RIBEIRO COUTO E O BRASIL SERTANEJO
O Brasil que Ribeiro Couto - grande poeta no verso e na
prosa, um dos mestres e chefes incontestados da nova literatura de além-Atlântico - sortilegamente evoca neste livro de tão saudável e amorável sabor rústico, não é o Brasil dos litorais iluminados, das cidades tentadoras e suntuosas, dos portos
frementes da agitação das fainas marítimas. Não é o Brasil dos turistas maravilhados e apressados, o Brasil que logo se vê e se admira da amurada dos transatlânticos fugidios.
É outro Brasil mais quieto e mais íntimo, mais singelo e mais terno. Um Brasil sem cosmopolitismo deslumbrador. Uma doce pátria de grei quase
idílica no lento curso da sua existência, decerto laboriosa, mas não arrastada pela torrente das exaustivas ambições da vida contemporânea.
Brasil que mal lobrigamos de longe, que mal conhecemos em Portugal, ou nem sequer chegamos a conhecer, discreto alfobre das energias, das
esperanças e das tradições perenes com as quais se alimenta, com as quais se fortalece e enobrece, momento a momento, a alma e o espírito do povo brasileiro.
"Espelho da terra nacional", chama Ribeiro Couto à história deliciosa que nos conta aqui. E assim é. Nenhuma designação mais justa poderia caber a
este livro de cativante, de enfeitiçante magia. O ambiente do Brasil do interior, daquele Brasil oculto pelo vário e impetuoso esplendor das suas praias oceânicas, eis, de fato, o tema ou, antes o "personagem" primacial do romance. Não ostenta, não
nos mostra este livro, embora o autor o pudesse fazer, pretensões a romance psicológico ou psico-fisiológico, a falsas profundidades de análise mais ou menos servas da lição de Freud, e, aliás não imitáveis, inspirações bebidas na já por demais
imitada e louvada arte "proustiana".
Diz-nos Ribeiro Couto que a sua Cabocla foi "um desabafo de saudade e talvez de angústia". Como não acreditá-lo? Mas a angústia e a
saudade sumiram-se ou, melhor, sublimaram-se na cândida e alada alegria de ressuscitar - para nosso encanto e repouso de muitas e fastidiosas obras pretensiosamente complicadas - gente e hábitos, índoles e costumes, usos e caracteres de ingênua,
comovente e, no entanto, fidelíssima veracidade.
Reais, "autênticos" em tudo e por tudo, na sua apresentação e interpretação literárias, e não apenas produtos da imaginação, não apenas ficção ou
fantasia. Franjados de não sei que doce, envolvente e carinhosa auréola lírica? Sem dúvida. Ribeiro Couto é o autor do Dia Longo, Ribeiro Couto é o poeta raro, o poeta absoluto, que do mundo que o rodeia, da vida que vive, dos seres e das
coisas que observa ou contempla - por muito avessos à poesia que eles pareçam - extrai sempre, e sempre faz dimanar poesia, sorve poesia, colhe poesia, e na sua obra inteira a prende, a condensa e a deixa a irradiar...
Não se estranhe, pois, que nos invoque a sua "obediência às velhas vozes da sensibilidade". As velhas vozes da sensibilidade não serão,
afinal, aquelas que sempre ouvimos, que sempre nos seduzem, que sempre nos impressionam e nos persuadem na literatura e na arte destinadas a não morrer, a não ser jamais esquecidas? Ribeiro Couto, ouvindo-as, vai além do instante passageiro e, com
materiais que se julgariam efêmeros, cria sempre eternidade...
Vilazinha do sertão, montanha bucólica, estação de caminho de ferro perdida na distância, pequena igreja dos tempos coloniais, "vendinhas da
roça", e árvores de sombra hospitaleira, e rios de múrmuro deslizar, e fontes de embaladora canção - tudo isso é o cenário em que respira, e sorri, e confia, e ama, e se deixa amar Zuca, a doce cabocla, a menina "de hálito puro como o dum
cachorrinho de mama", em cujo corpo parecia não haver a mínima "possibilidade de podridão, como se a natureza o tivesse feito duma substância inocente, lavada de todas as corrupções e de todas as mortes". Cenário onde o amor é logo
essência de castidade e de fidelidade, e tudo são viáticos eficazes contra a dor, contra a desgraça, contra o vício e contra o mal.
"Ao fundo das ruelas estreitas um aflitivo pedaço de mar evadia-se para o céu todo marcado de mastros de navios. Era a cidade, era a rua..."
"Aflitivo" pedaço de mar? Ribeiro Couto é um apaixonado de tudo quanto, em estímulo e em sonho, ao mar se refere, e o mar nos inspira, e o mar nos desvenda, e o mar em nós desperta e incita.
Mas repare-se neste adjetivo de singular e flagrante oportunidade, neste "aflitivo" que, perante a asfixiadora presença do aglomerado
citadino, logo explica e justifica a atitude saudosa de Jerónimo, o protagonista da Cabocla, que visiona então, com mais acuidade do que nunca, "as lavouras do Córrego Fundo" no meio das montanhas, "o gado leal e simples", a "vida
natural, cheia de vozes familiares, de perfumes de erva, de barulhinhos de água, entre os horizontes clementes".
E, pela boca de Jerónimo, Ribeiro Couto acentua: - "Assim, lá de longe, do mato, me vinha a solicitação imperiosa. Fora o milagre de Zuca, do
seu vestidinho de cita, do seu beijo, do seu hálito? Ou fora o milagre da terra, os horizontes agrícolas, o cheiro dos brejos plantados de inhame, a exalação dos canaviais, o calor do gado manso?". Milagre, sim! milagre que transforma o homem da
cidade num sertanejo olvidado já dos bruxedos perigosos e venenosos que a ela o prendiam ainda.
Milagre que é, também, o milagre cuja influência e prestígio o leitor da Cabocla sente ao calor suavíssimo - tal o dum tépido e afável lume
aconchegado nas brasas - do livro sincero e bom. Livro que nos comove e nos convence, alargando a nossa ideia do Brasil até as para nós ignoradas paragens do seu hinterland, e fixando, mais do e que em nossa visão, em nossa própria e
profunda emoção, a direta presença da atmosfera moral, espiritual e física do Brasil sertanejo.
Os personagens da Cabocla nasceram, medraram, e vemo-los desde logo assim, trespassados da claridade, dos aromas, dos ruídos e da carinhosa
envolvência do clima e da paisagem em que vivem, sofrem, trabalham, sonham e esperam. Encarnações perfeitas do meio, através dele se definem, e nele se define mais nitidamente o encanto, a fascinação, o lirismo profundo, a poesia ingênita do Brasil
das serras e dos campos...
Cabocla, editada em Portugal, constitui uma dádiva preciosa oferecida a todos os portugueses desejosos - e todos o são - de não ignorar esse Brasil
quase secreto, o Brasil onde, porventura, a herança lusíada se guarda e resguarda com mais abrigante carinho. E onde, ao mesmo tempo, a fisionomia exata do Brasil brasileiro mais completamente se forma, se desenha e se plasma.
Ribeiro Couto deu-nos, em Cabocla, um livro que poucos, pouquíssimos escritores nos poderiam dar com igual e tão penetrante e comunicativo
fervor: - o romance do ambiente do Brasil rústico, do Brasil tradicional e íntimo, raiz indestrutível e sem mácula do complexo e prodigioso Brasil de hoje e de amanhã.
Março de 1945.
JOÃO DE BARROS |