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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[07])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 48 a 58):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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VI - Vendinha à beira da estrada

Você me leva, Jerónimo? - pulou Mariazinha.

- Leva eu também!

- Ssssssssiu! - impôs prima Emerenciana, segurando pela orelha o Roberto.

Um choro brando e tímido sucedeu ao vozerio.

Pau d'Alho era o ideal dos priminhos. Toda vez que se tratava de mandar um camarada buscar qualquer encomenda na Estação, no forde, as crianças queriam ir. Pau d'Alho tinha o trem, o trem de ferro! Era preciso distribuir palmadas e puxões de orelha para restabelecer a ordem.

- Não vai ninguém - declarou sem se alterar o pai. (E voltando-se para mim): Faz questão de ir agora, na tardinha? Por que não vai amanhã cedo?

Expliquei que meu pai me mandara umas coisas urgentes pela estrada de ferro. Às onze horas, se tanto, eu estaria de regresso.

- Com a estrada ruim como anda ultimamente? E à noite? Você se arrisca a ficar enguiçado no meio do caminho.

Dei de ombros. Aliás, uma viagem tão curta: que eram quatro léguas?

O acento desenvolto com que ela me dissera "nunca viu tirar leite?", como que me acariciava agora o ouvido, surgindo da memória. A frase parecia crescer, ocupar-me todo, encher-me de violentas e incompreensíveis promessas.

Eu ia rever o vestido de chita vermelha, e aqueles olhos baixos e tímidos, por vezes iluminados de ironia.

- Nunca viu tirar leite?

Caboclinha do peito de rola...

O forde atravessou a Vila. Era um fim de tarde e verão, com o céu esbraseado. Na Rua Direita os palestradores do costume estavam em grupos, à porta dos negócios. No Largo da Matriz o vigário, com a mão abanando, disse-me um adeus exagerado, todo risonho no meio de umas moças. Crianças brincavam de fazer montinhos de terra, sujando-se, alarmando as mães que apareciam às janelas, com ralhos. O tabelião Xéxéu subia uma calçada, lentamente, em direção à casa do coletor estadual: tirou-me o chapéu num grande gesto de cortesia, sem sorrir, nobremente. E o tenente Raimundo, quando lhe passei em frente à porta, agitou nas mãos um número da "Abelha", dando-me a entender que era o último, saidinho naquele instante dos prelos da Tipografia Aurora.

Tinha agora diante de mim a estrada do Pau d'Alho. Mugidos ecoavam longos na tarde. Nos mangueiros, os bezerrinhos, já separados das mães para não mamar durante a noite, lamentavam-se fanhosos. As grandes vacas coloridas respondiam pacientes, nos pastos, com fios de baba pendendo das narinas, como lágrimas, Uma paz perfeita envolvia as casas dispersas das fazendas. Humildes, as palhoças dos agregados eram como manchas de cupim na encosta dos morros. A lâmina dos córregos, cortando os terreiros limpos, brilhava na luz vermelha do poente. Caboclinhos ligeiros, disparando ela estrada, gritavam para o forde, aclamativos: eh! eh! eh! Um cachorrinho paqueiro surdia como uma bala, as quatro patas unidas no esforço supremo, passava na frente, depois afrouxava, gania, protestando, vencido pela máquina. Atrás, ficava uma confusão de latidos, gritos de criançada e poeira, perturbando por um momento a limpidez do ar e a tranquilidade do anoitecer.

A poesia dos campos enternecia-me.

Uma vendinha da roça, perdida na solidão, apareceu num cotovelo do caminho, dependurada no barranco: em baixo um rio roncava, encachoeirado. Senti uma indizível simpatia pelos caboclos que estavam à porta, em conversa, fumando, no repouso dos trabalhos da lavoura: caras mongólicas, magras, de zigomas salientes, peitos fundos, sem musculatura, mãos enormes, deformadas pela enxada e pela foice, mãos que eu nunca apertara. Pensei no primo Boanerges, no dia em que me trouxera de Pau d'Alho, a parar em todas as vendas, a distribuir apertos de mão à direita e à esquerda, num preparativo hábil das próximas eleições. Eu, porém, não tinha interesse. Era por impulso puro do coração. Parei o forde.

- Boa noite, meu povo.

Olharam-me desconfiados. Tocaram apenas no chapéu. Entrei na vendinha cheia, atravessei o grupo amontoado em torno de um violeiro.

- Vom vê, João!

- Vá, vom vê isso!

João afinava o instrumento. Um cheiro de suor, de cachaça e de mato pairava. Pedi no balcão uma caixa de fósforos para justificar minha presença ali. O vendeiro era gordo, bronzeado, a camisa aberta no peito deixando aparecer um bentinho. (Depois fiquei sabendo que já matara dois homens, um dos quais um mascate sírio). Ninguém me deu atenção e saí, abafando aquele desejo forte de apertar mãos calosas, mãos do trabalho agrícola, veteranas das roçadas, das limpas e das colheitas. À porta, os caboclos indiferentes, puxando fumaça dos cigarros, continuavam olhando à toa os campos fronteiros plantados de fumo e de milho. Então, sem motivo, senti apesar de tudo a necessidade de não falhar na minha tentativa; agarrei a mão mais próxima... Era um caboclo de barbicha branca, olhinhos turvos...

- Até à volta, meu velho!

O caboclo deixou a mão na minha. A dele era grossa como a pata de um palmípede e dava a sensação de não saber segurar senão o guatambu das enxadas: pobre mão de um anônimo escravo da terra, mão de analfabeto, mão que jamais abrira um livro ou tomara de um lápis, para escrever a um amigo.

Uma gargalhada franca reboou em torno de nós. Olhei: os outros caboclos, divertidos com o ar espantado do velho, apertavam-se a rir. (Os caboclos riem facilmente, achando graça em tudo. A tristeza brasileira não será uma lenda?)

- Estou lhe dizendo até à volta, meu velho! - insisti, vexado.

- Está falando c'ocê, Nhô Felício!

Nhô Felício sacudiu, maquinal, a mão seca e ossuda, num cumprimento desajeitado. Também tinha a camisa aberta; e um bentinho, igual ao do dono da venda, aparecia na ponta de um barbante encardido, passado em volta do pescoço. A calça de brim ordinário estava amarrada à cintura por uma embira; do cano arregaçado à altura do joelho apontavam as canchas finas, retas, que iam terminar em pés largos, descalços, de artelhos rombudos. Velho caboclo do Brasil...

Dentro de mim tudo era meiguice por Nhô Felício. Ignorante, obstinado, desprotegido e bravo, pai de outros caboclos como os que nos rodeavam, avô de outros tantos, bisavô talvez daqueles caboclinhos que ainda há pouco corriam atrás do meu forde, eh! eh! eh!, de embolada com os jaguapevas aos guinchos!

Ele me olhava fixo, refletindo. De repente, os olhinhos turvos franziram-se num sorriso que era tanto para mim como para os outros que estavam atrás de mim. A boca murcha e desdentada falou:

- Mecê é o doutô, primo do coroné Boanerge, não é?

Fiquei maravilhado. Os demais não deram importância àquela informação que, no entanto, me parecia prodigiosa.

- Como é que o senhor sabe quem sou eu, Nhô Felício?

Lá dentro, na venda, depois de muito afinar a viola, João começou a cantar, a cantar uma melopeia tão triste que de súbito a tarde ficou triste também. (Não, o caboclo brasileiro é triste, bastava escutar aquela toada).

Tolo que eu fora. O forde do primo Boanerges ali estava, a provar que eu era o primo doutor. Essas notícias correm rápidas na roça: "chegou o primo do coronel Boanerges". Que havia de surpreendente na pergunta do velho caboclo? Mas não, havia alguma coisa de surpreendente em Nhô Felício: aquele modozinho sumido com que ele estava na porta da venda, como se não soubesse de nada do que se passa neste mundo, e me desfechava a ficha de identidade. Ah, Nhô Felício! Os olhinhos turvos prestavam atenção à vida, sabiam de tudo, notavam tudo...

- Adeus, Nhô Felício.

- Até mais, doutô.

Então todas as mãos se estenderam para a minha, timidamente, um pouco pensas na ponta de cada braço. Olhei em torno, na tarde quieta, os fumais e os milharais, pelas encostas. Pensei comigo, liricamente: o milagre das mãos. Aquele gesto coletivo me irmanava ao povo que lavra os campos. Enfim, elas vinham a mim, as mãos que eu tanto desejara apertar. Tive a absurda sensação de ser um deus fazendo com que os elementos obedecessem secretamente à minha vontade criadora.

A essa ideia se misturava a convicção de receber uma espécie de batismo da terra. O povo da cidade, a que eu pertencia, era uma multidão versátil e demagógica, sedenta de prazeres e de comícios políticos; mas aquela gente dos campos, esquecida no seu analfabetismo e na sua miséria, aquela gente que nada pedia e ainda cantava - a melopeia penosa do João! -, aquela gente é que exprimia as realidades humildes do país.

Dentro de mim nascia um novo sentido da pátria. Ao mesmo tempo, o demônio do espírito crítico insinuava-me: "És tolo, Jerónimo, de te comoveres com a vista de meia dúzia de caboclos à porta de uma venda de roça". O lirismo então reagia: "Não, estás com a verdade. A pária é um sentimento, é um estado de alma".

Esse estado de alma era agudo, no cair da tarde, em frente à vendinha em que o João tocava viola. Na cidade, minha ideia de pária provinha de narrativas históricas, de hinos aprendidos, de marchas militares, de um orgulho sem perspectiva cujas raízes não iam além da memória escolar. Ali, eu me sentia um fragmento vivo daquele todo, humanidade e paisagem. O João entretanto cantava:

Meu benzinho foi-se embora,

Foi-se embora p'r'a cidade,

Curandeiro ocê me diga

Si sabe curá saudade.

Pulei dentro do forde. Levava dentro de mim um entusiasmo viril, nascido à toa, de um nada fortuito, como esses incêndios que uma faísca ateou. Meu pai havia de ficar espantado quando recebesse a minha carta decidindo ser fazendeiro. Seria fazendeiro. Não compreendia agora outro destino. E, no fundo daqueles projetos impulsivos, a carinha morena de Zuca estava rindo para mim, atirando um beijo.