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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-S)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 199 a 207:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Milagre de Natal

Naquele cortiço da Rua dos Arcos, pomposamente chamado "Vila Imperial", morava gente de todas as profissões, mas sobretudo gente de teatro. Transposto o portão, via-se um pátio cimentado e um renque de casinhas de porta e janela com um alpendre. Entre as colunas de ferro desse alpendre pendiam barbantes com roupa secando e gaiolas de passarinhos. Não se sabia onde, estrugiam palmadas enérgicas nas nádegas de algum menino que levava um tombo ou entrava em casa sujo de lama. Ao fundo do pátio eram as tinas de lavar: sempre com três ou quatro mulheres em roda, em conversas estridentes, gargalhadas e recriminações. Pelo meio-dia, cantarolavam homens de vistoso pijama, a fazer a barba em espelhinhos dependurados à ombreira das portas. Vozes quentes enchiam o espaço com árias italianas... Mas havia outras vozes:

- Cão! Miserável! Tu me pagas, bandido!

Essa era a voz de Ritinha Mendes, a rapariga mais ciumenta do teatro brasileiro, mulher do tenor Fioravanti de Medeiros. Os vizinhos ficavam em silêncio, escutando, divertidos.

Uma gente muito esquisita. Quando ouvira pela primeira vez uma briga entre marido e mulher, Antônio saíra ao alpendre e ficara de nariz para o ar, a ver se descobria em que porta se passava o drama. Tivera ímpetos de intervir. Depois, a conselho de Luísa, abstivera-se.

A lavadeira Isolina explicava: a pior de todas, ali, era a Carlota, uma portuguesa bigoduda, que gostava de apanhar. Vivia com um tal Sousa, dono de uma quitanda na Avenida Mem de Sá. Tanto o provocava que ele acabava por aplicar-lhe umas bofetadas tremendas. Ela rolava, aos gritos. uma tranquilidade secreta reinava de novo no cubículo fechado. Horas depois, o casal saía; o sr. Sousa cumprimentando os vizinhos afavelmente e a corpulenta Carlota muito mansa, reclinada ao braço dele com ternura.

- Papagaios! - exclamou Luísa.

- Que é que é, madama?

- Onde é que estamos metidos!

- Ora, por toda parte é igual, madama. - E virando-se para Antônio: - O amor é um caso sério, não é, seu Flores?

Tinham de se mudar dali. Talvez aquele romance durasse mais do que algumas semanas; quem sabe se duraria meses, anos? Ela era boazinha, dócil. Como corista do Teatro Recreio ganhava uma miséria: ia tudo em trajes para as peças novas. Ele estava à espera de um lugar fixo numa redação ou então de um biscate rendoso, como o de chefe de propaganda de um laboratório.

Seu amigo Amarante, farmacêutico em Copacabana, perseguido pela Saúde Pública (por denúncias falsas de um médico, um certo Inácio Gomes), mudara-se para Cascadura onde ia fabricar um remédio contra a bronquite. Seria maravilhoso: Antoninho tinha apenas que inventar pequenas anedotas para os anúncios e todos os anos redigir um almanaque. Mas, Amarante lutava também com a pobreza; de rico, naquilo tudo, só havia o título das funções prometidas e o da empresa em formação: Chefe de Propaganda dos Laboratórios Bronquitol, Limitada.

Sim, talvez aquele romance durasse. Tinham-se encontrado há pouco mais de quinze dias, na Praça Tiradentes; ela, a caminho da Rua do Lavradio, indo para casa; ele, de regresso da redação do Diário Nacional, onde fora ver um amigo.

Não sabiam como aquilo sucedera tão simplesmente: passaram a morar juntos no quarto nº 21 da "Vila Imperial". Luísa saía pela manhã para fazer as compras do almoço na feira dos Arcos ou nas lojas das redondezas; e Antônio punha-se à mesa, no trabalho de todos os dias: traduções para jornais, um artigo, um conto. O dinheiro caía aos pingos, mas Antônio estava agora ainda mais otimista. Breve seria possível morar num bairro melhor, num quarto poético. Nas Laranjeiras, por exemplo.

- Na noite de Natal vamos cear num cassino? Ceia com champanhe, sim? Diga que vamos...

- Com champanhe, Luísa?

- Com champanhe, Antoninho. É um luxo, uma vez só. Vai dar sorte à gente, Antoninho...

Era o primeiro desejo que ela lhe manifestava. Sabia que ele estava lutando para ganhar o indispensável. De repente, um pedido, o primeiro, o único pedido... E feito com uns olhos tão meigos, tão infantis! Antônio prometeu, sem saber onde arranjaria dinheiro.

- Na véspera de Natal iremos cear num cassino, com champanhe. Está feito.

Ela se lhe atirou no pescoço, brandindo a colher de pau com que remexia a caçarola de picadinho.

Antônio subiu as escadas do Brasil Magazine, na Rua do Ouvidor. O Nunes, seu diretor-proprietário, era um velho seco, muito pouco amigo de literatos, uma vez por oura publicava uma crônica de Antônio Flores Filho, pagando-lhe cinquenta mil réis. Desta vez, Antonio levava-lhe quatro crônicas, de pancada, com a esperança de obter o dinheiro para a noite de Natal.

Com o cigarro de palha ao canto da boca, Nunes olhou Antônio por cima dos óculos pretos e perguntou:

- Que é que o senhor traz aí, seu Flores?

- Quatro crônicas... Se o senhor me pudesse adiantar o vale... A cinquenta cada uma seriam duzentos mil réis...

Nunes ficou de mau humor. Pegou as tiras de papel, folheou-as, refletiu um momento:

- Não posso ficar com mais de um original.

Devolveu as três crônicas recusadas, rabiscou um vale:

- Pode passar na caixa.

Então Antônio encheu-se de coragem e explicou: faltavam dois dias para o Natal, ele estava com necessidade de duzentos mil réis... Cinquenta não bastavam...

O diretor do Brasil Magazine encarou o colaborador com espanto:

- E que é que eu tenho com isso? O meu número especial já está pronto, sai amanhã. Por que é que o senhor não se lembrou de escrever-me um conto de Natal? Eu teria pago os duzentos mil réis por ele.

- Realmente, não me lembrei. O senhor sabe, todos os anos as revistas publicam contos de Natal. Assunto batido demais. A gente nem tem mais ideias...

- Como não tem mais ideias? O senhor confessa que é um autor sem ideias? E traz-me artigos? E pede-me dinheiro?

Antônio olhou as paredes da sala do diretor, cobertas de retratos de celebridades da política, do teatro e do cinema. Uma folhinha do ano marcava a data: 22 de dezembro. Ah! se não fora o seu horror a ideias muito exploradas... Poderia escrever ali mesmo um conto em que aparecesse um santo vestido de mendigo ou com Papai Noel entrando pela janela, pondo brinquedos nos sapatos das crianças, num lar pobre...

Num lar pobre. O seu era pobre. Seria própria a palavra "lar" aplicada àquele quarto da "Vila Imperial", com a Luisinha assobiando um samba enquanto descascava batatas?

- Está bem, paciência. Talvez para o ano tenha uma boa ideia.

O diretor olhou Antônio com um olho aberto, outro fechado, por causa da fumaça do cigarro.

- Quantos anos o senhor tem?

- Vinte e cinco.

- Onde nasceu?

- Em Mato Grosso.

- Qual é a sua situação?

- Espero o lugar de Chefe de Propaganda dos Laboratórios Bronquitol, Limitada.

- Onde é isso?

- Em Cascadura.

- Que remédio é esse?

- Não sei. O inventor diz que cura bronquite.

- Que ideias tem o senhor como chefe de propaganda?

- Por exemplo, um trocadilho: "a crônica do dia - bronquite". Isso é para os jornais, comm o nome do remédio embaixo... Será um slogan formidável.

O diretor recuou na cadeira; ajeitou os óculos no nariz, puxou outra fumaça do cigarro; depois sacudiu a cabeça com ar de pena. Fez com a mão um aceno breve, a despedir o literato.

- Está bem - tornou Antônio, enchendo-se de súbita cólera. - Eu lhe garanto que tenho ideias e farei até mesmo contos de Natal. Farei o herói achar dinheiro na rua. Vestirei Papai Noel de sargento de bombeiros. Matarei um diretor de revista no momento em que ele se senta à mesa, com a família, à meia-noite, de óculos pretos, para comer castanhas assadas. Incendiarei as árvores de Natal de toda a cidade! Ficarei louco, senhor diretor, mas terei ideias.

Antônio pôs o chapéu à cabeça e avançou para a porta. Voltou-se ainda:

- Fique sabendo! Quantos contos queira, com ou sem milagres!

Por pouco, investia contra o Nunes, jogava-lhe um tinteiro ou quebrava-lhe a cara. Desceu a escada agitadíssimo, com um tremor no braço. Nas vésperas de Natal! Havia de ser bonito! Teve vontade de subir as escadas de novo para acrescentar: "Farei um conto em que o herói vai para a cadeia e sonha que o jantar de marmita é um banquete com a presença dos três Reis Magos!" Não, não valia a pena.

Ao chegar à calçada esbarrou num transeunte, pediu desculpas e continuou. Ouviu "sssiuu! sssiu" com insistência. Voltou-se: era o Amarante, cheio de embrulhos, sem chapéu, a calva reluzente de suor.

- Então, não me aparece mais?

Antoninho admirou-se: Como? Ele é que estava à espera de um chamado! Já tinha até um bom material para o almanaque do "Bronquitol". E anúncios!@ ideias para anúncios! Um slogan formidável: "A crônica do dia - bronquite. Contra ela, Bronquitol".

Atrapalhado com os embrulhos, Amarante deteve-se à soleira de uma porta e pôs-se a contar: estava sem sorte. Ainda não integralizara o capital. Andava à procura de um capitalista, mas as perseguições contra ele continuava. Os amigos que tinha consultado vinham logo com a tal história de Copacabana, que Inácio Gomes inventara: a venda de tóxicos. Uma coisa indecente. Até em Cascadura já havia quem soubesse da calúnia! Em todo caso, Antoninho devia aparecer, preparar a propaganda.

- Gostou do slogan, Amarante?

Amarante fez um sorriso vago: nem sim, nem não.

- Você sabe, o público não entende muito de trocadilhos...

- Mas é um trocadilho claro, alusivo, específico! Pense bem, Amarante... O sujeito lê "crônica", "crônica do dia", pensa que se trata de notícia de jornal, de notícia palpitante... Depois lê "bronquite", liga as ideias, lembra-se de "bronquite crônica", compreende, recebe o choque...

- Compra o remédio? - perguntou Amarante, piscando um olho.

- Compra, sim senhor. A menos que seja como eu: que devo cear na noite de Natal com um amor de criatura e não tenho senão cinquenta mil-réis. Preciso de mais cento e cinquenta, Amarante. Pode ser?

Antoninho entrou em casa assobiando. No fundo do bolso acariciava os duzentos mil-réis do seu milagre de Natal. Cinquenta do Brasil Magazine e cento e cinquenta por conta das suas futuras funções nos Laboratórios Bronquitol, Limitada.

Encontrou Luisinha preparando o jantar: uma galinha de molho pardo naquele miserável fogãozinho a gás que tinha só um suspiro. Pobre Luisinha!

Dançando e castanholando os dedos, Antoninho aproximou-se dela, deu-lhe um beijo na nuca.

- Depois de amanhã, grande ceia!

- Com champanhe, Antoninho?

- Com champanhe.

Tirou do bolso as notas e, alisando-as em cima da cama, foi contando em voz alta: cinquenta, cem, cento e cinquenta, duzentos... Nisso bateram à porta. Apareceu na soleira um sujeito baixo, de óculos, que respeitosamente declarou:

- Sou Papai Noel.

Luisinha encolheu-se com medo, protegendo-se atrás de Antoninho.

- Sou Papai Noel - insistiu o sujeito.

Antônio não acreditava no que via: o Nunes, do Brasil Magazine. Parecia acanhado à porta do quarto, ao fundo do qual chiava a caçarola no fogão. Antônio lembrou-se da cólera que sentira contra ele momentos antes na redação; teve pena daquele homem idoso, que podia ser seu pai, e a quem quase agredira.

- O senhor me perdoa, não é? Ainda há pouco, fiquei nervoso... O senhor sabe... Sente-se, seu Nunes.

Estendeu-lhe uma cadeira. Quis tomar-lhe o chapéu, colocá-lo no cabide...

- Não, é só um instantinho - obtemperou Nunes, muito confuso. - Vim trazer-lhe os duzentos mil-réis do próximo conto...

- Do conto?

- Do conto de Natal, para o ano que vem. É um adiantamentozinho...

Antônio ficou vexado:

- Não posso aceitar. Eu lhe ofereci quatro artigos, o senhor só me aceitou um, pagou-o... Está acabado...

- Mas não me dá o direito de encomendar um conto a um jovem autor com ideias, como o senhor?

Luisinha olhou a caçarola em que a fervura subia, ameaçando de transbordar; deu um salto para o fogão:

- Minha galinha de molho pardo!

Nunes aproveitou a ocasião para meter o dinheiro na mão de Antônio: não havia como recusar, era uma encomenda, embora com um ano de antecedência. Os bons números de Natal - acrescentou com ar grave - devem ser organizados com muita, muita antecedência. E, tomando o chapéu, saiu. Antônio acompanhou-o sem saber o que dizer, ainda mais confuso que o diretor do Brasil Magazine.

No alpendre, o Nunes segredou-lhe:

- Se o negócio do laboratório não for adiante, vá me procurar na redação... Há muito tempo que venho pensando no senhor. O Brasil Magazine está precisando de um secretário novo, com ideias...

As crianças que faziam diabruras no pátio tinham ouvido aquele homem bonachão dizer à porta do quarto nº 21: "Sou Papai Noel".

De combinação, levaram-no em cortejo até à rua, em gritaria sarcástica:

- É Pa-pai No-el! É Pa-pai No-el!

Nunes não conseguiu safar-se antes de distribuir todos os níqueis que trazia no bolso.

Antoninho voltou ao quarto como um doido:

- Luisinha, onde está a estrela-d'alva?

Pôs-se a dar cambalhotas na cama, onde as quatro notas de cinquenta mil-réis ainda jaziam expostas.

- Mais duzentos, Luisinha!

- E continuou a contagem: duzentos e cinquenta, trezentos, trezentos e cinquenta, quatrocentos...

Nova cambalhota. A cama já ameaçava se desconjuntar. De pé, crescendo para o teto e gesticulando como no teatro, Antônio tomou um ar grandiloquente, repetindo:

- Onde está a estrela-d'alva? Onde está a estrela-d'alva? Os Reis Magos andam pela cidade com as mãos cheias de presentes!

Luisinha retirou da caçarola a colher de pau, limpou-a no avental, bateu com ela no peito e declamou, fingindo de "estudante alsaciano":

- Está aqui, no meu peito! Aqui é que está a estrela-d'alva!

Nisso reboou pela "Vila Imperial" um vozeirão exasperado:

- Má raios te partam, virago!

Houve cadeiras empurradas, um armário caindo com um som de bombo, o rumor claro de um copo se espatifando à parede.

- Me acudam! - gritou a voz da Carlota, em seguida, provavelmente, ao primeiro bofetão do sr. Sousa.

Houve uma pausa de silêncio. Luisinha e Antônio entreolharam-se, penalizados... Baixinho, ela falou:

- Vamos procurar um quarto nas Laranjeiras, não é? Não podemos continuar aqui, meu amor.

- É. Na semana que vem. Arranjaremos um lugar tranquilo, poético... Lá para os lados do Cosme Velho...

No pátio, a atriz Ritinha Mendes, solidária com a portuguesa, irrompeu nervosa a fazer escândalo:

- Bater numa mulher! Que vergonha! Pare com isso, seu bruto!

De novo, o silêncio. Súbito, a voz do tenor Fioravanti de Medeiros alçou-se num trêmulo romântico:

La donna é mobile

Qual piuma al vento...