I - A lesão
Estava certo. Era preciso ficar um ano em bom clima, numa
fazenda. O doutor dissera que eu tinha uma lesão de primeiro grau no pulmão direito. Sua luneta de tartaruga, de cordão preto atrás da orelha, dava-lhe um aspecto de sábio infalível. Eu não acreditava na lesão, mas acreditava no doutor.
À noite, meu pai, já conformado com a ideia da moléstia e da minha próxima ausência, veio ver-me no quarto, fingindo bom humor:
- Então, seu chefe, as malas estão prontas?
Um desacordo surgiu entre nós. Francamente, eu ir meter-me naquela remota Vila da Mata? Que ideia! Antes a Suíça! Por que não a Suíça?
- Meu pai, se você me deixa ir para a Suíça, eu prometo ficar quieto num sanatório o tempo todo que você queira. Fico dois, fico três anos. Mas Vila
da Mata, meu pai, deve ser um degredo. Como é que vou passar um ano na fazenda dos Pereira? Eu tenho horror à roça.
- Não senhor, não senhor. O médico é quem sabe. Ele acha muito bom o clima de Vila da Mata. Além do que, você estando com os Pereira não poderá fazer
extravagâncias... Eles me trarão ao corrente dos seus passos...
Sorriu com ar de triunfo. No fundo, a preocupação de meu pai era apenas aquela: impedir-me de fazer o que ele chamava "extravagâncias". Eu
compreendia.
- Com pulmão não se brinca. No seu caso, é verdade, não há nada de muito grave, mas enfim com pulmão não se brinca.
Deixar o Rio no exato instante em que estava começando a vencer o difícil coração de Pequetita Novais, a admirável Pequitita Novais, os olhos mais
verdes da cidade e a mais esquiva de todas as cariocas? Deixar o Rio quando também, todos os sábados, metendo no bolso algumas cédulas de cem mil réis, eu seguia o alegre caminho do Clube dos Arrepiados, onde vicejava Pepa la Sevilhana, flor de
todas as Espanhas? Ah, sorte ingrata!
- É isso mesmo. Não me olhe com essa cara de vítima. Você parte amanhã mesmo.
Sim, eu sabia que devia partir o mais depressa possível. Ainda que nada me doesse por dentro e apenas uma ligeira tosse me incomodasse, a fisionomia
severa do dr. Edmundo Esteves, os metais brilhantes do seu consultório e a geringonça negra do aparelho de Raios X me haviam imposto respeito.
Vila da Mata! Era longe como o diabo, mas lá estavam os Pereira, ideia fixa de meu pai. Porque não Friburgo, Teresópolis, Pati-do-Alferes? Não, havia
de ser Vila da Mata, havia de ser com os Pereira! Nas imediações do Rio há dezenas de cidadezinhas de campo e de montanha em que um rapaz pode curar a sua lesão sem ficar demasiado longe de Pepa la Sevilhana e de outras distrações úteis. Não, Vila
da Mata tem os Pereira...
"O Jerónimo Vieira Pires manda afetuosas saudações à encantadora Pequetita Novais e oferece seus fracos préstimos em Vila da Mata, Estado do Espírito
Santo, para onde segue amanhã. Pede desculpas de não poder despedir-se pessoalmente como seria de seu desejo".
Parecia que nesse cartão é que eu dizia o verdadeiro adeus à cidade. |