Imagem: reprodução da capa da obra
A canção de Ariel
Livro póstumo
Martins Fontes
Edição da Comissão glorificadora de Martins Fontes
Imagem: reprodução da folha de rosto da obra
OBRAS DE MARTINS FONTES
Verão
As Cidades Eternas
Volúpia
Vulcão
Rosicler
Marabá
Pastoral
Prometheu
Escarlate
O Céu Verde
Schahrazade
Arlequinada
Partida para Cythera
Boemia Galante
A Fada Bombom
A Laranjeira em Flor
O Colar Partido
O Mar, a Terra e o Céu
No Templo e na Oficina
A Flauta Encantada
Sombra, Silêncio e Sonho
Decameron
Sevilha
Granada
A Dança
Prométhée
Terras da Fantasia
Nós, as Abelhas
Fantástica
Teatro
Paulistânia
Guananara
Nos Rosais das Estrelas
Sol das Almas
Il Fioretti
Canções do meu Vergel
A Canção de Ariel
Um Manifesto socialista, escrito, por Silverio Fontes, em dezembro de 1889
Indaiá
Tataoca - Cerâmica Paulista
Nos Jardins de Augusto Comte
Calendário Positivista
Imagem: página com foto do autor
A realidade já não nos contenta. Queremos sair da Natureza. É impossível, mas tentamos este absurdo. os desejos irrealizáveis são os
mais ardentes. Sofremos a ânsia do desconhecido, a sede do além. Queremos o novo, outra coisa. Atrai-nos o invisível, o intangível, o irreal. O universo sensível somos nós. Fujamos de nós. A ultrafísica, a hiperquímica deslumbram! Pesemos a luz,
decomponhamos o espectro solar. Imponderabilizemo-nos. Cantemos o perfume da claridade, os aromas sonoros, a aparência das coisas, a matéria em estado radiante, transirradiante! Todas as criaturas bem nascidas sentem a tortura da humanização.
Alteremos as formas. Alar! Realizemos os sonhos impossíveis. Povoemos de fantasmas toda a terra. Espiritualizemos todo o universo.
Imagem: detalhe da página 7 da obra
A Arielesca Oferenda
Cleomenes Campos: na espiral do incenso
A oblata se traduz, que te levanto:
Meu coração, sentindo o teu encanto,
Equivale a um turíbulo suspenso...
Pela Doçura te tornaste Santo:
Ao bendizer-te a suavidade, penso
Ver a imagem nimbar-te um brilho intenso,
Brilho de ouro solar, cor de amaranto...
A evolar-se, em volutas, envolvente,
A inspiradora essência da harmonia
Desprende-se de ti, radiosamente...
Poeta sensibilíssimo, a Poesia
És tu! Conténs o dom que se pressente
No perfume que a música teria.
Entre a Saudade e a Esperança
Cantar quisera, surdinando, agora,
Na despedida da serenidade,
O colorido, a musicalidade
Do abrir do dia, do apontar da aurora.
Cantar quisera o ideal, fugaz embora,
Em cuja essência, espiritualidade,
Se aspira a graça, a naturalidade
Do sobrenatural, que se evapora;
E o soneto esbater, tendo o consolo
de, um arco-íris minúsculo, alvorando,
No céu de rosa, ainda em botão, depô-lo...
Tal um sorriso de criança, quando
Dorme, e dizem as Mães, em doce arrolo,
Que ela com os anjos deve estar sonhando...
Estado radiante da matéria
Longe da terra, abandonando a argila,
Isentado da humana contingência,
Tentarei descrever a supraessência,
Em palavras aladas exprimi-la.
Dentro da alvura da amplidão tranquila,
Em semissonho ou semissonolência,
Conservando a lembrança da aparência,
Suponha-se ainda que a razão vacila.
Imponderavelmente, em tal suicídio,
O fluído que, a ascender, se desenrola,
Dir-se-ia cor de pérola ou de irídio.
A alma, o aroma do espírito, a corola
Carnal despreza, e foge do presídio
Do corpo, e em ondas eteriais se evola...
Nos Reinos do Invisível
Como vivem milhares e milhares
De entes na terra, assim, sem o saberes,
Deverão existir, povoando os ares,
Maravilhosos, invisíveis seres.
Tendo formas diversas, singulares,
Estranhos todos, lindos pareceres,
Possuirão, esses nossos avatares,
Outras aspirações, outros deveres.
Vindos de milenária procedência,
De desencarnações, heterogêneos,
Sobem, graduam-se em resplandecência.
Contarão os seus dias por decênios,
E, iluminados, em clarividência,
No seu duplo sentido, serão gênios.
Viático
Fazemos parte dos desgraçados
Que não desejam ser consolados.
Temos as ânsias indefinidas
Das almas puras ou bem nascidas.
Nunca te esqueças, mísero velho,
Desta verdade que há no Evangelho:
A dor é tudo. Lembre-te, ó triste,
Que, fora dela, mais nada existe.
Por este grito, rouco e profundo,
É que o Evangelho domina o mundo.
Se a dor tirarmos da natureza,
Tudo é miragem, tudo incerteza.
No entanto, a causa por que gememos,
Em vão buscamos e não sabemos.
A dor é a nossa fatalidade,
Razão secreta da humanidade.
Todos os santos, cheios de mágoa,
Erguem os olhos, mas rasos de água.
Por isso a amemos, chorando tanto,
Que ela nos lave com o nosso pranto.
Felizes sejam os que choraram,
Porque sofrerem, porém amaram.
Sonâmbulo
La misère? Ça n'existe pas pour un Artiste.
LEÓN DIERX
- "É a Princesa! Silêncio! Olhai-a, Irmão!
Quando a lua anuncia a primavera,
Ela, sorrindo pelo olhar, me espera,
Entre os lírios azuis do seu balcão!"
Deserta, a rua imensa. Na amplidão,
Nenhuma estrela solitária. E mera
Fantasia, produto da quimera,
Ele a amava, à janela da ilusão!
- "Mas que Princesa?" interrogou Verlaine.
E o Sonâmbulo, alheio à vida vã,
Nem respondia, num sonhar perene...
Rei de Rodes, Senhor de Mobihan,
Conde-Templário, Mestre de Maltene,
Assim era Villiers-de-L'Isle-Adam!
Hiperestesia
Há um estado que faz que nos livremos
Da substância corpórea, espessa e bruta,
E com o espírito a matéria luta,
E é vencida em seus trâmites extremos.
Da argila foge, eleva-se, em voluta,
O fluído astral que todos nós contemos:
O íris, em cada raio, percebemos,
E visualmente a música se escuta.
Ouvem-se as cores, vendo-se os sonidos,
Tal como, sem tocar, se conhecesse
A macieza dos tons nos coloridos.
Nessa loucura estesiante, nesse
Delírio, ouve-se até sem ter ouvidos,
Fechando os olhos, o mistério vê-se.
Flor escondida num álbum
A Dona Josepha
Senhora, a graça da Beleza, e a graça
Da Bondade, encantando o vosso rosto,
Querem que o madrigal que se vos faça,
Antes de se dizer, seja suposto.
Quem, ao ver-vos, Senhora, em nossa raça
De artistas sábios, de apurado gosto,
Não sentirá que sois, sempre sem jaça,
um diamante lirial ao sol exposto?
Branca e bela, quem há que não se agrade
Da luz dos vossos olhos de turquesa,
Ou da alvura da vossa mocidade?
E se assim sois, tão doce, na pureza,
Bendita sejais vós, pela Bondade,
Bendita sejais vós, pela Beleza!
Flor do meu pranto ao meu mais triste amor
Já não te peço amor, abasta que tenhas dó,
E que não te provoque o riso o meu desgosto,
E uma lágrima longa umedeça o teu rosto,
Quando eu por ti passar, pobre, esquecido e só.
Carregando, a chorar, este féretro santo,
No qual, por tuas mãos, assassina querida,
Dorme o seu sono eterno, orvalhada de pranto
A mais pura ilusão de toda a minha vida.
Palavras a uma Noiva
Meu coração jamais, querida,
Esquecerá
O que disseste, à despedida:
"Não partas já"
"Fica um minuto ainda comigo.
Irás depois.
Fiquemos juntos, meu amigo,
A sós, os dois."
Tão simples foste e tão sincera,
Tão natural...
Ai, nestes versos, quem me dera
Ternura igual!
Calei. Venci-me. E triste, triste,
Baixei o olhar.
Da mesma forma traduziste
O teu pesar.
Foste a maior paixão que tive,
O grande amor.
Trinta e três anos mal contive
O seu clamor.
Disseste ainda nesse dia,
Um ano faz:
"Oh! que surpresa! Oh! que alegria,
Hoje me dás!"
"Sempre florido!" E, entre louvores,
Gratos, bem sei,
Te referiste às lindas flores
Que te levei.
De que maneira eu te adorava,
Não quis dizer.
Do teu orgulho eras escrava,
E eu, do dever.
Indiferente, sem contraste,
Ou sem supor
Quanto eu sofria, amarguraste
Meu pobre amor.
E eu te contemplava, pasmado,
Cheio de dó,
Revendo o sonho do passado
Desfeito em pó.
Meu coração em flamas arde,
Sentimentais.
Porém agora é tarde, é tarde.
Tarde demais.
Disseste ainda, comovida,
Sem efusão:
"Amas a vida, amas a vida.
Eu, não; eu, não.
Tudo acabou. Não tive sorte,
Tendo altivez.
Só peço a Deus a paz que a morte
Nos dá, talvez".
Mágoa maior não suponhamos
Que possa haver
De que a mulher que tanto amamos
Ver padecer.
Jamais as tuas agonias
Disseste a alguém.
O mal atroz, que tu sentias,
Senti também.
De novo, a tua mão, tremente,
Beijei, premi;
E ansiava por, unicamente,
Fugir de ti.
E assim o fiz. Como um finado,
No chão rolei.
Dentro da noite, alucinado,
Chorei, chorei.
Meu coração ser teu amante
Não quererá,
Mas se disseres noutro instante:
"Não partas já".
Oh! sem pensar no teu futuro,
Ou que és mulher,
Não partirei jamais, eu juro,
Haja o que houver.
Quem será? quem serão?
I
Dedicatória de um retrato oferecido a Annibal Theophilo.
Dez anos ela foi, com o maior sacrifício,
Capaz de demonstrar a mais santa cordura.
Sua dedicação, atingindo a loucura,
Revelou-se total, integral, desde o início.
Formosíssima, sim, e amável quanto pura,
Não desejando mais do que o próprio suplício,
Em tudo que era seu não havia artifício,
Tanto era apaixonada essa flor da ternura.
O amor, quanto mais dá, mais quer dar. Impaciente,
E insaciável também, mártir incontentada,
Num retrato escreveu, comovedoramente,
Esta frase ardorosa, oferenda exaltada:
- "A quem sempre me quis, querendo-me somente,
A quem tudo me deu e a quem nunca dei nada".
II
Às três horas da manhã, na capela mortuária de Annibal Theophilo.
Romanesca, alta noite, embuçada, desponta,
Tendo cravos nas mãos, ensombrando a Capela,
Uma estranha mulher que, a correr, se atropela,
Toda, no seu negror, fantasmática e tonta.
Chega junto ao caixão. De nada se amedronta,
E soluça, beijando aquela face, aquela
Boca, cheia de mel, que era, sendo tão bela,
Nobre até no cartel ou castigo da afronta.
Quem será? E nenhum dos amigos, no instante,
Tentou saber quem era essa Desconhecida,
Respeitando-lhe a dor, a paixão lancinante.
Depois, sombra talvez entre sombras perdida,
A imprecar, afastou-se, encobrindo o semblante,
E desapareceu, para sempre, na vida.
III
Todos os anos, no saguão do Jornal do Commercio, aparece, sem que nunca se saiba quem o envia, um ramo de rosas
brancas, tendo, numa fita, em letras de ouro, a seguinte legenda - Nesta data, aqui foi assassinado, pelas costas, o poeta Annibal Theophilo.
Recebei, todas vós, que, a servir, abençoamos,
E Annibal Theophilo ouve, entre oblatas radiosas,
A nossa gratidão, que se afeiçoa em rosas,
Como as que lhe trazeis, irmanadas em ramos.
Musas angelicais, Madonas lacrimosas,
Que exprimis o fervor com que nós o lembramos,
A dádiva aceitai, aos molhos e em recamos,
Da nossa adoração, ó Mulheres Piedosas!
Porque nunca esqueceis o nosso Irmão, Senhoras,
Porque não permitis que o sonho se desfaça,
Porque assim praticais a saudade, Lenoras,
Natércias do Brasil, flores da nossa raça,
Lírios do nosso amor, Claras Consoladoras,
Benditas sejais Vós, almas cheias de graça!
Hugoannete
Adoro a Suzette,
Mas quero a Suzon...
Suzette em toilette,
Suzon sem jupon...
Ah!! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
Rimando a Suzette,
Abraço a Suzon...
Amá-las compete,
Variando de tom...
Ah! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
A mão, a Suzette,
A boca, a Suzon...
Quem ama reflete,
Se prova um bombom?
Ah! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
Ao baile, Suzette,
Ao bosque, Suzon...
Flonflon larinette,
Cantava um piston...
Ah! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
Pensando em Suzette,
Amando a Suzon,
Pintamos o sete,
Ao sol de Meudon...
Ah! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
Sonhei com Suzette,
Beijando a Suzon...
E o amor me promete
Fundi-las num som...
Ah! Suzon, Suzette,
Suzette, Suzon!
Arielice
Ariel, menino peralta,
Fez, entre mil criancices,
Esta que é, das traquinices,
A mais sutil e a mais alta.
No alvorar da primavera,
Troca das flores a tinta
Com que a natureza as pinta,
E inteiramente as altera.
Leva a extremos os delírios
Das mutações fantasiosas:
Repinta de roxo as rosas,
Colore de verde os lírios...
Entretém-se com os bruxedos
Das incríveis peraltagens:
Torna de anil as folhagens
De todos os arvoredos...
Às asas das borboletas,
Carochinhas, beija-flores,
Dá novos brilhos e cores,
Faz níveas as que eram pretas...
De manhã, Titania, ao vê-las,
Diz a Oberon: - Quem teria
Soltado na luz do dia
Tão fantásticas estrelas?
E Robin, o companheiro
Em tantas desenvolturas,
o efeito das travessuras
Observa num jasmineiro...
Mas, com a alteração esparsa,
Ficam os numes confusos,
Sem saber quem, contra os usos,
Preparara aquela farsa...
As regras da Natureza,
As leis da eterna harmonia
houve quem, por fantasia,
Transmudara, com certeza...
Ai, que brincadeira cara!
Porém foi tal estroinice
Que permitiu que se visse
O que jamais se sonhara...
Foram essas inocências
Que ainda nos fazem, agora,
Ver certos róseos da aurora
E o azul de algumas hortênsias...
A respiração do silêncio
Rumores da noite morta,
Da Natureza dormindo:
O escorrer de uma comporta,
Da água do açude fluindo...
Chios, cochichos, gemidos,
Ecos, suspiros, segredos,
Inconscientes estalidos,
Tosquenejar de arvoredos...
E o mistério, por seu turno,
Que faz que a sombra se amoite,
Dentro do abismo noturno,
Pela calada da noite...
Vozes vindas do negrume,
Veladas, sob a neblina,
Confundidas com o perfume,
E diluindo-se em surdina...
No sertão da minha terra
Dá-se um nome lindo, lindo,
A essa eloquência que encerra
o campo imenso, dormindo...
A horas velhas, a harmonia
Que se ouve, de quando em quando,
É o quiriri, a poesia
Da Natureza, sonhando...
Canção do Príncipe Triste
-A toda riqueza,
Prefiro a pobreza
Do meu Manuel.
(Canção portuguesa. De Penafiel.)
Já tive tudo
Tudo o que quis.
No meu escudo
Fulgem rubis.
Nem a realeza,
Pela grandeza,
Dando a riqueza,
me fez feliz.
Conquistei glórias
E sagrações,
Honras, vitórias,
Aclamações.
E achei, descrente,
Que tudo mente,
E elas somente,
São ilusões.
Nas minhas penas,
Em minha dor,
Há um sonho apenas,
Consolador:
Tudo o que almejo,
No meu desejo,
É ter um beijo
De puro amor.
Bem-te-vi
A flecha feriu-me fundo
E a teus pés tombar eu vim.
E estavas longe do mundo,
Estando perto de mim.
Um ben-te-vi, quase a medo
Gritou, num bosquete em flor,
Confessando o teu segredo,
Nunca dito por pudor.
Sorrimos ambos. Calados,
Permanecemos depois.
E o bem-te-vi, dos cercados
A flautear a nós dois...
Foi neste silêncio agreste,
E, talvez, sem o querer,
Que, sem o pensar, disseste
O que eu pensei, sem dizer.
Que diz de pérola a pérola
Que faz o ourives? Termina,
Lapida a flor de um anel.
Refagulham na oficina
Pedrarias a granel.
Diamantes, prasios acesos,
Crisólitos, ezteris,
Lincurios e sandaresos,
Esmeraldas e rubis!
Certa mulher misteriosa
Procura o lapidador:
Não quer gemas, quer, preciosa,
Sua irmã no mostrador.
Riem, deliram, ardendo,
As pedras, a seduzir.
E ela, numa pérola vendo,
Fica a sonhar e a sorrir.
E a pérola diz: - Não quero
Ser tua, ninguém te quer,
Porque nunca foi sincero
Teu coração de mulher.
Prefiro o mar. Não realço
O que a perfídia contém.
O mar é bem menos falso,
Menos sombrio também.
Bandurra
Conheceis, vós todos, de capa e de espada,
Conheceis, vós todas, de trunfa e manton,
Don Gil de los Guapos, guitarra em Granada,
Don Gil de las Guapas, toureiro em Leon?
Sou eu! que, segundo gentil buena-dicha,
Das damas sou pajem, sou rei dos galãs.
Escapo-me, ileso, na Plaça ou na rixa,
Pela salvaguarda de dois talismãs!
Por que nenhum touro me fere ou machuca,
Ou logo amedronto qualquer brigador?
Porque tenho os olhos da minha Maruca,
Que a vida me inundam de bênçãos de amor!
Caramba! quem teve tal glória ou façanha,
Possui tal riqueza, contém esse dom?
Eu só! que, no mundo, sou Grande de Espanha,
Guitarra em Granada, toureiro em Leon!
Vendo o pranto sorrir na terra iluminante
Dentro da noite dos teus olhos vejo,
Negros, imensos, vividos, agora,
Um líquido veludo, cor de amora,
Que nunca ouvi louvar como desejo.
Na cristalinidade que os irrora,
Lembrando o orvalho, vítrico lentejo,
Sinto a doçura que umedece o beijo,
Noto, na escuridão, o arder da aurora!
São seus contrastes fabulosos! Quando
Os contemplo, o que expressam é tão lindo
Que imantiza, seduz, maravilhando,
Impondo, surpreendendo, sugerindo
A surpresa da treva rutilando,
A encantação da lágrima sorrindo!
Maio
Ora, ela era mulher, mas eu não o sabia.
Na minha adoração, ao sentir-lhe a poesia,
para mim, tudo nela era azul, encantado,
De tal modo sutil, de tal maneira alado,
Que anjo eu supunha ser essa flor primorosa,
A entreabrir-se em botão, a entrefechar-se em rosa.
E era já moça feita e eu julgava-a menina.
Certa manhã de maio, através da neblina,
Fomos ao bosque ver se ainda havia framboesas,
Nos floridos silvais daquelas redondezas.
O frio era excitante; e, em rajadas, violento,
Como um demônio solto, às cabriolas, o vento
Fustigava, soerguendo as vestes, assustando,
Parecendo, brincão, zombar, de quando em quando.
E escandalosamente, esgueirando-se, em frouxa
Risada, fez-me ver-lhe o rosado da coxa,
Fez-me entreadivinhar-lhe a pele cetinosa,
Feita de ouro auroral ou neve luminosa.
Ah! que revelação, surpreendente delícia,
Para o tato ocular, foi aquela carícia!
As asas do anjo, então, se esfolharam, e, delas,
Surgiram, feminis, as espáduas mais belas
Que jamais eu sonhara... E, ao fim daquele dia,
Eu a quis, muito mais do que antes lhe queria.
A única porta aberta no presídio
A vida é triste, é trágica. Façamos
Por enganar-nos, mas com tal viveza,
Que demos a impressão de que a beleza
Em palavras e em atos realizamos.
Colhemos os frutos nos mais altos ramos,
Espiritualizando a Natureza,
Leguemos, com fervor e com largueza,
Os tesouros das bênçãos que sonhamos.
Amar! Idealizar! A idealidade
É a consolação única que temos
Na miséria da nossa humanidade.
A ilusão, em seus êxtases supremos,
Torna-nos semideuses, e persuade
Ser verdadeiro tudo o que não vemos.
Piedade
Iludir, a iludir-te, eis todo o intento.
Pairando além dos mundanários miasmas,
Em rimas de ouro nos teus versos plasmas
As miragens do eterno encantamento.
Cantas. E de tal modo te entusiasmas
Que, na explosão do teu temperamento,
Sonhos incríveis desfolhando ao vento,
O planeta povoas de fantasmas.
Em lúcida loucura, alheio, ao gozo,
Alcanças quase a redenção budista,
Deserdado, infeliz, irreligioso.
Amas e sofres. E, em verdade, artista,
Nem és tu mais do que um incréu piedoso,
Ou de que um velho e místico anarquista.
Monólogo de Tiago, o Taciturno
As ou like it
Esta floresta negra, esta floresta
Híspida, é menos má, bem menos má
Que um coração0 que, a rir, se manifesta,
Mas onde a inveja de talaia está.
Prefiro o inverno aos homens. Nada presta
Na sociedade estolida. Oxalá
Sintas em cada gume, em cada aresta,
A sensação que a hipocrisia dá.
O frio e a fome são cruéis. Contudo,
Não são vis como tu, amigo, irmão,
No disfarce infernal do humano entrudo.
Só, na paz da completa solidão,
Verás que, sem ser rombo ou campanudo,
Vale um rochedo mais do que um sermão.
Ontologia
Do azul do céu, do verde das campinas,
Os cegos têm a ideia pupilar,
E, como nós, ao fundo das retinas,
Guardam a glauca limpidez do mar.
Recordações da espécie, cristalinas,
Retêm, malgrado o inútil ocular.
Cerebralmente neles examinas
A hereditariedade milenar.
Veem, melhor, talvez. Aumentativo,
É o poder de quem lembra ou quem deduz,
Dos devaneios todos incentivo.
Notam eles, no encanto que os conduz,
As sete cores do íris positivo,
E, assim, sonhada, ainda é mais linda a luz!
E outras ondas virão, no mar do tempo...
O mar é a imagem da vida.
Mais não somos do que a vaga
Que se ergue, e ruge, e, em seguida,
Rola e se apaga.
A encrespar-se, entumecida,
Em ondulas se propaga.
Tudo desfaz na investida,
Louca e pressaga.
E, por ais que se contorça,
Na raiva, cólera fula,
Dessa procela,
Dura um segundo essa força:
Na vala comum se anula
E se nivela.
Omnisplendência
O Amor é sempre imaculado!
Seja em quem for, seja onde for,
Torna-se amável o pecado,
Quando, quem ama, inspira o Amor!
Há, na brancura do noivado,
Um brilho maravilhador!
O beijo desse noviciado
Tem a pureza de uma flor!
Na divindade se origina,
Sendo a melhor das perfeições,
A sua essência feminina!
E, entre cem mil revelações,
O Amor, que os corpos desvirgina,
Revirginiza os corações!
Visita de Frei Junípero a São Francisco de Assis
A paisagem lembrava-lhe o Carmelo,
A Colina dos Anjos, mas tal qual.
A água, a fluir, cantava, em ritornello,
A Umbria, fresca e feliz, era um rosal.
Tudo tão doce, mas tão doce e belo,
Naquele encantamento natural...
E ele ouvia rimar o Poverello
As palavras de amor do seu missal.
E horas passou na paz da santidade,
Mudo de comoção, nesse jardim
Da Esperança, da Fé, da Caridade.
E orava, erguendo o olhar, dizendo, enfim:
- Como será, Senhor, tua bondade,
Se existe um homem tão perfeito assim?
Ouvindo sem ter ouvidos
I
- Podeis compreender um pintor cego, um orador mudo, um escultor manietado, eu sem mãos? Pois Beethoven ficou surdo! e,
como Deus, do nada fez o mundo! Na escuridão da terra germinam as raízes: no silêncio impenetrável jazem as eufonias... E as árvores imanes abrem-se em frondes! Beethoven esplende ao sol! Compunha sem instrumento: e, quando ia executar, tinha sobre
o clavicórdio uma vareta. Feria os acordes, encostando a vareta, numa extremidade, às cordas, prendendo a outra aos dentes. Por esse processo milagroso, conseguia perceber os sons graves, sentindo a vibração nos ossos! É grave sempre a sua música!
Beethoven inventou a ventarola acústica, a vareta mágica!
Só consegue expressá-lo a teosofia!
Presa aos dentes a ponta da vareta,
Com a extremidade oposta na espineta,
Cordas e teclas, com furor, feria!
Grave, a música estranha percebia.
Inteiramente fora do planeta,
Ou das regras da vida, o anacoreta
Assim compôs a Nona Simfonia!
E, construindo epopeias de destroços,
Em surtos siderais, sempre em hosana,
Executava os desesperos nossos!
Sem ouvidos, ouvia a sobre-humana
Voz da amplidão, pelo abalar dos ossos
Da enorme caixa abobadal, craniana!
E vendo sem ter olhos
II
Hellen Keller, quem há, dentre os poetas incréus,
Que não sinta que tens ainda no ombro o vestígio
Da asa que nos conduz ao radioso fastígio,
E é da Revelação o maior dos troféus?
A Natureza, em surto, esplendendo sem véus,
Exalta no teu ser o espiritual prestígio
Da perfeição Ideal, sobre-humano prodígio
Que, há milênios, nos leva à escalada dos céus!
És, Helena, a Beleza, o sonho, a luz, o aroma
Da divindade excelsa, irradiando através
Da carne que te veste, a nimbar-te em redoma!
Arcangelescamente, a Maravilha que és
Jamais há de exprimir, seja qual for o idioma,
E ajoelho-me, a cantar, para beijar-te os pés!
Ontem
I
Amamo-nos! Amamo-nos! Amei-a!
Amou-me! E foi tão viva essa aventura
Que, mais do que atração, era loucura,
Desvario que os corpos incendeia!
A arrastar-nos em sua contextura,
Às convenções inteiramente alheia,
A carne, ardendo, de volúpia cheia,
Fez-nos pensar na morte prematura!
Pouco a pouco o delírio, a insaciedade
Se atenua, e, abrandando-se o calor,
Por efeito ou poder da afinidade,
Hoje, o que existe em nós, consolador,
É o mútuo sentimento da Amizade,
Ainda mais belo do que o próprio Amor!
Hoje
II
De tal maneira ambos nos entendemos,
Mas de tal modo os corações unimos,
Que alcançamos do afeto os altos cimos,
Os da afeição mais íntimos extremos.
Apoiados a idênticos arrimos,
Sombras na sombra confundir-nos-emos.
E não só pelo andar nos parecemos,
Mas até na expressão com que sorrimos.
Nos pormenores, como nos conjuntos,
Por leis da intimidade, estamos nós
Conformes sempre em todos os assuntos.
Quando ficamos docemente a sós,
As mesmas frases repetimos juntos,
Mantendo a mesma entonação de voz!
Amanhã
III
E, depois das canções da primavera
E do outono, da flores e dos pomos,
Quando o inverno chegar, o que ambos fomos
Ainda seremos. A saudade espera.
Um romance de amor feito em dois tomos,
Mas cujo entrecho o tempo não altera,
A nossa história simples e sincera
Há de ser imortal, nós o supomos.
Até o final, os últimos instantes,
Sendo gêmeos de corpo e coração,
Perduraremos noivos e constantes.
Nossas essências se confundirão:
Os que em vida souberam ser amantes,
No além do além da morte, ainda o serão.
O Iagê
A David Coda
No Acre, entre o Maninauas do Acorê,
Durante o angá, celebração selvagem,
De um só trago tomei a beberagem
Das pajelanças nossas: - O Iagê.
E adormeci, ouvindo a poracê.
E sonhei (com tal força os filtros agem)
Que, no tempo e no espaço, ou por miragem,
Via a grandeza que o amanhã prevê.
Tudo era azul; e, na telepatia,
Televisio, exalçando o pormenor,
Um continente em fogo percorria.
Sob esplendores, que guardei de cor,
A Terra Virgem da Feitiçaria
Se enormizava, cada vez maior!
Nossa Senhora da Anarquia
Conta Henri Rochefort que, ao voltar da Moreia,
Depois de exílio atroz, desembarcando em França,
A milícia cruel, que em magoar não se cansa,
Interpelava assim uma velha plebeia:
- Por que motivo entrais, numa aduana europeia,
Sem sapatos? Por que? - Dei-os a uma criança
Enferma... - E que escondeis neste saco de trança,
Com cuidados de quem sempre está de alcateia?
E ela, a santa, a esmoler: - É um pobre gato cego
Que criei como filho e é tudo o que carrego
Comigo... E o militar - Não mereceis perdão.
Prendam esta mulher, com sentinela à vista:
É a tal Louise Michel, a tremenda anarquista,
Condenada às galés por ter furtado um pão.
Jequitibá
Vejo Jequitibá, do Soberbo, na Serra
Dos Órgãos, ainda mais, muito mais que um monarca,
Tucháua da floresta ou pajé pariarca,
Ensombradoramente, é o nume da Terra.
À tua divindade a amplidão se descerra.
E a homenagem humana é sempre humilde e parca.
A força que possuis toda a selva açambarca.
No âmago montanhaz teu raizame se enterra.
Dobras, e, ao teu soluço, escancara-se o abismo,
E o rio te repete, ao rolar da cachoeira,
o eco te reproduz, pelo brasilirismo.
Para a minha saudade, árvore sobranceira,
outro nome hoje tens, dou-te novo batismo:
Chamar-te-ei, para sempre - Alberto de Oliveira.
Soneto de São Francisco de Assis
- Amore, amore, grida tutto il mondo!
E eu, entre as ressonâncias do concerto,
Na distância de um eco me converto,
E a paixão que me aclara não escondo!
Compreendendo do coro o justo acerto,
Ao recrescer do soluçante estrondo,
Pela repercussão em mim, respondo
Com a harmonia das lágrimas que verto.
E, no delírio unânime, proclamo
Que sinto um beijo em cada flor querida,
Um coração no palpitar de um ramo!
Pelo campo e no espaço, em toda a vida,
Tudo canta, entre súplicas - eu amo!
- Amore, amore, tutto il mondo grida!
O Rei dos Reis
Belo, apenas sonhado. Quando visto,
Desilude. No plaino em que se encerra,
Pela monotonia nos aterra,
Nada tem de imponente, ou de imprevisto.
Na paisagem mental que se descerra,
Sim; porém, para os olhos, sem registo
Nenhum, ao recordá-lo me contristo,
Tanto ele é grande e mau, sangrando a Terra.
Constrói. Destrói. Multiplicando impasses,
Tendo a fúria de infandos Briaréus,
Se compraz no pavor dos desenlaces.
Para nós o Amazonas, pelos seus
Delírios, representa uma das faces
Do Inconsciente, a que os homens chamam - Deus.
Vitórias régias
Dentro das matas ínvias, na Amazônia
Ao bulhar do balcedo,
No silêncio da noite, ao luar da insônia,
Abrem-se as ninfeáceas, em segredo.
E assim ocultas e no entanto egrégias,
Ao termo da velhice
Chegam, desfolham-se as vitórias régias
Sem que ninguém humanamente as visse...
Quantos poetas, talvez extraordinários,
Iguais às flores desse
Paraíso, morreram solitários,
Sem que ninguém jamais os conhecesse...
"A Academia Brasileira, pela voz conclamante do Poeta Aloysio de Castro, eleva um Monumento a Raymundo Correa."
(De todos os jornais de hoje, 5 de março de 1937)
Glória! Os Poetas, no espaço e no tempo, Senhores
Do Brasil imortal, que em montanhas se alteia,
Vêm celebrar-te o nome, entre aplausos e flores,
Ó Raymundo Corrêa!
És dos Mestres o Mestre, o Artista dos Artistas!
Tudo quanto no ofício há de raro, interpretas!
E vitorioso sempre, esplendendo em conquistas,
És o Poeta dos Poetas!
Na metrificação, malabarescamente,
Primas! Bravo! ao ginasta, ao funâmbulo! Em Arte,
Ninguém, seja quem for, sobre a corda tremente,
Pode sobrepujar-te!
Que parnasiano és tu! Ó Tecnista, ó Raymundo
Corrêa! Teus Irmãos, e eles só, são capazes
De avaliar, bem sentir com que saber profundo
Tais virtuosismos fazes!
Premiando-te o labor, teu renome devia
Ser dado a um bosque azul, como o do Itatiaia!
A um rio que, a cantar, solto na serrania,
Sonoriza uma praia!
A um píncaro qualquer, a uma floresta imensa,
Orquidário radioso, em fremente farfalho,
Expressão natural do Brasil, recompensa
De tão nobre trabalho!
Ou, na cidade, então, entre jardins, defronte
Do mar, simbolizasse a água que cascateia!
E a esta o povo chamasse - A Milagrosa Fonte
De Raymundo Corrêa!
Glória! Sob o esplendor da amplidão fluminense,
Erguem-te um Monumento, entre aplausos e flores,
Como demonstração de que a Pátria pertence
Aos seus Reveladores!
Resposta expressa a uma desconhecida
Amas. E vens a mim, numa carta secreta,
A mim que nem sequer, alma incompreendida,
Conheces, confessar tua dor incontida,
E pedir um conselho a um coração de poeta.
A honra me cativou. E a resposta pedida
Remeto-a com urgência e lealdade completa:
Se, de outrem, ninguém, nunca, a paixão interpreta,
O direito não tem de estiolar uma vida.
Obedece a ti mesma, entregando-te à sorte.
Ergue ao cego destino a súplica da prece,
Ainda que ela te venha em trágico transporte,
Porque, impondo-se, o Amor arrebata, enlouquece,
Mas segredos possui mais fortes do que a morte,
Imperando em razões que a razão desconhece.
O gosto e o tato
A Benjamim Mendonça
Quando, de qualquer coisa, com suposto
Agrado, dizes ou concluís que é bela,
Naturalmente, é porque achaste nela
O prazer, o requinte do bom gosto.
A arte nos paladares se desvela,
Expressando a delícia em nosso rosto,
Seja no aroma de espumante mosto,
Ou no sabor que o pêssego revela.
E igual à gustação é o tato. Humana,
Preponderantemente feminina,
É a sensação, o beijo que os irmana.
Tem qualquer coisa, que julgamos fina,
O semitom azul em porcelana,
Lisa e macia e milenar, da China.
Poesia
Ouço, às vezes, dizer, disto ou daquilo,
Não ser assunto que se cante em verso,
Preconceito deveras controverso,
Cujo motivo real não assimilo.
Penso e sempre pensei de modo inverso:
Seja o tema qual for, tento exprimi-lo
Em rimas claras, com o mais puro estilo,
Porque tudo é poesia no universo.
Certa vez, entre as ervas de um barranco,
Desirmanado, de uma estrada à beira,
Encontrei, desfazendo-se, um tamanco.
E nele a primavera alvissareira
Fez brotar, por acaso, e todo branco,
O primor virginal de uma roseira.
A Astroterapia
Ninguém pode prever os benefícios
Resultantes das grandes descobertas:
São como portas no horizonte abertas,
São como pontes sobre precipícios.
Através de pesquisas, por indícios,
O espírito, a pairar, de asas libertas,
Prodigaliza á comunhão ofertas
Redentoras de incríveis sacrifícios.
A medicina do futuro espera
O maior dos prodígios da magia,
A melhor das belezas da quimera:
Conquistaremos, pela astronomia,
Em surtos, no esplendor da estratosfera,
As maravilhas da astroterapia!
Magnetismo
Nunca nos conhecêramos, sequer
Nos viramos. E, um dia, em plena rua,
Sem saber a que causa se atribua,
Tento prendê-la e ela prender-me quer.
Uma energia súbita qualquer
Premeditada, sobre nós atua:
Alheia à força da vontade sua,
Tinha um ímã no olhar essa mulher.
E unimo-nos então. Naquele instante,
Que o nosso mútuo afeto hoje bendiz,
Houve um poder terrestre culminante.
Magnetismo? Atração? Não sei. Feliz
Me julgo. E ela também. Quem for amante,
Deve-o ser sempre, porque a terra o quis.
Atlântica
No silêncio da praia, entre montanhas,
Apossou-se de nós, subitamente,
O pavor da invisível, mas latente,
Força que a profundez traz nas entranhas.
Embora, na aparência, indiferente,
Pulsam no oceano agitações estranhas:
Disfarçando perfídias e artimanhas,
O poder do elemento se pressente.
A água, em sua potência, tem a sorte
De, em antíteses, sempre dividida,
Ser tanto mais serena quanto forte.
Faz-nos, pelo mistério, indefinida,
Chegar à angústia de que está na morte
A aterradora explicação da vida.
Este corrompe virginais purezas...
CAMÕES - Canto Oitavo - Estrofe - XCVIII
Ele me ama. Ele é bom, muito bom, mas é pobre.
E bondade, honradez, inteligência, nada
Valem, pois, para os meus, gente modernizada,
O ouro é tudo, ainda tendo o azinhavre do cobre.
Corruptor, insinuante, as virtudes encobre,
Sem nunca parecer que corrompe ou degrada:
Pela simulação torna a lama dourada,
Nas mãos de quem o preze e habilmente o manobre.
Ontem, falou-me alguém num colar... E, embusteiro,
Referiu-se à miséria, a crianças descalças,
À amargura da vida e ao gozo verdadeiro...
E eu respondi-lhe, então: - Estes bens que realças,
Em troca de um amor que se compra a dinheiro,
São pérolas, talvez, porém pérolas falsas.
Cósmica
A Vida! a Vida! a Vida! indefinida,
Eterna! Obedecendo à mesma norma
Apesar da aparência que a deforma,
Tudo é força envolvente, tudo é Vida!
A potência do todo, na reforma
Individual, opera, transfundida:
No vertiginosismo da corrida,
Nada se perde, apenas se transforma.
Morrem milhões de Vidas, num segundo,
Em ti, e a mutação não pressentiste,
Tanto se mostra o seu poder profundo.
Porque sofres não sabes; porém, triste,
Prevês que, sendo a síntese do mundo,
Cosmicamente a morte não existe.
Silenciosissimamente
E essa lágrima alvíssima provinha
Do coração mais justo que conheço:
Gota de orvalho do mais alto apreço,
Num rosto de madona e de rainha.
Com a mais grata humildade me enterneço,
Porque, no seu mutismo, se adivinha
Que a mágoa mais recôndita a continha
Entre as joias morais de um adereço.
Trêmula, à flor da pálpebra, na face
Cai, e desce, a brilhar, desliza agora,
Sem que um anjo invisível a enxugasse.
Dir-se-ia um lírio que em silêncio chora,
E, na doçura com que assim chorasse,
Fosse como, a chorar, Nossa Senhora.
Monasticon
Nos conventos, na paz do misticismo,
Substituem-se as almas, de maneira
Que um velho frade e que uma ingênua freira
Vivem só por amor, pelo humanismo.
Com piedade fraterna e justiceira,
Justiceiro e fraterno cristianismo,
Rezam, pensam naqueles que no abismo
Rolam do mundo na infernal fogueira.
Quem me dera poder por vós, Princesa,
Provar o amargo pão de Santo Onofre,
Diante da indiferença ou da dureza.
Abrir meu coração, inútil cofre
Onde, ao menos, houvesse, com franqueza,
A brancura do pranto por quem sofre.
Segredos do ofício
Porque a rima, na verdade
Dois sentimentos contém
Sendo a imagem da saudade,
É a da esperança também |
É o mesmo timbre partido
Que, entretanto, tem o dom
De encantar o nosso ouvido
Pela surpresa do som |
"AS CIDADES ETERNAS"
Bizâncio - pág. 87
Imagem da esperança e da saudade,
A rima engasta, rítimicas, permistas,
Sucessões de sonâncias que os artistas
Consideram alheias à vontade.
Ao compormos, a análise persuade,
Surgem cadências, vozes imprevistas,
Denominadas, pelos concertistas,
Predileções da musicalidade.
O verso é um eco, apenas. E, quem trova,
Sabe que a ciência métrica nos prova
Quanto a harmonia é nebulosa e fluída.
Do segredo sutil deste solfejo
Que torna a rima o símile do beijo,
A surdeza da crítica não cuida...
O espírito da matéria
Também as catedrais são sinfonias:
Rege a massa coral da arquitetura
A divinização da partitura;
E ambas se irmanam por analogias!
O allegro, o adagio, o andante, a tessitura,
O arco, o fuste, o florão... Alegorias
Que, pela execução das harmonias,
Timbram exatas, no esplendor da altura!
E, pelos olhos, as orquestras se ouvem,
E, pelo ouvido, a torre se levanta,
Para que os sonhos da matéria louvem!
E, na sua amplitude sacrossanta,
A alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,
Fulge na pedra, quando a pedra canta!
Argumento de defesa
Juro. Todas as vezes que elogio,
Faço-o de coração; e, se exagero,
Culpa não tenho, porque ser sincero
É o maior dos orgulhos do meu brio.
Amo, e não sei amar sem desvario,
Tendo, embora, a ilusão de ser severo:O que digo, a exalçar, quando venero,
No íntimo d'alma, com fervor, senti-o.
Se ha falta, não é minha. Contraponho
À realidade, como corolário,
A febre da paixão a que me exponho.
Enamoradamente visionário,
Se a vida fosse como a julgo e sonho,
O que é vulgar seria extraordinário.
Violeta azul
Ó violeta, por que não ficaste escondida?
Eras a graça triste, eras a suavidade,
E, talvez por capricho ou por mera vaidade,
Te expuseste uma tarde à intempérie da vida.
Não podes calcular quanto foste ofendida,
Nunca imaginarás quanta perversidade
urdiram contra ti no impudor da cidade,
Fazendo-te rolar, linda desprotegida.
À adurência do sol, inteiramente nua,
Te deixaram; porém o que mais nos assombra
É saber que o teu nome este mal desvirtua.
Oh! por que preferiste ao silêncio da alfombra,
À paz perfumadora, a vertigem da rua...
Violeta Azul, por que não murchaste na sombra?
Continuam a roubar crianças nos Estados Unidos
Na infâmia deste crime há tal cegueira
Que estarrece, horroriza, petrifica:
Sua torpeza não se classifica,
Lesa, ofendendo, a humanidade inteira.
Da maneira mais trágica e impúdica,
A fome do dinheiro, a verdadeira
Expressão da ganância aventureira
Neste crime dos crimes se amplifica.
Rebaixamentos da animalidade,
Atentatórios da Maternidade,
Avejões da cobiça até a demência.
Como se num a todos insultasse,
Igual à afronta que nos fere a face,
É a que alguém perpetrou contra a inocência.
Gratitude
Nobilitemos todos os ofícios,
Pela veneração aos operários,
Esfalfados em cargos secundários,
Produtores de imensos benefícios.
E, pedra a pedra, elevam-se edifícios,
Fábricas, hospitais, liceus, sacrários,
Por seus esforços mais que extraordinários,
Cheios de amor em tantos sacrifícios.
Ao fim do dia, muita vez agreste,
Esta dedicação te discipline,
Este consolo comunal te reste.
Aconselhava o Arcanjo Kropotkine
Que todo aquele que possuir, empreste,
E todo aquele que souber, ensine.
Arte de Amar
Eternamente incontentado,
De modo transfigurador,
A vida inteira, tenho dado
À Arte de Amar o meu fervor.
Seja a quem for, ou como for,
Em cada crise, em cada excesso,
Brutal, febrento, assanhador,
Quando termino, recomeço.
Ao predomínio acostumado,
Torno-me indômito senhor,
Multiplicando o meu agrado
Que, sem cessar, se faz impor.
E, donjuanesco imperador,
Sem mais demora, ou retrocesso,
Sob a infernal ação do amor,
Quando termino, recomeço.
Porque me julgo potentado,
Confio em mim, do meu furor,
Como ainda há pouco, ainda há bocado,
Transfundo o fluído excitador.
E ardo e flamejo e pecador,
Em plena força, em pleno acesso,
Clamo, a rugir fulminador:
Quando termino, recomeço.
OFERTA
Satania! sabes com que ardor,
Inquebrantável e possesso,
Digo, a beijar-te a boca em flor:
Quando termino, recomeço.
Súplica
Jura que se eu morrer não terás outra amante,
Que és meu, foste só meu, serás meu toda a vida,
E que toda mulher tu julgarás fingida,
E que, os olhos fechando, hás de ver meu semblante.
Falo-te, a soluçar, peço-te, comovida.
Se acaso tal promessa eu tivesse, durante
A agonia, este alento, embora vacilante,
Talvez me suavizasse o terror da partida.
Traidor não queiras ser da minh'alma. Suporta
Tudo, pensando em mim, mas não sejas o réu
De um crime espiritual. Meu coração te exorta!
Não mereças jamais tão horrível labéu,
Porque eu, desesperada, apesar de estar morta,
pela segunda vez, morreria no céu.
Foi por estas razões...
Londres. Por noite morta.
Exposta ao vento, à bruma
Dorme uma velha numa
Porta.
Velhice ao desamparo,
Repousa essa inocente,
Sem ter na vida um ente
Caro.
Naquele desconforto,
Naquele desalinho,
Dir-se-ia um passarinho
Morto.
Assim, abandonada,
Não era, no profundo
Egoísmo deste mundo,
Nada.
Tomei-a ao colo. Ergui-a.
E, como despertasse,
Pousou-me no ombro a face
Fria.
Na gelidez da rua,
Tartamudeia e treme,
Pobre velhinha semi-
Nua.
Eco
Não tenha medo. O escuro
Não deixará ver nada.
Logo que eu pule o muro,
Você segura a escada.
Eu tiro uma somente,
Aproveitando a vaza.
Mamãe está doente,
Não temos nada em casa.
História trágica
Ao terminar o espetáculo,
Consegui falar-lhe, a sós,
Disse que a achava lindíssima,
E também cruel, atroz!
E ela sorria, observando-me,
Sem nada me responder,
Como quem meus fisionômicos
Traços quisesse reter.
Levei-a, indecisa e trêmula,
Confessando, a delirar,
Quando julgava diabólica
A expressão do seu olhar.
E amei-a, sem que um vocábulo
Pronunciasse ela, ou, sequer,
Emitisse um vago e tímido
Ai, ou suspiro qualquer.
Caso inédito! E era esplêndida
E rara essa flor assim.
No seu mutismo, automática
Cheguei a supô-la, enfim.
Que tens? interrogo e aflijo-me
O teu olhar não me vê?
Perdoa, atende-me, escuta-me:
Por que não falas? Por que?
E ela, sentindo-me a súplica,
Principia a soluçar,
E conta a tortura mórbida
Que a não deixava falar.
Era surda! voz, o cântico
Do beijo, essa triste flor
Nunca ouvira, nem a música
Das declarações de amor!
Chorando, convulsionando-se,
E com a mais negra estranhez,
Pormenorizou-me a angústia
Que há na incurável surdez.
Eu, pecador
Eu, pedindo perdão para o teu crime;
Eu, pedindo que aumente o teu pecado.
Guimaraens Passos
Pecaste? Pecas? Pecarás. Castigo
Nenhum te atemorize. A Natureza,
Sendo bela, é imperfeita, meu amigo
E é por isso que é boa, com certeza.
Peca. Podes pecar. Não há perigo.
De coração te falo e com franqueza.
Por ter pecado sempre é que bendigo,
Pecaminosamente, esta fraqueza.
Como suavização de tantas penas,
Único alívio para o teu pesar,
Tuas dores humanas e terrenas,
Peca. E pensa que, para te elevar,
Contra as leis naturais há um crime, apenas,
Só existe um pecado: - não pecar.
Harpa
Branca, nas amplitudes siderais,
Pelas searas em fruto, a lua nova
As espigas do céu ceifa e renova,
Foice argêntea esquecida entre os trigais.
Que há um pastor nesses prados outonais,
A madureza do pomar o prova.
Invisível, escuta-se-lhe a trova
Dos cantares, das suas pastorais.
E, ouvindo pelos olhos, se imagina
Que, a balir e a pascer, de norte a sul,
Há rebanhos de ovelhas na campina...
E, provindo da tenda de Saul,
Serenando-lhe a cólera, em surdina,
Um doce arpejo se dilui no azul...
Lembrança do meu querido Villaespesa
Quando, longe de nós, em terra estranha,
Vires, flor amorosa do Alcoceste,
Flutuar na altura o Pavilhão da Espanha,
Não te esqueças da herdade em que nasceste.
Neste momento comovente, neste
Sublime instante, de afeição tamanha,
Não te esqueça a choupana em que viveste,
Nem a quem, à distância, te acompanha.
Nunca serás inteiramente alheia,
Tendo embora riquezas e renome,
A uma saudade, de ternura cheia.
Dirás, talvez, ao murmurar meu nome,
Lembrando a nossa infância e a nossa aldeia:
- Era pobre, é verdade, mas amou-me.
Noivado
Dentro da noite branca, em rondas cariciosas,
Provinda dos moitais, provocando o desejo,
Encheu-me o varandim de trabalho o bafejo
De uma essência vernal feita de mel e rosas.
E o aroma tentador, equivalente a um beijo,
Lembrou-me a floração dos jasmins e mimosas.
E da Côte d'Azur cenas maravilhosas,
Perfumando-me o sonho, à distância, revejo.
E uma voz que a cantar tremulasse e sorrisse,
E que tão musical fosse a de Primerose,
- Não te esqueças, jamais, surdinando, me disse,
Do mês de maio em mil novecentos e doze,
Do luar de Cimiez, da primavera em Nice,
E da flor que eu te dei no jardim de Val-Rose.
Baldelairiana
Quand tu vas balayant l'air de ta jupe large,
Tu fais l'effet d'un beau vaisseau qui prend le large.
Chargé de toile, et va roulant
Suivant un rhythme doux; et paresseux, et lent.
Maravilhosissimo
Tropicália. Torpor. Coqueirais. Mar infindo.
Peixes de escama de aço, à flor d'água, em cardume.
Fumantes panelões de alcatrão e betume,
Purificando o cais, o ouro do ar denegrindo.
Neste cenário, tu, seminua, dormindo,
Surges. E a selva inteira, a exsudar, se resume
No teu estonteador e escaldante perfume
De sapota verdoenga, ananás, tamarindo.
Baforas, ao fugir, ondulante serpente,
Um cheiro, ao mesmo tempo, acre, acídulo, amargo,
De fruta do equador, que condensasse o ambiente.
Crioula, a bambolear, pervagando em letargo,
Embriagada, te vais, lenta e molentemente,
Dando a impressão de um barco rial, rumando ao largo...
A morte de Valmiki
O Poeta Valmiki vai morrer. Tem cem anos.
Conheceu a ilusão dos desejos humanos.
Não espera. Não crê. Inteiramente inútil
Tudo lhe pareceu, sendo efêmero e fútil.
O mundo interpretou, foi à origem das coisas
E das causas, sentiu a frieza das lousas.
Em versos imortais, de alma desiludida,
Desesperadamente, amaldiçoou a vida.
Farto, achou-se feliz, tendo a carne gelada,
Ao pressentir a paz infinita do nada.
Uma branca formiga aparece, e, a roê-lo,
Sobe-lhe pelos pés, vai-lhe até o cabelo.
E outra, mais outra, em fila, em carreiro, em seguida,
Às dez, às cem, às mil, aos milhões, de corrida,
Penetram-lhe na boca, invadem-lhe as narinas,
Com crescente furor, devorando, ferinas,
Carcomendo, destruindo a carne imunda, abjeta
Do Cantor sem rival, do incomparável Poeta.
Impassível sentindo a invasão pululante,
Não se queixa. Despreza a miséria. Ofegante,
Olha. Vendo o esplendor da criação, apenas
Sorri. No seu pesar há miragens serenas.
E o formigueiro infando o destrói totalmente.
Dele resta o arcabouço, o esqueleto somente.
Mas enquanto no mundo houver quem ame, enquanto
Houver quem sonhe, a voz repassada de encanto
Do imenso Valmiki há de se ouvir na terra,
Até que, enfim, se apague a canção que se encerra
Na música de amor de seus versos supremos,
Eco que rolará, todos repetiremos,
Mas sem nunca esquecer que, inanimada e fria,
Também a dor humana há de se extinguir, um dia.
Alumá
Foge, em vaporação, de teu corpo se exala,
Perturbadoramente, acendendo o desejo,
O hálito abrasador, o estonteante bafejo
Dos jardins de Dabul, dos vergéis de Bengala.
Provar esse perfume é correr toda a escala
Da volúpia oriental, explodindo num beijo:
A Índia inteira, ardorosa, em perpétuo vicejo,
Nele se condensou, a efluir se assinala.
Alumá, flor do bosque, a tua carne de ouro
Potencialmente encofra a energia do germe,
No solo tropical, fúlvido fervedouro!
Diante do teu poder sinto-me exangue e inerme,
Em contínua embriaguez pelo defumadouro
Que, a eferver, te provém dos rosais da epiderme.
Maya! Maya! Maya!
I
Ó ilusão universal e eterna!
Quantas vezes nas coisas, nos objetos,
Por efeitos da sombra ou da miopia,
Vemos, como em perfeita bruxaria,
Esquisitos, excêntricos aspectos.
Ora, é uma facies, sem anatomia:
Linhas recurvas, traços incorretos;
Ora, vultos de plantas ou de insetos,
Como as que Goya nos desenharia.
E a parecença faz que analisemos,
E o parentesco no exotismo é tanto
Que vai aos pontos mínimos, extremos.
Sorrimos dessas ilusões. No entanto,
Cremos na realidade do que vemos,
Sem que a aparência nos produza espanto.
II
Quantas noites, também, de olhos fechados,
Vemos globos acesos, reticências
multicores, eflúvios, fluorescências,
Fogos fátuos em trêmulos bailados!
E olhos fitos. Perfis. Reminiscências.
A estranheza dos sonhos opiados.
Ecos da luz. Retículos. Bordados.
Fios, Pirilampejos. Minudências.
Pedrarias de Ofires e Golcondas
E a luminosidade nos conturba,
Forma estrelas minúsculas, redondas.
E até dormirmos a contínua turba
Cresce em enxames ou decresce em rondas,
Fantasmaticamente nos perturba.
Sentindo a força e vendo o caso
O homem, hidrocarbureto de hidrogênio coloidal, com impurezas, é um caso, apenas, entre as multi-miríades das combinações
orgânicas; e, partícula ínfima, na unidade cósmica, está sujeito às mais sutis variações da universalidade.
Vimos de um túmulo - o ventre
Para que em nós se concentre
O que o túmulo contém
Somos túmulos na vida,
E a campa, em nós resumida.
É como o ventre também.
"Vulcão", pág. 80
Não sei como te chamar. Em mutações velozes,
E que julgamos ser só tuas,
Sem nunca repousar nessas metamorfoses,
Destróis, revibras, tumultuas.
É a conquista do ideal, o termo da aventura,
Por entre surtos e vertigens,
Que, no anseio do além, te ilumina e tortura,
E leva ao fundo das origens?
Não creio. Exterminar é teu único intento,
Porque és como os vulcões vorazes.
E, pelo parecer, para o renascimento,
Fazes, desfazes e refazes.
A consciência e a razão contra ti, rebeladas,
Soltam blasfêmias delirantes,
Imprecam pela voz das mulheres amadas,
Ao separar-se dos amantes.
Em cenários teatrais representas o drama
Trágico e mágico da vida,
No qual nunca a piedade estremece e se inflama,
Canta ou soluça comovida.
Multiplicando a força, aos embates do acaso,
Moldas, remoldas a matéria.
E, sem nunca faltar, sem o mínimo atraso,
Chegas impávida e funérea.
Dás preferência à dor, tendo tudo. Nefasta,
Quem te analisa, considera
Que o homem não é teu fim, inconsciente madrasta,
Mãe impassível e megera.
Esboças, nada mais. Tentas, mudando as formas,
Alguma coisa, qualquer coisa
Diversa da que existe e na qual te transformas,
Tal como quem ousa e não ousa.
Melhor será que tudo, impiedosa intranquila,
Violentamente se desfaça,
Mas de modo total, como quer Vargas Vila,
Grande no sonho e na desgraça.
Finda esta digressão, que a lucidez obriga,
Falo-te a ti, meu semelhante,
Com tristeza e amargor, mas com a mais amiga
Lealdade exposta no semblante.
Dirão de ti, talvez, que eras um verbalista,
Do romantismo o último egresso,
E apenas foste tu, mísero pessimista,
Dentre os incréus o mais possesso.
Amaste a Prometheu, compreendendo a Anarquia,
Sonhando a redenção humana,
Mas foi por compaixão, porque em tanta agonia
O que pediste era o nirvana.
As dores cerebrais, inextinguíveis nodas,
Deixam-nos loucos e perdidos.
Sabes, quando, a clamar, injurias e apodas,
Que são baldados teus gemidos.
Passe diante de ti o açodado desfile,
Sem que o castigo te acobarde,
Forte como Vigny e Leconte de Lisle,
Madame Ackermann e Leopardi.
Shelley, Byron, os que, no mundo estulto e néscio,
Irmãos de Diderot chamados,
Anthero de Quental, Maupassant, ou Lucrescio,
Rugem na treva enclausurados.
Nada esperas. Não crês. A ilusão nos governa,
Embriaga e arrasta, de vencida.
Na mentira da sorte é unicamente eterna
A podridão, causa da vida.
Tu não te perpetuaste e tiveste consciência.
O remorso não te consome.
Suicida-te. Maldize a vileza da existência
Que fez o amor gêmeo da fome.
Retrato de São Francisco de Assis, quando chamado Príncipe da Juventude
Belo! A cantar! Na flor da mocidade!
Aos vinte anos! Ao sol da gentileza!
Nos saraus de Florença ou de Veneza,
maravilhando pela airosidade!
De tez de opala e de olhos de turquesa,
Não há mulher que dele não se agrade:
Belo, em toda a candura da Bondade!
Moço, em toda a alegria da Beleza!
Para quem no seu culto se acrisole,
Seduz a fina imagem do azulejo
De Ludovico Cardi da Cigoli!
Espelhada no corpo a alma lhe vejo:
Moça, tendo o frescor dos rosasoli!
Bela, tendo a doçura do seu beijo!
Folha solta
Em breve acabarei não assinando
Mais nenhum dos sonetos que componho:
Por vários males e motivos, ando,
À força de sentir, sempre tristonho.
Por que? Mas para que? Se é miserando
Tudo, e, mais do que inútil, enfadonho?
Anonimar-me num imenso bando,
Despersonalizar-me, eis o meu sonho.
Não ter. Não ser em vida. Olhos enxutos.
Mãos vazias. Produzo bagatelas,
Na pobreza dos campos devolutos...
Árvore sou, talvez, das menos belas,
Que solta, por não dar flores, nem frutos,
Centenares de folhas amarelas...
Algumas das últimas conquistas do Instituto do Cérebro de Moscou
A anestesia pela luz! A dor
Vencida! Oh! nada sei de mais solene
Que o ultravioleta em seu poder infrene,
Que o infravermelho regenerador!
A luz em terapêutica, a se impor
Entre as conquistas máximas da higiene,
Conseguindo que o sono se asserene
Pelo azul, sedativo e sem calor!
Belo! Os segredos siderais, arcanos,
A ciência atinge! E o sonho se traduz,
Surpreendendo em prodígios sobre-humanos!
A vida prolonguemos, eia! sus!
Mas em agerasia, até cem anos,
Pela imanente limpidez da luz!
Stella Consolatrix
Se toda a vez que alguém, alucinado
Estivesse, na sua desventura,
Prestes a praticar uma loucura,
Tornar-se, para sempre, desgraçado;
Se esse alguém, nesse instante de amargura,
Ouvisse a melodia de um teclado,
O evolar-se de um beijo ou de um trilado,
Fosse, embora, qual fosse a criatura,
Juro que a falta não cometeria,
Malgrado o desespero na agonia
Que torturasse esse infeliz demente:
Porque a Música lembra a Estrela d'Alva:
De todo o mal da escuridão nos salva,
Iluminando inspiradoramente.
José Maria
Goulart de Andrade
Choro. Sofro a tortura da saudade.
Venho trazer-te o adeus da despedida.
Ao desfolhar-se a flor da tua vida,
Desaparece a nossa mocidade.
E eu te adorava. Com fidelidade,
Trinta e seis anos, gêmeas benqueridas,
As almas conservamos tão unidas
Que éramos nós Saldunes na Amizade.
Pobre de mim. A soluçar te sigo,
Sem a esperança que promete o além,
Meu companheiro, meu constante amigo.
Dei-te o meu coração. Não sou ninguém.
O que eu tinha de bom, levas contigo:
Metade do que eu fui morreu também.
Subjetivismo
Perdido por fantásticas estradas,
Nos intermúndios da filosofia,
Pressinto aproximar-se o fim do dia,
Termo de tantas horas enganadas.
E a razão me tortura. E a fantasia
Não consola. Entre crises e ciladas,
Na selva oscura das encruzilhadas,
Paro. A voragem negra principia.
E busco um pouso, a bênção de um convento,
A paz moral. E, a abrir-se no horizonte,
Vejo um pomar sorrir-me ao sentimento.
Para lá me encaminho. E a clara fonte,
Dessedentora do meu sofrimento,
Encontro no vergel de Augusto Comte.
Pensamento de uma flor, ou de Clotilde de Vaux
A Ivan Monteiro de Barros Lins
Fecha-te a sete chaves, se sofreres,
E a causa do teu mal, do teu pesar,
Pelo melhor de todos os deveres,
Nem a um amigo poderás contar.
Poupa-o. Se pelo afeto só viveres,
Se viveres somente para amar,
Sentirás o mais doce dos prazeres
Em não fazer por ti ninguém chorar.
Seja consolo tudo o que disseres:
Guarda, recalca as atribulações,
Por mais negras e amargas que as tiveres,
Porque espalhar as suas aflições,
Não é próprio dos anjos, das mulheres,
Da pureza dos grandes corações.
Spiritualis pudor
A honestidade é um íntimo prazer
Que nos eleva à comunhão divina;
Mas louvar essa graça feminina
Ninguém, jamais, o deverá fazer.
Não pelo que se diga ou possa haver,
Não pelo que se sabe ou se imagina;
Prezemos a pureza peregrina
Pelo próprio respeito do dever.
Do homem honrado ou da mulher honesta
Nãos e gabe a virtude: é obrigação
Que não se patenteia ou manifesta.
Exaltemos, porém, a devoção
Que transparece no segredo desta
Prova terrestre da revelação.
Humanamente
Justo? quem pode ser? quem será justo?
De tal realização quem é capaz?
Quem nesta vida poderá, sem susto,
Ter a calma certeza do que faz?
Seja qual for o sentimento augusto,
Pensarás em Jesus e em Barrabaz;
A sentença que deres, muito a custo,
Se ela for implacável, a darás.
Se, porventura, és pai, perfeito esposo,
Não queiras ser juiz, que um laudo teu
Pode um dia deixar-te duvidoso.
Humilde crente ou temerário ateu,
Se a justiça é impossível, sê bondoso,
Que de ser bom ninguém se arrependeu.
Humanissimamente
A Moacyr Chagas
Homem, a face humana e o corpo humano
São sagrados: não uses da vingança,
Não abuses da tua semelhança,
De tal maneira que nos cause dano.
Sem desrespeito, sem desconfiança,
Sem os temores de qualquer engano,
Se te amares de modo franciscano,
Alcançarás a bem-aventurança.
E tanto quanto ao corpo a alma te seja
Merecedora de veneração,
Esse afeto fraterno te proteja.
Porque as culpas mais graves sempre são,
Na miséria da sorte malfazeja,
As praticadas contra o coração.
No andar e no falar,
No sorrir, no sentir...
Mas como somos nós parecidos! Dir-se-ia
Sermos primos-irmãos, ou próximos parentes,
Sobre esta semelhança há perguntas frequentes,
Tais interpelações dando-se todo dia.
Idênticos, não só pela fisionomia
como pelo moral, ambos estamos crentes
De que tenham atuado, em nossos ascendentes,
Cósmicas atrações, forças da simpatia.
Resultantes então fomos nós, com certeza.
Pertencendo do amor à linhagem mais pura,
Esta sublimação não nos causa surpresa.
Somos, por leis afins, como o povo murmura,
Traduzindo uma velha expressão portuguesa,
- Olhos da mesma cor, lábios à mesma altura.
Ramo das violetas do meu culto
sobre a campa em que jaz Teixeira Mendes
Mestre, florindo a tua sepultura,
Em nossa Matria, Altar da Humanidade,
A reverência o coração me invade,
Da maneira mais tímida e mais pura.
Sacerdote, elevando a criatura,
Foste, pelo saber, pela bondade,
A mais alta expressão da santidade,
O mais límpido exemplo da cultura!
Em teu valor moral cristalizou-se
Tudo quando conheço de sagrado,
E, ao mesmo tempo, intimamente doce.
Penso, evocando o teu apostolado,
Na glória do Brasil se sempre fosse
Pela tua virtude governado!
Ante o retrato de Miguel Lemos
À memória de Otavio Carneiro
Em teu rosto espelhava-se a nobreza
Do condestável cerebral, a fina
Linha da estirpe, que te vaticina
As mais claras conquistas da Beleza!
Na graça com que expunhas a Doutrina,
Sempre elegante em tanta gentileza,
Maravilhava a lucidez francesa
Que em teu sonho de esteta predomina!
Se do Marquês de Condorcet descendes,
Mentalmente, o primor do teu civismo,
Entre as paixões gratíssimas que acendes,
É ter trazido, para o teu batismo,
E pelo coração, Teixeira Mendes
À Igreja Excelsa do Positivismo.
Aplausos, parabéns a André Maurois
Romanceemos a vida, romanceemos
Preponderantemente as biografias,
Sem descermos a análises sombrias,
Nem a exames de nódulos extremos.
Se nunca somos como parecemos,
Será melhor que, nas apologias,
Os poetas surjam, sem anomalias,
Arielescos, espíritos supremos.
Manchas no sol... Quando venero, estrujo,
Cego pela grandeza luminosa,
E das inúteis minudências fujo.
Dói-me ver que, na glória tormentosa,
Há quem viva a catar o caramujo
Que se esconde no seio de uma rosa.
As três Marias
Quando contemplo o nosso firmamento,
Sinto frêmitos d'asas em minh'alma:
Dentro da noite, luminosa e calma,
Incendeia-se o meu deslumbramento!
Branca, a Via Láctea sobre nós se espalma!
E, entre as constelações, no céu vidrento,
Para a minha saudade e meu tormento,
Orion, a Linda, é a que merece a palma!
As Três Marias são, de tal maneira
Puras, no seu encanto singular,
Belas, na sua glória brasileira,
Que nelas vejo, tendo o mesmo olhar,
Raymundo, Olavo, Alberto de Oliveira,
Ou Coelho Netto, Annibal e Goulart!
Consolação
Feito de porcelana ou de marfim,
Ágil, de madrepérola ou de prata,
Rindo, a correr, sonorizando a mata,
Flui o regato, em serpejar sem fim.
Folga. E, dentro do humílimo jardim,
Tem qualquer coisa de criança; a inata
Alegria, em que tudo se retrata,
Me faz, às vezes, compará-lo a mim.
Gota d'água, rolando modulada,
Cálamo agreste ou flauta de bambu,
Solta, em surdina, a tímida toada...
Canta, imita o sabiá e o irapuru...
Não é nada... Porém, não sendo nada,
Assim quiseras ser - e assim és tu.
Tule
Ouvindo Gerardenghi
Ariel, a Tule do teu Reino, a Ilha
Da tua adoração, do teu amor,
É Capri! - incomparável maravilha,
Da terra inteira inconfundível flor!
Joia da Itália, primorosa filha,
A luz é nela colorida, o ardor,
De tal modo, cromático, rebrilha,
Que jamais o exprimiu nenhum pintor!
Capri, com os seus anis, tintas turquescas,
Nem sabes, tentadora, o quanto influis
Sobre as almas das frágiles Francescas...
Em chuvas de ouro esplendes e defluis,
Cheia do embalo das marinerescas
Grutas sonoras e canções azuis...
Similitudes
Não posso nunca fazer versos quando
Tenho preocupações, íntimas dores,
Motivos materiais aturdidores,
Que nos tiram o sono alucinando.
Nestas crises, por vezes, me desmando,
Incapaz de vencer tais dissabores,
Males secretos e perturbadores,
Que só se podem suavizar chorando.
Para fazermos versos é preciso
Que a nuvem da amargura se desfaça,
Doure a mágoa a esperança de um sorriso...
Porque é religiosíssimo e se passa
Em Arte, ao realizá-la, o que diviso
Nos estados beatíficos da graça...
Filosofia da Arte
I
Da Eternidade
Porque só se venera o que perdura,
Mortais, nosso mais negro desespero
É ver que, de roldão, e no entrevero
Das paixões, tudo extingue a sepultura.
Ao desprezar o fácil na fatura,
Incrementando de aço o retempero,
Entre os desvairamentos do exagero,
Minudenciamos na cinzeladura.
Pela dor, pelo fogo, qual se fora
Demência, a exorcizar, vivendo à parte,
Esta angústia se torna aterradora:
Perfeição, procuramos alcançar-te,
Na ânsia infinita, Divinizadora,
De revelar a eternidade em Arte!
II
Da Infinitude
Causa-me espanto ouvir queixar-se alguém,
Profissional do ofício literário,
Não ter assunto, nem vocabulário,
Para escrever, para externar-se bem.
Insuficiência incrível ou desdém:
Como não ver, no mundo tumultuário,
Não encontrar no seu elucidário
Milhões de temas que lembrar convém?
Só piedade me inspira esse operário:
Tudo, mas tudo quanto a vida tem,
É motivo de encanto extraordinário!
Para quem sabe olhar, sentir também,
A Arte é o Azul, o espaço planetário,
A irradiação do espírito no além!
Auréola
E Ariel me segredou: - Sombra ilusória,
Poetas, não sois, no curso da existência,
Conforme a vossa física evidência,
Ou segundo a normal forma corpórea.
Sois alma, coração, clarividência,
Prenunciadora luz da vossa glória,
Não o ser que, na vida transitória,
Sofre do corpo a humana decadência.
Belos, jovens não sois? Não vos importe
Esta desilusão do mundo vário,
Porque tudo tereis depois da morte,
Que vos aureolará, no seu sacrário,
Não pelo vosso todo, o vosso porte,
Mas pelo vosso espírito lendário!
Rimance para adormecer Cleómenes Campos
Ao luar, no céu de ouro pálido,
Mab, a Rainha, veloz,
Passa num carro minúsculo,
Mínima casca de noz.
E, de armas em punho, seguem-na
Os gnomos, em batalhões,
Cem barbaçudos humúnculos
De Émols, o Pai dos Anões.
Loc e Nur e Gig, os Príncipes,
Grans-Duques e senescais,
Acompanham-na, entre múltiplos
Funambulescos jograis.
Trinta Fanelas litúrgicas
Cercam-na, em grupos gentis,
Vão cavalgando libélulas,
Cocinelas, colibris.
Vai, apressando-se, o séquito,
Para servir e salvar
A Alva-de-Neve, o Lírio
Que jaz no fundo do mar.
Dorme, por artes fatídicas,
Na gruta do bruxo Uldul,
Que a tem, cativa, num cárcere
Todo forrado de azul.
Dizem que existe uma lâmpada
À porta da gruta, e que,
Pérola enorme e translúcida,
A vinte milhas se vê.
Brilham, das Fadas, inúmeras,
Em cintilância irial,
Os sapatos, estreitíssimos,
Os pantufos de cristal.
Ouvem-se, trêmulos, tímidos,
Sinais, avisos, flonflons
De dourados tintinábulos,
Guizalhando em semitons.
Oh! era lindo, era único
Ver o cortejo passar,
Sob a fineza fluídica
Das neblinas, ao luar.
Mas, numa volta mais rápida,
Toda a corte se sumiu,
O maravilhoso préstito,
Em nuvem se diluiu.
A história prossegue... O lírico
Infante, melhor do que eu,
Vê tudo em sonho... Cleómenes,
Nesse instante, adormeceu.
Canção Tristíssima
Como quem junto a um berço se ajoelhasse,
Em penitência e pura adoração,
Assim eu, deste livro ao desenlace,
A ti, divino Ariel, peço perdão.
O luar da aurora te roseia a face:
És o sorriso, o espírito, a ilusão,
A ingenuidade que a sonhar cantasse,
Graça e origem da eterna inspiração!
Não contes a Miranda, à bela e boa
Alma sempre encantada, o grande mal
Que nos meus versos, soluçando, ecoa.
Próspero o conheceu. Imemorial,
Sofro a dor de viver. Ariel, perdoa:
Dá-me o perfume do teu beijo, Ideal!
Obra no acervo de Mariano Gomes, amigo de Martins Fontes
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