ouve, de quando em quando,

É o quiriri, a poesia

Da Natureza, sonhando...


Canção do Príncipe Triste

-A toda riqueza,

Prefiro a pobreza

Do meu Manuel.

(Canção portuguesa. De Penafiel.)

Já tive tudo

Tudo o que quis.

No meu escudo

Fulgem rubis.

Nem a realeza,

Pela grandeza,

Dando a riqueza,

me fez feliz.

 

Conquistei glórias

E sagrações,

Honras, vitórias,

Aclamações.

E achei, descrente,

Que tudo mente,

E elas somente,

São ilusões.

 

Nas minhas penas,

Em minha dor,

Há um sonho apenas,

Consolador:

Tudo o que almejo,

No meu desejo,

É ter um beijo

De puro amor.


Bem-te-vi

 

A flecha feriu-me fundo

E a teus pés tombar eu vim.

E estavas longe do mundo,

Estando perto de mim.

 

Um ben-te-vi, quase a medo

Gritou, num bosquete em flor,

Confessando o teu segredo,

Nunca dito por pudor.

 

Sorrimos ambos. Calados,

Permanecemos depois.

E o bem-te-vi, dos cercados

A flautear a nós dois...

 

Foi neste silêncio agreste,

E, talvez, sem o querer,

Que, sem o pensar, disseste

O que eu pensei, sem dizer.


Que diz de pérola a pérola

 

Que faz o ourives? Termina,

Lapida a flor de um anel.

Refagulham na oficina

Pedrarias a granel.

 

Diamantes, prasios acesos,

Crisólitos, ezteris,

Lincurios e sandaresos,

Esmeraldas e rubis!

 

Certa mulher misteriosa

Procura o lapidador:

Não quer gemas, quer, preciosa,

Sua irmã no mostrador.

 

Riem, deliram, ardendo,

As pedras, a seduzir.

E ela, numa pérola vendo,

Fica a sonhar e a sorrir.

 

E a pérola diz: - Não quero

Ser tua, ninguém te quer,

Porque nunca foi sincero

Teu coração de mulher.

 

Prefiro o mar. Não realço

O que a perfídia contém.

O mar é bem menos falso,

Menos sombrio também.


Bandurra

 

Conheceis, vós todos, de capa e de espada,

Conheceis, vós todas, de trunfa e manton,

Don Gil de los Guapos, guitarra em Granada,

Don Gil de las Guapas, toureiro em Leon?

 

Sou eu! que, segundo gentil buena-dicha,

Das damas sou pajem, sou rei dos galãs.

Escapo-me, ileso, na Plaça ou na rixa,

Pela salvaguarda de dois talismãs!

 

Por que nenhum touro me fere ou machuca,

Ou logo amedronto qualquer brigador?

Porque tenho os olhos da minha Maruca,

Que a vida me inundam de bênçãos de amor!

 

Caramba! quem teve tal glória ou façanha,

Possui tal riqueza, contém esse dom?

Eu só! que, no mundo, sou Grande de Espanha,

Guitarra em Granada, toureiro em Leon!


Vendo o pranto sorrir na terra iluminante

 

Dentro da noite dos teus olhos vejo,

Negros, imensos, vividos, agora,

Um líquido veludo, cor de amora,

Que nunca ouvi louvar como desejo.

 

Na cristalinidade que os irrora,

Lembrando o orvalho, vítrico lentejo,

Sinto a doçura que umedece o beijo,

Noto, na escuridão, o arder da aurora!

 

São seus contrastes fabulosos! Quando

Os contemplo, o que expressam é tão lindo

Que imantiza, seduz, maravilhando,

 

Impondo, surpreendendo, sugerindo

A surpresa da treva rutilando,

A encantação da lágrima sorrindo!


Maio

 

Ora, ela era mulher, mas eu não o sabia.

Na minha adoração, ao sentir-lhe a poesia,

para mim, tudo nela era azul, encantado,

De tal modo sutil, de tal maneira alado,

Que anjo eu supunha ser essa flor primorosa,

A entreabrir-se em botão, a entrefechar-se em rosa.

E era já moça feita e eu julgava-a menina.

Certa manhã de maio, através da neblina,

Fomos ao bosque ver se ainda havia framboesas,

Nos floridos silvais daquelas redondezas.

O frio era excitante; e, em rajadas, violento,

Como um demônio solto, às cabriolas, o vento

Fustigava, soerguendo as vestes, assustando,

Parecendo, brincão, zombar, de quando em quando.

E escandalosamente, esgueirando-se, em frouxa

Risada, fez-me ver-lhe o rosado da coxa,

Fez-me entreadivinhar-lhe a pele cetinosa,

Feita de ouro auroral ou neve luminosa.

Ah! que revelação, surpreendente delícia,

Para o tato ocular, foi aquela carícia!

As asas do anjo, então, se esfolharam, e, delas,

Surgiram, feminis, as espáduas mais belas

Que jamais eu sonhara... E, ao fim daquele dia,

Eu a quis, muito mais do que antes lhe queria.


A única porta aberta no presídio

 

A vida é triste, é trágica. Façamos

Por enganar-nos, mas com tal viveza,

Que demos a impressão de que a beleza

Em palavras e em atos realizamos.

 

Colhemos os frutos nos mais altos ramos,

Espiritualizando a Natureza,

Leguemos, com fervor e com largueza,

Os tesouros das bênçãos que sonhamos.

 

Amar! Idealizar! A idealidade

É a consolação única que temos

Na miséria da nossa humanidade.

 

A ilusão, em seus êxtases supremos,

Torna-nos semideuses, e persuade

Ser verdadeiro tudo o que não vemos.


Piedade

 

Iludir, a iludir-te, eis todo o intento.

Pairando além dos mundanários miasmas,

Em rimas de ouro nos teus versos plasmas

As miragens do eterno encantamento.

 

Cantas. E de tal modo te entusiasmas

Que, na explosão do teu temperamento,

Sonhos incríveis desfolhando ao vento,

O planeta povoas de fantasmas.

 

Em lúcida loucura, alheio, ao gozo,

Alcanças quase a redenção budista,

Deserdado, infeliz, irreligioso.

 

Amas e sofres. E, em verdade, artista,

Nem és tu mais do que um incréu piedoso,

Ou de que um velho e místico anarquista.


Monólogo de Tiago, o Taciturno

 

As ou like it

Esta floresta negra, esta floresta

Híspida, é menos má, bem menos má

Que um coração0 que, a rir, se manifesta,

Mas onde a inveja de talaia está.

 

Prefiro o inverno aos homens. Nada presta

Na sociedade estolida. Oxalá

Sintas em cada gume, em cada aresta,

A sensação que a hipocrisia dá.

 

O frio e a fome são cruéis. Contudo,

Não são vis como tu, amigo, irmão,

No disfarce infernal do humano entrudo.

 

Só, na paz da completa solidão,

Verás que, sem ser rombo ou campanudo,

Vale um rochedo mais do que um sermão.


Ontologia

 

Do azul do céu, do verde das campinas,

Os cegos têm a ideia pupilar,

E, como nós, ao fundo das retinas,

Guardam a glauca limpidez do mar.

 

Recordações da espécie, cristalinas,

Retêm, malgrado o inútil ocular.

Cerebralmente neles examinas

A hereditariedade milenar.

 

Veem, melhor, talvez. Aumentativo,

É o poder de quem lembra ou quem deduz,

Dos devaneios todos incentivo.

 

Notam eles, no encanto que os conduz,

As sete cores do íris positivo,

E, assim, sonhada, ainda é mais linda a luz!


E outras ondas virão, no mar do tempo...

 

O mar é a imagem da vida.

Mais não somos do que a vaga

Que se ergue, e ruge, e, em seguida,

Rola e se apaga.

 

A encrespar-se, entumecida,

Em ondulas se propaga.

Tudo desfaz na investida,

Louca e pressaga.

 

E, por ais que se contorça,

Na raiva, cólera fula,

Dessa procela,

 

Dura um segundo essa força:

Na vala comum se anula

E se nivela.


Omnisplendência

 

O Amor é sempre imaculado!

Seja em quem for, seja onde for,

Torna-se amável o pecado,

Quando, quem ama, inspira o Amor!

 

Há, na brancura do noivado,

Um brilho maravilhador!

O beijo desse noviciado

Tem a pureza de uma flor!

 

Na divindade se origina,

Sendo a melhor das perfeições,

A sua essência feminina!

 

E, entre cem mil revelações,

O Amor, que os corpos desvirgina,

Revirginiza os corações!


Visita de Frei Junípero a São Francisco de Assis

 

A paisagem lembrava-lhe o Carmelo,

A Colina dos Anjos, mas tal qual.

A água, a fluir, cantava, em ritornello,

A Umbria, fresca e feliz, era um rosal.

 

Tudo tão doce, mas tão doce e belo,

Naquele encantamento natural...

E ele ouvia rimar o Poverello

As palavras de amor do seu missal.

 

E horas passou na paz da santidade,

Mudo de comoção, nesse jardim

Da Esperança, da Fé, da Caridade.

 

E orava, erguendo o olhar, dizendo, enfim:

- Como será, Senhor, tua bondade,

Se existe um homem tão perfeito assim?


Ouvindo sem ter ouvidos

I

- Podeis compreender um pintor cego, um orador mudo, um escultor manietado, eu sem mãos? Pois Beethoven ficou surdo! e, como Deus, do nada fez o mundo! Na escuridão da terra germinam as raízes: no silêncio impenetrável jazem as eufonias... E as árvores imanes abrem-se em frondes! Beethoven esplende ao sol! Compunha sem instrumento: e, quando ia executar, tinha sobre o clavicórdio uma vareta. Feria os acordes, encostando a vareta, numa extremidade, às cordas, prendendo a outra aos dentes. Por esse processo milagroso, conseguia perceber os sons graves, sentindo a vibração nos ossos! É grave sempre a sua música! Beethoven inventou a ventarola acústica, a vareta mágica!

Só consegue expressá-lo a teosofia!

Presa aos dentes a ponta da vareta,

Com a extremidade oposta na espineta,

Cordas e teclas, com furor, feria!

 

Grave, a música estranha percebia.

Inteiramente fora do planeta,

Ou das regras da vida, o anacoreta

Assim compôs a Nona Simfonia!

 

E, construindo epopeias de destroços,

Em surtos siderais, sempre em hosana,

Executava os desesperos nossos!

 

Sem ouvidos, ouvia a sobre-humana

Voz da amplidão, pelo abalar dos ossos

Da enorme caixa abobadal, craniana!


E vendo sem ter olhos

II

Hellen Keller, quem há, dentre os poetas incréus,

Que não sinta que tens ainda no ombro o vestígio

Da asa que nos conduz ao radioso fastígio,

E é da Revelação o maior dos troféus?

 

A Natureza, em surto, esplendendo sem véus,

Exalta no teu ser o espiritual prestígio

Da perfeição Ideal, sobre-humano prodígio

Que, há milênios, nos leva à escalada dos céus!

 

És, Helena, a Beleza, o sonho, a luz, o aroma

Da divindade excelsa, irradiando através

Da carne que te veste, a nimbar-te em redoma!

 

Arcangelescamente, a Maravilha que és

Jamais há de exprimir, seja qual for o idioma,

E ajoelho-me, a cantar, para beijar-te os pés!


Ontem

I

Amamo-nos! Amamo-nos! Amei-a!

Amou-me! E foi tão viva essa aventura

Que, mais do que atração, era loucura,

Desvario que os corpos incendeia!

 

A arrastar-nos em sua contextura,

Às convenções inteiramente alheia,

A carne, ardendo, de volúpia cheia,

Fez-nos pensar na morte prematura!

 

Pouco a pouco o delírio, a insaciedade

Se atenua, e, abrandando-se o calor,

Por efeito ou poder da afinidade,

 

Hoje, o que existe em nós, consolador,

É o mútuo sentimento da Amizade,

Ainda mais belo do que o próprio Amor!


Hoje

II

De tal maneira ambos nos entendemos,

Mas de tal modo os corações unimos,

Que alcançamos do afeto os altos cimos,

Os da afeição mais íntimos extremos.

 

Apoiados a idênticos arrimos,

Sombras na sombra confundir-nos-emos.

E não só pelo andar nos parecemos,

Mas até na expressão com que sorrimos.

 

Nos pormenores, como nos conjuntos,

Por leis da intimidade, estamos nós

Conformes sempre em todos os assuntos.

 

Quando ficamos docemente a sós,

As mesmas frases repetimos juntos,

Mantendo a mesma entonação de voz!


Amanhã

III

E, depois das canções da primavera

E do outono, da flores e dos pomos,

Quando o inverno chegar, o que ambos fomos

Ainda seremos. A saudade espera.

 

Um romance de amor feito em dois tomos,

Mas cujo entrecho o tempo não altera,

A nossa história simples e sincera

Há de ser imortal, nós o supomos.

 

Até o final, os últimos instantes,

Sendo gêmeos de corpo e coração,

Perduraremos noivos e constantes.

 

Nossas essências se confundirão:

Os que em vida souberam ser amantes,

No além do além da morte, ainda o serão.


O Iagê

A David Coda

No Acre, entre o Maninauas do Acorê,

Durante o angá, celebração selvagem,

De um só trago tomei a beberagem

Das pajelanças nossas: - O Iagê.

 

E adormeci, ouvindo a poracê.

E sonhei (com tal força os filtros agem)

Que, no tempo e no espaço, ou por miragem,

Via a grandeza que o amanhã prevê.

 

Tudo era azul; e, na telepatia,

Televisio, exalçando o pormenor,

Um continente em fogo percorria.

 

Sob esplendores, que guardei de cor,

A Terra Virgem da Feitiçaria

Se enormizava, cada vez maior!


Nossa Senhora da Anarquia

 

Conta Henri Rochefort que, ao voltar da Moreia,

Depois de exílio atroz, desembarcando em França,

A milícia cruel, que em magoar não se cansa,

Interpelava assim uma velha plebeia:

 

- Por que motivo entrais, numa aduana europeia,

Sem sapatos? Por que? - Dei-os a uma criança

Enferma... - E que escondeis neste saco de trança,

Com cuidados de quem sempre está de alcateia?

 

E ela, a santa, a esmoler: - É um pobre gato cego

Que criei como filho e é tudo o que carrego

Comigo... E o militar - Não mereceis perdão.

 

Prendam esta mulher, com sentinela à vista:

É a tal Louise Michel, a tremenda anarquista,

Condenada às galés por ter furtado um pão.


Jequitibá

 

Vejo Jequitibá, do Soberbo, na Serra

Dos Órgãos, ainda mais, muito mais que um monarca,

Tucháua da floresta ou pajé pariarca,

Ensombradoramente, é o nume da Terra.

 

À tua divindade a amplidão se descerra.

E a homenagem humana é sempre humilde e parca.

A força que possuis toda a selva açambarca.

No âmago montanhaz teu raizame se enterra.

 

Dobras, e, ao teu soluço, escancara-se o abismo,

E o rio te repete, ao rolar da cachoeira,

o eco te reproduz, pelo brasilirismo.

 

Para a minha saudade, árvore sobranceira,

outro nome hoje tens, dou-te novo batismo:

Chamar-te-ei, para sempre - Alberto de Oliveira.


Soneto de São Francisco de Assis

 

- Amore, amore, grida tutto il mondo!

E eu, entre as ressonâncias do concerto,

Na distância de um eco me converto,

E a paixão que me aclara não escondo!

 

Compreendendo do coro o justo acerto,

Ao recrescer do soluçante estrondo,

Pela repercussão em mim, respondo

Com a harmonia das lágrimas que verto.

 

E, no delírio unânime, proclamo

Que sinto um beijo em cada flor querida,

Um coração no palpitar de um ramo!

 

Pelo campo e no espaço, em toda a vida,

Tudo canta, entre súplicas - eu amo!

- Amore, amore, tutto il mondo grida!


O Rei dos Reis

 

Belo, apenas sonhado. Quando visto,

Desilude. No plaino em que se encerra,

Pela monotonia nos aterra,

Nada tem de imponente, ou de imprevisto.

 

Na paisagem mental que se descerra,

Sim; porém, para os olhos, sem registo

Nenhum, ao recordá-lo me contristo,

Tanto ele é grande e mau, sangrando a Terra.

 

Constrói. Destrói. Multiplicando impasses,

Tendo a fúria de infandos Briaréus,

Se compraz no pavor dos desenlaces.

 

Para nós o Amazonas, pelos seus

Delírios, representa uma das faces

Do Inconsciente, a que os homens chamam - Deus.


Vitórias régias

 

Dentro das matas ínvias, na Amazônia

Ao bulhar do balcedo,

No silêncio da noite, ao luar da insônia,

Abrem-se as ninfeáceas, em segredo.

 

E assim ocultas e no entanto egrégias,

Ao termo da velhice

Chegam, desfolham-se as vitórias régias

Sem que ninguém humanamente as visse...

 

Quantos poetas, talvez extraordinários,

Iguais às flores desse

Paraíso, morreram solitários,

Sem que ninguém jamais os conhecesse...


"A Academia Brasileira, pela voz conclamante do Poeta Aloysio de Castro, eleva um Monumento a Raymundo Correa."

(De todos os jornais de hoje, 5 de março de 1937)

Glória! Os Poetas, no espaço e no tempo, Senhores

Do Brasil imortal, que em montanhas se alteia,

Vêm celebrar-te o nome, entre aplausos e flores,

Ó Raymundo Corrêa!

 

És dos Mestres o Mestre, o Artista dos Artistas!

Tudo quanto no ofício há de raro, interpretas!

E vitorioso sempre, esplendendo em conquistas,

És o Poeta dos Poetas!

 

Na metrificação, malabarescamente,

Primas! Bravo! ao ginasta, ao funâmbulo! Em Arte,

Ninguém, seja quem for, sobre a corda tremente,

Pode sobrepujar-te!

 

Que parnasiano és tu! Ó Tecnista, ó Raymundo

Corrêa! Teus Irmãos, e eles só, são capazes

De avaliar, bem sentir com que saber profundo

Tais virtuosismos fazes!

 

Premiando-te o labor, teu renome devia

Ser dado a um bosque azul, como o do Itatiaia!

A um rio que, a cantar, solto na serrania,

Sonoriza uma praia!

 

A um píncaro qualquer, a uma floresta imensa,

Orquidário radioso, em fremente farfalho,

Expressão natural do Brasil, recompensa

De tão nobre trabalho!

 

Ou, na cidade, então, entre jardins, defronte

Do mar, simbolizasse a água que cascateia!

E a esta o povo chamasse - A Milagrosa Fonte

De Raymundo Corrêa!

 

Glória! Sob o esplendor da amplidão fluminense,

Erguem-te um Monumento, entre aplausos e flores,

Como demonstração de que a Pátria pertence

Aos seus Reveladores!


Resposta expressa a uma desconhecida

 

Amas. E vens a mim, numa carta secreta,

A mim que nem sequer, alma incompreendida,

Conheces, confessar tua dor incontida,

E pedir um conselho a um coração de poeta.

 

A honra me cativou. E a resposta pedida

Remeto-a com urgência e lealdade completa:

Se, de outrem, ninguém, nunca, a paixão interpreta,

O direito não tem de estiolar uma vida.

 

Obedece a ti mesma, entregando-te à sorte.

Ergue ao cego destino a súplica da prece,

Ainda que ela te venha em trágico transporte,

 

Porque, impondo-se, o Amor arrebata, enlouquece,

Mas segredos possui mais fortes do que a morte,

Imperando em razões que a razão desconhece.


O gosto e o tato

A Benjamim Mendonça

Quando, de qualquer coisa, com suposto

Agrado, dizes ou concluís que é bela,

Naturalmente, é porque achaste nela

O prazer, o requinte do bom gosto.

 

A arte nos paladares se desvela,

Expressando a delícia em nosso rosto,

Seja no aroma de espumante mosto,

Ou no sabor que o pêssego revela.

 

E igual à gustação é o tato. Humana,

Preponderantemente feminina,

É a sensação, o beijo que os irmana.

 

Tem qualquer coisa, que julgamos fina,

O semitom azul em porcelana,

Lisa e macia e milenar, da China.


Poesia

 

Ouço, às vezes, dizer, disto ou daquilo,

Não ser assunto que se cante em verso,

Preconceito deveras controverso,

Cujo motivo real não assimilo.

 

Penso e sempre pensei de modo inverso:

Seja o tema qual for, tento exprimi-lo

Em rimas claras, com o mais puro estilo,

Porque tudo é poesia no universo.

 

Certa vez, entre as ervas de um barranco,

Desirmanado, de uma estrada à beira,

Encontrei, desfazendo-se, um tamanco.

 

E nele a primavera alvissareira

Fez brotar, por acaso, e todo branco,

O primor virginal de uma roseira.


A Astroterapia

 

Ninguém pode prever os benefícios

Resultantes das grandes descobertas:

São como portas no horizonte abertas,

São como pontes sobre precipícios.

 

Através de pesquisas, por indícios,

O espírito, a pairar, de asas libertas,

Prodigaliza á comunhão ofertas

Redentoras de incríveis sacrifícios.

 

A medicina do futuro espera

O maior dos prodígios da magia,

A melhor das belezas da quimera:

 

Conquistaremos, pela astronomia,

Em surtos, no esplendor da estratosfera,

As maravilhas da astroterapia!


Magnetismo

 

Nunca nos conhecêramos, sequer

Nos viramos. E, um dia, em plena rua,

Sem saber a que causa se atribua,

Tento prendê-la e ela prender-me quer.

 

Uma energia súbita qualquer

Premeditada, sobre nós atua:

Alheia à força da vontade sua,

Tinha um ímã no olhar essa mulher.

 

E unimo-nos então. Naquele instante,

Que o nosso mútuo afeto hoje bendiz,

Houve um poder terrestre culminante.

 

Magnetismo? Atração? Não sei. Feliz

Me julgo. E ela também. Quem for amante,

Deve-o ser sempre, porque a terra o quis.


Atlântica

 

No silêncio da praia, entre montanhas,

Apossou-se de nós, subitamente,

O pavor da invisível, mas latente,

Força que a profundez traz nas entranhas.

 

Embora, na aparência, indiferente,

Pulsam no oceano agitações estranhas:

Disfarçando perfídias e artimanhas,

O poder do elemento se pressente.

 

A água, em sua potência, tem a sorte

De, em antíteses, sempre dividida,

Ser tanto mais serena quanto forte.

 

Faz-nos, pelo mistério, indefinida,

Chegar à angústia de que está na morte

A aterradora explicação da vida.


Este corrompe virginais purezas...

CAMÕES - Canto Oitavo - Estrofe - XCVIII

Ele me ama. Ele é bom, muito bom, mas é pobre.

E bondade, honradez, inteligência, nada

Valem, pois, para os meus, gente modernizada,

O ouro é tudo, ainda tendo o azinhavre do cobre.

 

Corruptor, insinuante, as virtudes encobre,

Sem nunca parecer que corrompe ou degrada:

Pela simulação torna a lama dourada,

Nas mãos de quem o preze e habilmente o manobre.

 

Ontem, falou-me alguém num colar... E, embusteiro,

Referiu-se à miséria, a crianças descalças,

À amargura da vida e ao gozo verdadeiro...

 

E eu respondi-lhe, então: - Estes bens que realças,

Em troca de um amor que se compra a dinheiro,

São pérolas, talvez, porém pérolas falsas.


Cósmica

 

A Vida! a Vida! a Vida! indefinida,

Eterna! Obedecendo à mesma norma

Apesar da aparência que a deforma,

Tudo é força envolvente, tudo é Vida!

 

A potência do todo, na reforma

Individual, opera, transfundida:

No vertiginosismo da corrida,

Nada se perde, apenas se transforma.

 

Morrem milhões de Vidas, num segundo,

Em ti, e a mutação não pressentiste,

Tanto se mostra o seu poder profundo.

 

Porque sofres não sabes; porém, triste,

Prevês que, sendo a síntese do mundo,

Cosmicamente a morte não existe.


Silenciosissimamente

 

E essa lágrima alvíssima provinha

Do coração mais justo que conheço:

Gota de orvalho do mais alto apreço,

Num rosto de madona e de rainha.

 

Com a mais grata humildade me enterneço,

Porque, no seu mutismo, se adivinha

Que a mágoa mais recôndita a continha

Entre as joias morais de um adereço.

 

Trêmula, à flor da pálpebra, na face

Cai, e desce, a brilhar, desliza agora,

Sem que um anjo invisível a enxugasse.

 

Dir-se-ia um lírio que em silêncio chora,

E, na doçura com que assim chorasse,

Fosse como, a chorar, Nossa Senhora.


Monasticon

 

Nos conventos, na paz do misticismo,

Substituem-se as almas, de maneira

Que um velho frade e que uma ingênua freira

Vivem só por amor, pelo humanismo.

 

Com piedade fraterna e justiceira,

Justiceiro e fraterno cristianismo,

Rezam, pensam naqueles que no abismo

Rolam do mundo na infernal fogueira.

 

Quem me dera poder por vós, Princesa,

Provar o amargo pão de Santo Onofre,

Diante da indiferença ou da dureza.

 

Abrir meu coração, inútil cofre

Onde, ao menos, houvesse, com franqueza,

A brancura do pranto por quem sofre.


Segredos do ofício

Porque a rima, na verdade

Dois sentimentos contém

Sendo a imagem da saudade,

É a da esperança também

É o mesmo timbre partido

Que, entretanto, tem o dom

De encantar o nosso ouvido

Pela surpresa do som

"AS CIDADES ETERNAS"

Bizâncio - pág. 87

Imagem da esperança e da saudade,

A rima engasta, rítimicas, permistas,

Sucessões de sonâncias que os artistas

Consideram alheias à vontade.

 

Ao compormos, a análise persuade,

Surgem cadências, vozes imprevistas,

Denominadas, pelos concertistas,

Predileções da musicalidade.

 

O verso é um eco, apenas. E, quem trova,

Sabe que a ciência métrica nos prova

Quanto a harmonia é nebulosa e fluída.

 

Do segredo sutil deste solfejo

Que torna a rima o símile do beijo,

A surdeza da crítica não cuida...


O espírito da matéria

 

Também as catedrais são sinfonias:

Rege a massa coral da arquitetura

A divinização da partitura;

E ambas se irmanam por analogias!

 

O allegro, o adagio, o andante, a tessitura,

O arco, o fuste, o florão... Alegorias

Que, pela execução das harmonias,

Timbram exatas, no esplendor da altura!

 

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem,

E, pelo ouvido, a torre se levanta,

Para que os sonhos da matéria louvem!

 

E, na sua amplitude sacrossanta,

A alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,

Fulge na pedra, quando a pedra canta!


Argumento de defesa

 

Juro. Todas as vezes que elogio,

Faço-o de coração; e, se exagero,

Culpa não tenho, porque ser sincero

É o maior dos orgulhos do meu brio.

 

Amo, e não sei amar sem desvario,

Tendo, embora, a ilusão de ser severo:O que digo, a exalçar, quando venero,

No íntimo d'alma, com fervor, senti-o.

 

Se ha falta, não é minha. Contraponho

À realidade, como corolário,

A febre da paixão a que me exponho.

 

Enamoradamente visionário,

Se a vida fosse como a julgo e sonho,

O que é vulgar seria extraordinário.


Violeta azul

 

Ó violeta, por que não ficaste escondida?

Eras a graça triste, eras a suavidade,

E, talvez por capricho ou por mera vaidade,

Te expuseste uma tarde à intempérie da vida.

 

Não podes calcular quanto foste ofendida,

Nunca imaginarás quanta perversidade

urdiram contra ti no impudor da cidade,

Fazendo-te rolar, linda desprotegida.

 

À adurência do sol, inteiramente nua,

Te deixaram; porém o que mais nos assombra

É saber que o teu nome este mal desvirtua.

 

Oh! por que preferiste ao silêncio da alfombra,

À paz perfumadora, a vertigem da rua...

Violeta Azul, por que não murchaste na sombra?


Continuam a roubar crianças nos Estados Unidos

 

Na infâmia deste crime há tal cegueira

Que estarrece, horroriza, petrifica:

Sua torpeza não se classifica,

Lesa, ofendendo, a humanidade inteira.

 

Da maneira mais trágica e impúdica,

A fome do dinheiro, a verdadeira

Expressão da ganância aventureira

Neste crime dos crimes se amplifica.

 

Rebaixamentos da animalidade,

Atentatórios da Maternidade,

Avejões da cobiça até a demência.

 

Como se num a todos insultasse,

Igual à afronta que nos fere a face,

É a que alguém perpetrou contra a inocência.


Gratitude

 

Nobilitemos todos os ofícios,

Pela veneração aos operários,

Esfalfados em cargos secundários,

Produtores de imensos benefícios.

 

E, pedra a pedra, elevam-se edifícios,

Fábricas, hospitais, liceus, sacrários,

Por seus esforços mais que extraordinários,

Cheios de amor em tantos sacrifícios.

 

Ao fim do dia, muita vez agreste,

Esta dedicação te discipline,

Este consolo comunal te reste.

 

Aconselhava o Arcanjo Kropotkine

Que todo aquele que possuir, empreste,

E todo aquele que souber, ensine.


Arte de Amar

 

Eternamente incontentado,

De modo transfigurador,

A vida inteira, tenho dado

À Arte de Amar o meu fervor.

Seja a quem for, ou como for,

Em cada crise, em cada excesso,

Brutal, febrento, assanhador,

Quando termino, recomeço.

 

Ao predomínio acostumado,

Torno-me indômito senhor,

Multiplicando o meu agrado

Que, sem cessar, se faz impor.

E, donjuanesco imperador,

Sem mais demora, ou retrocesso,

Sob a infernal ação do amor,

Quando termino, recomeço.

 

Porque me julgo potentado,

Confio em mim, do meu furor,

Como ainda há pouco, ainda há bocado,

Transfundo o fluído excitador.

E ardo e flamejo e pecador,

Em plena força, em pleno acesso,

Clamo, a rugir fulminador:

Quando termino, recomeço.

 

OFERTA

Satania! sabes com que ardor,

Inquebrantável e possesso,

Digo, a beijar-te a boca em flor:

Quando termino, recomeço.


Súplica

 

Jura que se eu morrer não terás outra amante,

Que és meu, foste só meu, serás meu toda a vida,

E que toda mulher tu julgarás fingida,

E que, os olhos fechando, hás de ver meu semblante.

 

Falo-te, a soluçar, peço-te, comovida.

Se acaso tal promessa eu tivesse, durante

A agonia, este alento, embora vacilante,

Talvez me suavizasse o terror da partida.

 

Traidor não queiras ser da minh'alma. Suporta

Tudo, pensando em mim, mas não sejas o réu

De um crime espiritual. Meu coração te exorta!

 

Não mereças jamais tão horrível labéu,

Porque eu, desesperada, apesar de estar morta,

pela segunda vez, morreria no céu.


Foi por estas razões...

 

Londres. Por noite morta.

Exposta ao vento, à bruma

Dorme uma velha numa

Porta.

 

Velhice ao desamparo,

Repousa essa inocente,

Sem ter na vida um ente

Caro.

 

Naquele desconforto,

Naquele desalinho,

Dir-se-ia um passarinho

Morto.

 

Assim, abandonada,

Não era, no profundo

Egoísmo deste mundo,

Nada.

 

Tomei-a ao colo. Ergui-a.

E, como despertasse,

Pousou-me no ombro a face

Fria.

 

Na gelidez da rua,

Tartamudeia e treme,

Pobre velhinha semi-

Nua.


Eco

 

Não tenha medo. O escuro

Não deixará ver nada.

Logo que eu pule o muro,

Você segura a escada.

 

Eu tiro uma somente,

Aproveitando a vaza.

Mamãe está doente,

Não temos nada em casa.


História trágica

 

Ao terminar o espetáculo,

Consegui falar-lhe, a sós,

Disse que a achava lindíssima,

E também cruel, atroz!

 

E ela sorria, observando-me,

Sem nada me responder,

Como quem meus fisionômicos

Traços quisesse reter.

 

Levei-a, indecisa e trêmula,

Confessando, a delirar,

Quando julgava diabólica

A expressão do seu olhar.

 

E amei-a, sem que um vocábulo

Pronunciasse ela, ou, sequer,

Emitisse um vago e tímido

Ai, ou suspiro qualquer.

 

Caso inédito! E era esplêndida

E rara essa flor assim.

No seu mutismo, automática

Cheguei a supô-la, enfim.

 

Que tens? interrogo e aflijo-me

O teu olhar não me vê?

Perdoa, atende-me, escuta-me:

Por que não falas? Por que?

 

E ela, sentindo-me a súplica,

Principia a soluçar,

E conta a tortura mórbida

Que a não deixava falar.

 

Era surda!  voz, o cântico

Do beijo, essa triste flor

Nunca ouvira, nem a música

Das declarações de amor!

 

Chorando, convulsionando-se,

E com a mais negra estranhez,

Pormenorizou-me a angústia

Que há na incurável surdez.


Eu, pecador

Eu, pedindo perdão para o teu crime;

Eu, pedindo que aumente o teu pecado.

Guimaraens Passos

Pecaste? Pecas? Pecarás. Castigo

Nenhum te atemorize. A Natureza,

Sendo bela, é imperfeita, meu amigo

E é por isso que é boa, com certeza.

 

Peca. Podes pecar. Não há perigo.

De coração te falo e com franqueza.

Por ter pecado sempre é que bendigo,

Pecaminosamente, esta fraqueza.

 

Como suavização de tantas penas,

Único alívio para o teu pesar,

Tuas dores humanas e terrenas,

 

Peca. E pensa que, para te elevar,

Contra as leis naturais há um crime, apenas,

Só existe um pecado: - não pecar.


Harpa

 

Branca, nas amplitudes siderais,

Pelas searas em fruto, a lua nova

As espigas do céu ceifa e renova,

Foice argêntea esquecida entre os trigais.

 

Que há um pastor nesses prados outonais,

A madureza do pomar o prova.

Invisível, escuta-se-lhe a trova

Dos cantares, das suas pastorais.

 

E, ouvindo pelos olhos, se imagina

Que, a balir e a pascer, de norte a sul,

Há rebanhos de ovelhas na campina...

 

E, provindo da tenda de Saul,

Serenando-lhe a cólera, em surdina,

Um doce arpejo se dilui no azul...


Lembrança do meu querido Villaespesa

 

Quando, longe de nós, em terra estranha,

Vires, flor amorosa do Alcoceste,

Flutuar na altura o Pavilhão da Espanha,

Não te esqueças da herdade em que nasceste.

 

Neste momento comovente, neste

Sublime instante, de afeição tamanha,

Não te esqueça a choupana em que viveste,

Nem a quem, à distância, te acompanha.

 

Nunca serás inteiramente alheia,

Tendo embora riquezas e renome,

A uma saudade, de ternura cheia.

 

Dirás, talvez, ao murmurar meu nome,

Lembrando a nossa infância e a nossa aldeia:

- Era pobre, é verdade, mas amou-me.


Noivado

 

Dentro da noite branca, em rondas cariciosas,

Provinda dos moitais, provocando o desejo,

Encheu-me o varandim de trabalho o bafejo

De uma essência vernal feita de mel e rosas.

 

E o aroma tentador, equivalente a um beijo,

Lembrou-me a floração dos jasmins e mimosas.

E da Côte d'Azur cenas maravilhosas,

Perfumando-me o sonho, à distância, revejo.

 

E uma voz que a cantar tremulasse e sorrisse,

E que tão musical fosse a de Primerose,

- Não te esqueças, jamais, surdinando, me disse,

 

Do mês de maio em mil novecentos e doze,

Do luar de Cimiez, da primavera em Nice,

E da flor que eu te dei no jardim de Val-Rose.


Baldelairiana

Quand tu vas balayant l'air de ta jupe large,

Tu fais l'effet d'un beau vaisseau qui prend le large.

Chargé de toile, et va roulant

Suivant un rhythme doux; et paresseux, et lent.

Maravilhosissimo

Tropicália. Torpor. Coqueirais. Mar infindo.

Peixes de escama de aço, à flor d'água, em cardume.

Fumantes panelões de alcatrão e betume,

Purificando o cais, o ouro do ar denegrindo.

 

Neste cenário, tu, seminua, dormindo,

Surges. E a selva inteira, a exsudar, se resume

No teu estonteador e escaldante perfume

De sapota verdoenga, ananás, tamarindo.

 

Baforas, ao fugir, ondulante serpente,

Um cheiro, ao mesmo tempo, acre, acídulo, amargo,

De fruta do equador, que condensasse o ambiente.

 

Crioula, a bambolear, pervagando em letargo,

Embriagada, te vais, lenta e molentemente,

Dando a impressão de um barco rial, rumando ao largo...


A morte de Valmiki

 

O Poeta Valmiki vai morrer. Tem cem anos.

Conheceu a ilusão dos desejos humanos.

Não espera. Não crê. Inteiramente inútil

Tudo lhe pareceu, sendo efêmero e fútil.

O mundo interpretou, foi à origem das coisas

E das causas, sentiu a frieza das lousas.

Em versos imortais, de alma desiludida,

Desesperadamente, amaldiçoou a vida.

Farto, achou-se feliz, tendo a carne gelada,

Ao pressentir a paz infinita do nada.

Uma branca formiga aparece, e, a roê-lo,

Sobe-lhe pelos pés, vai-lhe até o cabelo.

E outra, mais outra, em fila, em carreiro, em seguida,

Às dez, às cem, às mil, aos milhões, de corrida,

Penetram-lhe na boca, invadem-lhe as narinas,

Com crescente furor, devorando, ferinas,

Carcomendo, destruindo a carne imunda, abjeta

Do Cantor sem rival, do incomparável Poeta.

Impassível sentindo a invasão pululante,

Não se queixa. Despreza a miséria. Ofegante,

Olha. Vendo o esplendor da criação, apenas

Sorri. No seu pesar há miragens serenas.

E o formigueiro infando o destrói totalmente.

Dele resta o arcabouço, o esqueleto somente.

Mas enquanto no mundo houver quem ame, enquanto

Houver quem sonhe, a voz repassada de encanto

Do imenso Valmiki há de se ouvir na terra,

Até que, enfim, se apague a canção que se encerra

Na música de amor de seus versos supremos,

Eco que rolará, todos repetiremos,

Mas sem nunca esquecer que, inanimada e fria,

Também a dor humana há de se extinguir, um dia.


Alumá

 

Foge, em vaporação, de teu corpo se exala,

Perturbadoramente, acendendo o desejo,

O hálito abrasador, o estonteante bafejo

Dos jardins de Dabul, dos vergéis de Bengala.

 

Provar esse perfume é correr toda a escala

Da volúpia oriental, explodindo num beijo:

A Índia inteira, ardorosa, em perpétuo vicejo,

Nele se condensou, a efluir se assinala.

 

Alumá, flor do bosque, a tua carne de ouro

Potencialmente encofra a energia do germe,

No solo tropical, fúlvido fervedouro!

 

Diante do teu poder sinto-me exangue e inerme,

Em contínua embriaguez pelo defumadouro

Que, a eferver, te provém dos rosais da epiderme.


Maya! Maya! Maya!

I

Ó ilusão universal e eterna!

Quantas vezes nas coisas, nos objetos,

Por efeitos da sombra ou da miopia,

Vemos, como em perfeita bruxaria,

Esquisitos, excêntricos aspectos.

 

Ora, é uma facies, sem anatomia:

Linhas recurvas, traços incorretos;

Ora, vultos de plantas ou de insetos,

Como as que Goya nos desenharia.

 

E a parecença faz que analisemos,

E o parentesco no exotismo é tanto

Que vai aos pontos mínimos, extremos.

 

Sorrimos dessas ilusões. No entanto,

Cremos na realidade do que vemos,

Sem que a aparência nos produza espanto.

 

II

Quantas noites, também, de olhos fechados,

Vemos globos acesos, reticências

multicores, eflúvios, fluorescências,

Fogos fátuos em trêmulos bailados!

 

E olhos fitos. Perfis. Reminiscências.

A estranheza dos sonhos opiados.

Ecos da luz. Retículos. Bordados.

Fios, Pirilampejos. Minudências.

 

Pedrarias de Ofires e Golcondas

E a luminosidade nos conturba,

Forma estrelas minúsculas, redondas.

 

E até dormirmos a contínua turba

Cresce em enxames ou decresce em rondas,

Fantasmaticamente nos perturba.


Sentindo a força e vendo o caso

O homem, hidrocarbureto de hidrogênio coloidal, com impurezas, é um caso, apenas, entre as multi-miríades das combinações orgânicas; e, partícula ínfima, na unidade cósmica, está sujeito às mais sutis variações da universalidade.

Vimos de um túmulo - o ventre

Para que em nós se concentre

O que o túmulo contém

Somos túmulos na vida,

E a campa, em nós resumida.

É como o ventre também.

"Vulcão", pág. 80

Não sei como te chamar. Em mutações velozes,

E que julgamos ser só tuas,

Sem nunca repousar nessas metamorfoses,

Destróis, revibras, tumultuas.

 

É a conquista do ideal, o termo da aventura,

Por entre surtos e vertigens,

Que, no anseio do além, te ilumina e tortura,

E leva ao fundo das origens?

 

Não creio. Exterminar é teu único intento,

Porque és como os vulcões vorazes.

E, pelo parecer, para o renascimento,

Fazes, desfazes e refazes.

 

A consciência e a razão contra ti, rebeladas,

Soltam blasfêmias delirantes,

Imprecam pela voz das mulheres amadas,

Ao separar-se dos amantes.

 

Em cenários teatrais representas o drama

Trágico e mágico da vida,

No qual nunca a piedade estremece e se inflama,

Canta ou soluça comovida.

 

Multiplicando a força, aos embates do acaso,

Moldas, remoldas a matéria.

E, sem nunca faltar, sem o mínimo atraso,

Chegas impávida e funérea.

 

Dás preferência à dor, tendo tudo. Nefasta,

Quem te analisa, considera

Que o homem não é teu fim, inconsciente madrasta,

Mãe impassível e megera.

 

Esboças, nada mais. Tentas, mudando as formas,

Alguma coisa, qualquer coisa

Diversa da que existe e na qual te transformas,

Tal como quem ousa e não ousa.

 

Melhor será que tudo, impiedosa intranquila,

Violentamente se desfaça,

Mas de modo total, como quer Vargas Vila,

Grande no sonho e na desgraça.

 

Finda esta digressão, que a lucidez obriga,

Falo-te a ti, meu semelhante,

Com tristeza e amargor, mas com a mais amiga

Lealdade exposta no semblante.

 

Dirão de ti, talvez, que eras um verbalista,

Do romantismo o último egresso,

E apenas foste tu, mísero pessimista,

Dentre os incréus o mais possesso.

 

Amaste a Prometheu, compreendendo a Anarquia,

Sonhando a redenção humana,

Mas foi por compaixão, porque em tanta agonia

O que pediste era o nirvana.

 

As dores cerebrais, inextinguíveis nodas,

Deixam-nos loucos e perdidos.

Sabes, quando, a clamar, injurias e apodas,

Que são baldados teus gemidos.

 

Passe diante de ti o açodado desfile,

Sem que o castigo te acobarde,

Forte como Vigny e Leconte de Lisle,

Madame Ackermann e Leopardi.

 

Shelley, Byron, os que, no mundo estulto e néscio,

Irmãos de Diderot chamados,

Anthero de Quental, Maupassant, ou Lucrescio,

Rugem na treva enclausurados.

 

Nada esperas. Não crês. A ilusão nos governa,

Embriaga e arrasta, de vencida.

Na mentira da sorte é unicamente eterna

A podridão, causa da vida.

 

Tu não te perpetuaste e tiveste consciência.

O remorso não te consome.

Suicida-te. Maldize a vileza da existência

Que fez o amor gêmeo da fome.


Retrato de São Francisco de Assis, quando chamado Príncipe da Juventude

 

Belo! A cantar! Na flor da mocidade!

Aos vinte anos! Ao sol da gentileza!

Nos saraus de Florença ou de Veneza,

maravilhando pela airosidade!

 

De tez de opala e de olhos de turquesa,

Não há mulher que dele não se agrade:

Belo, em toda a candura da Bondade!

Moço, em toda a alegria da Beleza!

 

Para quem no seu culto se acrisole,

Seduz a fina imagem do azulejo

De Ludovico Cardi da Cigoli!

 

Espelhada no corpo a alma lhe vejo:

Moça, tendo o frescor dos rosasoli!

Bela, tendo a doçura do seu beijo!


Folha solta

 

Em breve acabarei não assinando

Mais nenhum dos sonetos que componho:

Por vários males e motivos, ando,

À força de sentir, sempre tristonho.

 

Por que? Mas para que? Se é miserando

Tudo, e, mais do que inútil, enfadonho?

Anonimar-me num imenso bando,

Despersonalizar-me, eis o meu sonho.

 

Não ter. Não ser em vida. Olhos enxutos.

Mãos vazias. Produzo bagatelas,

Na pobreza dos campos devolutos...

 

Árvore sou, talvez, das menos belas,

Que solta, por não dar flores, nem frutos,

Centenares de folhas amarelas...


Algumas das últimas conquistas do Instituto do Cérebro de Moscou

 

A anestesia pela luz! A dor

Vencida! Oh! nada sei de mais solene

Que o ultravioleta em seu poder infrene,

Que o infravermelho regenerador!

 

A luz em terapêutica, a se impor

Entre as conquistas máximas da higiene,

Conseguindo que o sono se asserene

Pelo azul, sedativo e sem calor!

 

Belo! Os segredos siderais, arcanos,

A ciência atinge! E o sonho se traduz,

Surpreendendo em prodígios sobre-humanos!

 

A vida prolonguemos, eia! sus!

Mas em agerasia, até cem anos,

Pela imanente limpidez da luz!


Stella Consolatrix

 

Se toda a vez que alguém, alucinado

Estivesse, na sua desventura,

Prestes a praticar uma loucura,

Tornar-se, para sempre, desgraçado;

 

Se esse alguém, nesse instante de amargura,

Ouvisse a melodia de um teclado,

O evolar-se de um beijo ou de um trilado,

Fosse, embora, qual fosse a criatura,

 

Juro que a falta não cometeria,

Malgrado o desespero na agonia

Que torturasse esse infeliz demente:

 

Porque a Música lembra a Estrela d'Alva:

De todo o mal da escuridão nos salva,

Iluminando inspiradoramente.


José Maria

Goulart de Andrade

Choro. Sofro a tortura da saudade.

Venho trazer-te o adeus da despedida.

Ao desfolhar-se a flor da tua vida,

Desaparece a nossa mocidade.

 

E eu te adorava. Com fidelidade,

Trinta e seis anos, gêmeas benqueridas,

As almas conservamos tão unidas

Que éramos nós Saldunes na Amizade.

 

Pobre de mim. A soluçar te sigo,

Sem a esperança que promete o além,

Meu companheiro, meu constante amigo.

 

Dei-te o meu coração. Não sou ninguém.

O que eu tinha de bom, levas contigo:

Metade do que eu fui morreu também.


Subjetivismo

 

Perdido por fantásticas estradas,

Nos intermúndios da filosofia,

Pressinto aproximar-se o fim do dia,

Termo de tantas horas enganadas.

 

E a razão me tortura. E a fantasia

Não consola. Entre crises e ciladas,
Na selva oscura das encruzilhadas,

Paro. A voragem negra principia.

 

E busco um pouso, a bênção de um convento,

A paz moral. E, a abrir-se no horizonte,

Vejo um pomar sorrir-me ao sentimento.

 

Para lá me encaminho. E a clara fonte,

Dessedentora do meu sofrimento,

Encontro no vergel de Augusto Comte.


Pensamento de uma flor, ou de Clotilde de Vaux

A Ivan Monteiro de Barros Lins

Fecha-te a sete chaves, se sofreres,

E a causa do teu mal, do teu pesar,

Pelo melhor de todos os deveres,

Nem a um amigo poderás contar.

 

Poupa-o. Se pelo afeto só viveres,

Se viveres somente para amar,

Sentirás o mais doce dos prazeres

Em não fazer por ti ninguém chorar.

 

Seja consolo tudo o que disseres:

Guarda, recalca as atribulações,

Por mais negras e amargas que as tiveres,

 

Porque espalhar as suas aflições,

Não é próprio dos anjos, das mulheres,

Da pureza dos grandes corações.


Spiritualis pudor

 

A honestidade é um íntimo prazer

Que nos eleva à comunhão divina;

Mas louvar essa graça feminina

Ninguém, jamais, o deverá fazer.

 

Não pelo que se diga ou possa haver,

Não pelo que se sabe ou se imagina;

Prezemos a pureza peregrina

Pelo próprio respeito do dever.

 

Do homem honrado ou da mulher honesta

Nãos e gabe a virtude: é obrigação

Que não se patenteia ou manifesta.

 

Exaltemos, porém, a devoção

Que transparece no segredo desta

Prova terrestre da revelação.


Humanamente

 

Justo? quem pode ser? quem será justo?

De tal realização quem é capaz?

Quem nesta vida poderá, sem susto,

Ter a calma certeza do que faz?

 

Seja qual for o sentimento augusto,

Pensarás em Jesus e em Barrabaz;

A sentença que deres, muito a custo,

Se ela for implacável, a darás.

 

Se, porventura, és pai, perfeito esposo,

Não queiras ser juiz, que um laudo teu

Pode um dia deixar-te duvidoso.

 

Humilde crente ou temerário ateu,

Se a justiça é impossível, sê bondoso,

Que de ser bom ninguém se arrependeu.


Humanissimamente

A Moacyr Chagas

Homem, a face humana e o corpo humano

São sagrados: não uses da vingança,

Não abuses da tua semelhança,

De tal maneira que nos cause dano.

 

Sem desrespeito, sem desconfiança,

Sem os temores de qualquer engano,

Se te amares de modo franciscano,

Alcançarás a bem-aventurança.

 

E tanto quanto ao corpo a alma te seja

Merecedora de veneração,

Esse afeto fraterno te proteja.

 

Porque as culpas mais graves sempre são,

Na miséria da sorte malfazeja,

As praticadas contra o coração.


No andar e no falar,

No sorrir, no sentir...

 

Mas como somos nós parecidos! Dir-se-ia

Sermos primos-irmãos, ou próximos parentes,

Sobre esta semelhança há perguntas frequentes,

Tais interpelações dando-se todo dia.

 

Idênticos, não só pela fisionomia

como pelo moral, ambos estamos crentes

De que tenham atuado, em nossos ascendentes,

Cósmicas atrações, forças da simpatia.

 

Resultantes então fomos nós, com certeza.

Pertencendo do amor à linhagem mais pura,

Esta sublimação não nos causa surpresa.

 

Somos, por leis afins, como o povo murmura,

Traduzindo uma velha expressão portuguesa,

- Olhos da mesma cor, lábios à mesma altura.


Ramo das violetas do meu culto

sobre a campa em que jaz Teixeira Mendes

 

Mestre, florindo a tua sepultura,

Em nossa Matria, Altar da Humanidade,

A reverência o coração me invade,

Da maneira mais tímida e mais pura.

 

Sacerdote, elevando a criatura,

Foste, pelo saber, pela bondade,

A mais alta expressão da santidade,

O mais límpido exemplo da cultura!

 

Em teu valor moral cristalizou-se

Tudo quando conheço de sagrado,

E, ao mesmo tempo, intimamente doce.

 

Penso, evocando o teu apostolado,

Na glória do Brasil se sempre fosse

Pela tua virtude governado!


Ante o retrato de Miguel Lemos

À memória de Otavio Carneiro

Em teu rosto espelhava-se a nobreza

Do condestável cerebral, a fina

Linha da estirpe, que te vaticina

As mais claras conquistas da Beleza!

 

Na graça com que expunhas a Doutrina,

Sempre elegante em tanta gentileza,

Maravilhava a lucidez francesa

Que em teu sonho de esteta predomina!

 

Se do Marquês de Condorcet descendes,

Mentalmente, o primor do teu civismo,

Entre as paixões gratíssimas que acendes,

 

É ter trazido, para o teu batismo,

E pelo coração, Teixeira Mendes

À Igreja Excelsa do Positivismo.


Aplausos, parabéns a André Maurois

 

Romanceemos a vida, romanceemos

Preponderantemente as biografias,

Sem descermos a análises sombrias,

Nem a exames de nódulos extremos.

 

Se nunca somos como parecemos,

Será melhor que, nas apologias,

Os poetas surjam, sem anomalias,

Arielescos, espíritos supremos.

 

Manchas no sol... Quando venero, estrujo,

Cego pela grandeza luminosa,

E das inúteis minudências fujo.

 

Dói-me ver que, na glória tormentosa,

Há quem viva a catar o caramujo

Que se esconde no seio de uma rosa.


As três Marias

 

Quando contemplo o nosso firmamento,

Sinto frêmitos d'asas em minh'alma:

Dentro da noite, luminosa e calma,

Incendeia-se o meu deslumbramento!

 

Branca, a Via Láctea sobre nós se espalma!

E, entre as constelações, no céu vidrento,

Para a minha saudade e meu tormento,

Orion, a Linda, é a que merece a palma!

 

As Três Marias são, de tal maneira

Puras, no seu encanto singular,

Belas, na sua glória brasileira,

 

Que nelas vejo, tendo o mesmo olhar,

Raymundo, Olavo, Alberto de Oliveira,

Ou Coelho Netto, Annibal e Goulart!


Consolação

 

Feito de porcelana ou de marfim,

Ágil, de madrepérola ou de prata,

Rindo, a correr, sonorizando a mata,

Flui o regato, em serpejar sem fim.

 

Folga. E, dentro do humílimo jardim,

Tem qualquer coisa de criança; a inata

Alegria, em que tudo se retrata,

Me faz, às vezes, compará-lo a mim.

 

Gota d'água, rolando modulada,

Cálamo agreste ou flauta de bambu,

Solta, em surdina, a tímida toada...

 

Canta, imita o sabiá e o irapuru...

Não é nada... Porém, não sendo nada,

Assim quiseras ser - e assim és tu.


Tule

Ouvindo Gerardenghi

Ariel, a Tule do teu Reino, a Ilha

Da tua adoração, do teu amor,

É Capri! - incomparável maravilha,

Da terra inteira inconfundível flor!

 

Joia da Itália, primorosa filha,

A luz é nela colorida, o ardor,

De tal modo, cromático, rebrilha,

Que jamais o exprimiu nenhum pintor!

 

Capri, com os seus anis, tintas turquescas,

Nem sabes, tentadora, o quanto influis

Sobre as almas das frágiles Francescas...

 

Em chuvas de ouro esplendes e defluis,

Cheia do embalo das marinerescas

Grutas sonoras e canções azuis...


Similitudes

 

Não posso nunca fazer versos quando

Tenho preocupações, íntimas dores,

Motivos materiais aturdidores,

Que nos tiram o sono alucinando.

 

Nestas crises, por vezes, me desmando,

Incapaz de vencer tais dissabores,

Males secretos e perturbadores,

Que só se podem suavizar chorando.

 

Para fazermos versos é preciso

Que a nuvem da amargura se desfaça,

Doure a mágoa a esperança de um sorriso...

 

Porque é religiosíssimo e se passa

Em Arte, ao realizá-la, o que diviso

Nos estados beatíficos da graça...


Filosofia da Arte

I

 Da Eternidade

 

Porque só se venera o que perdura,

Mortais, nosso mais negro desespero

É ver que, de roldão, e no entrevero

Das paixões, tudo extingue a sepultura.

 

Ao desprezar o fácil na fatura,

Incrementando de aço o  retempero,

Entre os desvairamentos do exagero,

Minudenciamos na cinzeladura.

 

Pela dor, pelo fogo, qual se fora

Demência, a exorcizar, vivendo à parte,

Esta angústia se torna aterradora:

 

Perfeição, procuramos alcançar-te,

Na ânsia infinita, Divinizadora,

De revelar a eternidade em Arte!

II

Da Infinitude

 

Causa-me espanto ouvir queixar-se alguém,

Profissional do ofício literário,

Não ter assunto, nem vocabulário,

Para escrever, para externar-se bem.

 

Insuficiência incrível ou desdém:

Como não ver, no mundo tumultuário,

Não encontrar no seu elucidário

Milhões de temas que lembrar convém?

 

Só piedade me inspira esse operário:

Tudo, mas tudo quanto a vida tem,

É motivo de encanto extraordinário!

 

Para quem sabe olhar, sentir também,

A Arte é o Azul, o espaço planetário,

A irradiação do espírito no além!


Auréola

 

E Ariel me segredou: - Sombra ilusória,

Poetas, não sois, no curso da existência,

Conforme a vossa física evidência,

Ou segundo a normal forma corpórea.

 

Sois alma, coração, clarividência,

Prenunciadora luz da vossa glória,

Não o ser que, na vida transitória,

Sofre do corpo a humana decadência.

 

Belos, jovens não sois? Não vos importe

Esta desilusão do mundo vário,

Porque tudo tereis depois da morte,

 

Que vos aureolará, no seu sacrário,

Não pelo vosso todo, o vosso porte,

Mas pelo vosso espírito lendário!


Rimance para adormecer Cleómenes Campos

 

Ao luar, no céu de ouro pálido,

Mab, a Rainha, veloz,

Passa num carro minúsculo,

Mínima casca de noz.

 

E, de armas em punho, seguem-na

Os gnomos, em batalhões,

Cem barbaçudos humúnculos

De Émols, o Pai dos Anões.

 

Loc e Nur e Gig, os Príncipes,

Grans-Duques e senescais,

Acompanham-na, entre múltiplos

Funambulescos jograis.

 

Trinta Fanelas litúrgicas

Cercam-na, em grupos gentis,

Vão cavalgando libélulas,
Cocinelas, colibris.

 

Vai, apressando-se, o séquito,

Para servir e salvar

A Alva-de-Neve, o Lírio

Que jaz no fundo do mar.

 

Dorme, por artes fatídicas,

Na gruta do bruxo Uldul,

Que a tem, cativa, num cárcere

Todo forrado de azul.

 

Dizem que existe uma lâmpada

À porta da gruta, e que,

Pérola enorme e translúcida,

A vinte milhas se vê.

 

Brilham, das Fadas, inúmeras,

Em cintilância irial,

Os sapatos, estreitíssimos,

Os pantufos de cristal.

 

Ouvem-se, trêmulos, tímidos,

Sinais, avisos, flonflons

De dourados tintinábulos,

Guizalhando em semitons.

 

Oh! era lindo, era único

Ver o cortejo passar,

Sob a fineza fluídica

Das neblinas, ao luar.

 

Mas, numa volta mais rápida,

Toda a corte se sumiu,

O maravilhoso préstito,

Em nuvem se diluiu.

 

A história prossegue... O lírico

Infante, melhor do que eu,

Vê tudo em sonho... Cleómenes,

Nesse instante, adormeceu.


Canção Tristíssima

 

Como quem junto a um berço se ajoelhasse,

Em penitência e pura adoração,

Assim eu, deste livro ao desenlace,

A ti, divino Ariel, peço perdão.

 

O luar da aurora te roseia a face:

És o sorriso, o espírito, a ilusão,

A ingenuidade que a sonhar cantasse,

Graça e origem da eterna inspiração!

 

Não contes a Miranda, à bela e boa

Alma sempre encantada, o grande mal

Que nos meus versos, soluçando, ecoa.

 

Próspero o conheceu. Imemorial,

Sofro a dor de viver. Ariel, perdoa:

Dá-me o perfume do teu beijo, Ideal!



Obra no acervo de Mariano Gomes, amigo de Martins Fontes

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