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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-R)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 187 a 198:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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O Bloco das Mimosas Borboletas

Foi na véspera do carnaval que encontrei o sr. Brito. Ele esperava o bonde junto ao Hotel Avenida.

- Boa tarde, sr. Brito!

- Boa tarde!

E, como eu parasse para acender um charuto, o sr. Brito, aproximando-se, pediu com humildade:

- O seu fogo, faz favor?

Estava ali há dois minutos, com o cigarro apagado, à espera do bonde e de um conhecido para emprestar-lhe o fogo. O sr. Brito ouviu dizer, ou leu num almanaque, que o banqueiro Laffitte obteve o seu primeiro emprego porque o futuro patrão o viu curvar-se para apanhar um simples alfinete. Então faz economias de caixas de fósforos, de cafés, de engraxate. Pode ser que algum capitalista se aperceba disso e o convide para um alto negócio.

Aliás, há uma outra razão para o sr. Brito agir desse modo: possui duas interessantes filhas, as duas muito jovens, as duas muito dispendiosas, as duas impando uma importância social que está em absoluto desacordo com o modesto cargo que o sr. Jocelino de Brito e Sousa ocupa, silenciosamente, no Ministério da Fazenda.

Eram cinco e meia da tarde. Como a multidão nos acotovelasse, convidei o sr. Brito a tomar um aperitivo na "Americana". O sr. Brito, aceso o seu cigarro, principiara a se lamentar; e a conversa, ainda que fastidiosa, excitava a minha curiosidade.

O sr. Brito é dos homens mais notáveis da cidade. Eu é que sei. No entanto, ninguém lhe dá importância. Tem uma obesidade caída, um desânimo balofo, um desacoroçoado jeito de velho funcionário pobre que se desespera em casa com as meninas. As meninas querem vestidos, precisam frequentar a sociedade, consomem-lhe todo o ordenado. Ultimamente, deram para um furor de luxo que não tem medida. E o sr. Brito, triste, cogitativo, anda sempre assim, de fazer dó: os braços cheios de embrulhos, o paletó-saco poeirento, os cabelos grisalhos esvoaçando-lhe pelas orelhas, sob o chapéu de palha encardida.

- Sr. Brito, um vermute.

- Acho bom, doutor, acho bom.

Tem um pormenor impressionante no rosto: as sobrancelhas muito peludas, também grisalhas, como que enfarinhadas de cinza. São agressivas as suas sobrancelhas.

Na pessoa mansa do sr. Brito, esse ponto enérgico é único, isolado. Tirando as sobrancelhas, todo ele é doçura.

A pêndula do bar martelou seis horas. O sr. Brito, que ia engolir o vermute, teve uma indecisão, o cálice suspenso à boca.

Li nos seus olhos inquietos esta frase: "As meninas estão à minha espera".

Exatamente. O sr. Brito bebeu o gole e disse:

- As meninas estão à minha espera.

Ah! a minha feroz alegria! O sr. Brito é assim: um homem que eu, há tempos, venho surpreendendo, desvendando. Tomando posse da sua individualidade sem resistência. Estou a ponto de saber todo o sr. Brito. Há ocasiões em que, encontrando-o, digo para mim mesmo: "Ele vai falar-me de um artigo tremendo que saiu hoje contra o presidente da República na Vanguarda". É delicioso: o sr. Brito, depois de me apertar a mão, põe-se a conversar sobre vagas coisas e, de repente, como se obedecesse ao meu comando, pergunta:

- Leu hoje a Vanguarda? Que artigo tremendo! Que horror!

***

- Tome outro vermute, sr. Brito.

Sacudiu a cabeça que não.

- As meninas devem estar impacientes.

- E como vão elas?

- Assim, assim. O senhor é que não quis mais aparecer?

Ele pergunta isso sem o menor interesse oculto. Sabe perfeitamente que não pretendo me casar.

- Muito serviço, não calcula.

- Mas aos domingos, doutor! Uma vez ou outra! Dá-nos sempre muita honra e principalmente muito prazer.

- Obrigadinho, obrigadinho. Hei de aparecer. O senhor sabe que aprecio muito as suas meninas.

- Elas são boazinhas, isso é verdade. Gostam de se divertir, de dançar, de brincar. Não pensam na vida.

Não pensam na vida! Para os seus olhos de pai essas duas interessantes princesas de arrabalde não pensam na vida. E elas não pensam senão na vida! Tratam exclusivamente de suas preciosas pessoinhas, dos seus preciosos projetos de casamento, do seu precioso luxo que custa as lágrimas secretas do pai desconsolado.

- Faça favor, beba outro.

Aceita. E expõe o seu caso de hoje, o caso que eu há vinte minutos estou esperando, como um caçador mau, de emboscada:

- Não avalia as dificuldades que passei de ontem para cá! Imagine que era necessário arranjar um conto de réis e eu não encontrava agiota nenhum que quisesse emprestá-lo. Afinal, sempre convenci o Morais, aquele da Rua da Misericórdia, que por sinal todos os meses já me rói metade do ordenado. Esta vida, meu caro doutor!

- Sei o que ela é, sr. Brito. Eu também tenho os meus apertos.

O vermute o perturbou um pouco, predispondo-o para a confidência. Continuo insinuando a expansão, pelo meu ar atento, pelo meu todo solícito, pelas minhas frases curtas que deixam sempre uma ponta, para o sr. Brito emendá-la com o que tem no íntimo.

- As meninas morreriam de tristeza se eu não conseguisse nada.

- Ah!

- O senhor não sabe, são moças, querem se divertir.

- É natural!

- O carnaval faz todo mundo perder a cabeça. O senhor compreende: qual é o pai que numa ocasião destas não fará um sacrifício?

- Justo!

Pedi mais dois vermutes ao garção.

- Esses empréstimos abalam muito a bolsa de um homem, sr. Brito.

- Um horror. Nem fale.

- Mas obteve, então?

Toma um gole. Chupa os beiços, enxugando-os. E desabafando:

- Ah! felizmente!

- Meus parabéns sinceros.

Sorriu, feliz. Seus olhos, debaixo das sobrancelhas crespas e grisalhas, cintilaram contentes. As filhas morreriam de tristeza se não tivesse arranjado! Tomou outro gole.

Tive uma sensação inefável de haver ganho a tarde.

- Sr. Brito, há de me dar licença...

- Pois não, pois não!

Paguei a despesa, levantei-me. Ele bebeu o resto do cálice e levantou-se também, sobraçando os embrulhos. Senti que ia dizer-me qualquer coisa ainda sobre as meninas, sobre o carnaval, sobre aqueles embrulhos, sobre o empréstimo...

- Elas estão ansiosas. Está vendo isto? São as fantasias que já haviam escolhido na cidade. E caixas de lança-perfume. E confete.

- E serpentina.

- Tudo!

O sr. Brito, na sua ternura, ter-me-ia abraçado se não foram os embrulhos.

- Não sabe o que é ter duas filhas, dois anjos como eu tenho!

O bonde da Gávea parara para o assalto dos passageiros. O sr. Brito ia precipitar-se, mas uma ideia lhe fuzilou no cérebro:

- Não quer tomar parte no bloco das meninas?

Desta vez o sr. Brito me apanhara de surpresa. Não gostei. Aquilo me escapara.

- Ah! elas organizaram bloco este ano?

- Alugamos um autocaminhão. Elas se lembraram do senhor, mas tinham perdido o telefone da sua pensão. E eu ia me esquecendo, que cabeça! É o Bloco das Mimosas Borboletas. Então, vem?

O bonde partia, campainhando.

- Telefone para lá!

Falou isso correndo, querendo voltar a cabeça para mim e ao mesmo tempo preparar o pulo sobre o estribo. Pulou. Dependurado, com os embrulhos lhe atrapalhando os movimentos, era sublime o sr. Brito. E o bonde virou a esquina da Rua S. José, levando a meiguice, a ventura, o êxtase daquele pai. O Morais, da Rua da Misericórdia, estava na porta da "Brahma", torcendo os bigodes.

***

Devo tomar parte no Bloco das Mimosas Borboletas?

***

Quarta-feira de Cinzas eu entrava tranquilamente num café quando o sr. Brito surgiu, súbito. Quase nos abalroamos.

- Oh! sr. Brito! Vamos a um cafezinho?

Estendi-lhe o braço, procurando envolvê-lo pelo ombro. Ele tentou se esquivar, esboçando uma recusa frouxa. Insisti com veemência e ele entrou afinal, sombrio.

Observei-lhe que o laço da gravata estava desfeito. Teve um gesto nervoso, apalpando o colarinho e o peito da camisa, como se aquilo lhe tivesse feito lembrar qualquer coisa desagradável ou dolorosa.

Tive receio de pensar o que ele iria me dizer... Aquele desleixo na gravata era significativo. Eu sabia que era Lalá, a mais velha, quem lhe dava o nó, todas as manhãs. Ele ia dizer... Não, o sr. Brito dessa vez não disse nada.

Então puxei conversa.

- Divertiu-se muito no carnaval?

Deu de ombros, molemente, num desânimo de vida. E, puxando um cigarro de palha do fundo do bolso do paletó, fez-me com os dedos trêmulos o gesto de pedir fósforos.

Minutos escoaram-se. Não tínhamos assunto. Era mais prático nos despedirmos.

- Bem, sr. Brito, vou aos meus negócios.

Segurou-me pelo braço. Tive um choque. A revelação ia sair.

Passaram-se ainda uns momentos de silêncio. Perguntou-me, enfim:

- Por que não quis tomar parte no nosso bloco?

- Ora, sr. Brito, eu não sou carnavalesco. Acredite: não saí de casa os três dias.

- Pois lamentei, lamentei muito a sua ausência.

- Ora, por quê, sr. Brito?

- O senhor é um moço sério. Se o senhor tivesse vindo, olharia pelas minhas filhas.

Senti um susto e uma pérfida vontade de rir. Tive a impressão do ridículo e ao mesmo tempo de um vago drama palpitante. As sobrancelhas do sr. Brito, um instante fitas em mim, moviam-se agora, acompanhando um tique nervoso de piscar, indício de comoção.

- Muito agradecido pela confiança, sr. Brito. Porém, não sei se sou digno.

- Sei eu, sei eu.

Comecei a ficar impaciente.

- Que houve de extraordinário, sr. Brito?

- Imagine o senhor que ontem, último dia, como estivesse com os meus rins muito doloridos, não pude acompanhar as meninas no carro. Sabe, os meus rins...

- Sei, sr. Brito.

- O bloco era grande, umas trinta pessoas. Enfim, havia o Gomes, da minha repartição. O Gomes com a senhora. Fiquei tranquilo por esse lado e confiei-lhe as meninas. Sabe, os rapazes me pareciam distintos, mas nunca é bom confiar demais.

- Claro.

- Pois, meu caro, não lhe conto nada: até esta hora as meninas ainda não voltaram.

- Oh! sr. Brito!

- O Gomes está abatido. Diz que não sabe como é que elas lhe escaparam das vistas.

No rosto tranquilo do sr. Brito os olhos, sempre doces, faiscaram de dor. As sobrancelhas tremeram-lhe.

- É verdade o que me diz?

- Des-gra-ça-da-men-te!

Caiu-lhe a cabeça sobre o peito, no desconsolo da calamidade. Não tendo o que dizer (e já um pouco arrependido de não haver tomado parte no bloco, mas por motivos inconfessáveis), reuni todas as minhas cóleras contra aquele Gomes:

- Porém, sr. Brito, esse sujeito, esse Gomes, é um patife!

O sr. Brito fez com a cabeça que não, que o Gomes não era um patife. E disse devagar, com tristeza:

- A mulher dele também até agora não chegou em casa.

***

Íamos pela rua cheia de povo barulhento e feliz.

- Sr. Brito, cuidado com esse auto.

Atravessamos.

Eu tentava qualquer coisa em prol daquela dor:

- Sossegue. Elas dormiram com certeza em casa de amigas.

- Ninguém sabe delas.

- Paciência, sr. Brito, paciência. Talvez já estejam em casa, até.

Barafustamos por um telefone público. Esperamos um momento até que d. Candinha (irmã solteirona e velhusca do sr. Brito, que criara as meninas, sem mãe, desde cedo) atendeu do outro lado do fio.

- Elas já chegaram? - rompeu o sr. Brito, com a voz gritada e comovida, ansioso pela resposta.

Largou o fone no gancho, sem ânimo.

- Vamos embora, doutor. Não apareceram! Não há notícias.

E fomos para o Jornal do Brasil. No balcão da caixa o sr. Brito redigiu com letra trêmula o anúncio: "Um conto de réis - Gratifica-se com um conto de réis a quem der notícias positivas sobre o paradeiro de duas moças que anteontem, vestidas à século XVIII, tomaram parte no Bloco das Mimosas Borboletas, da Gávea. Dirigir-se à Rua República de Andorra, n. 7".

O sr. Brito pagou o anúncio e saímos.

Na rua teve uma ideia repentina:

- É verdade, onde vou eu buscar outro conto de réis?

E a sua doce pessoa crispou-se de angústia.

***

Ao nos despedirmos, ele se queixou de uma dor de cabeça. Parou um momento, levando a mão à testa. E, súbito, amontoou-se na calçada. Eu não tivera tempo de ampará-lo. Então, com esforço, suspendi aquela massa pesada. Pessoas que passavam me ajudaram. Estava morto.

Seu cadáver foi no automóvel da Assistência Pública para casa, depois das formalidades legais.

Acompanhei-o.

D. Candinha estava fazendo o jantar e veio ver quem batia, manca de reumatismo, limpando as mãos no avental. Espantou-se. Atrás dos óculos os olhos se esbugalhavam, sem compreender. Até que, como que se lembrando, deu um grito:

- As meninas! - e ergueu os braços exclamativos.

- É o sr. Brito, d. Candinha - intervim com calma -. Está doente. Muito doente.

- O Jocelino! Pobre Jocelino! Que foi que aconteceu pro Joselino!

E pôs-se a limpar os olhos com o avental sujo.

***

Entre as pessoas que velavam o cadáver, Gomes destacava-se por um ar digno de homem ferido no seu amor próprio. A mulher desaparecera definitivamente. Suspeitava-se de um estudante de Medicina, um certo Aristóteles, sergipano, um dos influentes do Bloco.

Havia quem apertasse a mão do Gomes, com comoção, apresentando-lhe condolências. Dava a impressão de um parente. A fuga da mulher estabelecia entre ele e o defunto um laço confuso de família.

Gomes agradecia, com um lenço sempre encostado ao rosto.

***

Pela madrugada entrou Cotinha, a filha mais moça.

Entrou pé ante pé. Ninguém lhe perguntou donde vinha nem por que vinha. Havia na sala apenas três ou quatro pessoas pobres da vizinhança, além de mim. Todas as demais - Gomes inclusive - se tinham retirado por volta da meia-noite. D. Candinha dormia lá dentro, numa cadeira de balanço da sala de jantar, vencida pelas agitações das últimas quarenta e oito horas.

Cotinha caminhou receosa para o meio da sala e atirou-se sobre o caixão. E chorou, chorou convulsivamente, como que se esvaziando a repelões.

Quando acabou de chorar, veio para onde eu estava, toda encolhida, como uma criminosa, de olhos inchados e vermelhos. Apertei-lhe a mão que me estendeu e ficamos em silêncio. Depois de uns minutos, como um sentimento surdo e talvez hostil nos impelisse a explicações, perguntei:

- E d. Lalá?

- Não sei. (Deu de ombros, espichando o beiço num muxoxo contrariado). Cada uma de nós foi para o seu lado.

Fiquei estarrecido.

- E a senhora do Gomes?

Disse que ignorava também o destino da outra. Formosíssimo! Eis o epílogo do Bloco das Mimosas Borboletas no carnaval de 1922 na muito leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro - pensei com os meus botões.

Depois Cotinha contou que soubera da morte do pai por acaso, porque passara de automóvel pela porta, "com um senhor"... E acrescentou, tímida, rompendo o pudor:

- O senhor com quem eu estou.

Tive um baque. Era possível? Um cinismo lavado de lágrimas, assim, era possível?

- Mas d. Cotinha: que bicho mordeu as senhoras, desse modo, de repente? Ficaram doidas?

Sacudiu os ombros, pondo as duas mãos nos olhos, como uma criança. E chorando de novo:

- É a vida... Que é que o senhor quer?

As outras pessoas da sala olhavam-nos, a cochichar entre si. Sem dúvida faziam mau juízo. Talvez pensassem até que era eu o comparsa de Cotinha.

Um cheiro de flores pisadas e cera errava, acre. Um sentimento pungente me dominava, abafando uma vaga, uma imprecisa sensação de sarcasmo. As oito velas ardiam silenciosas em torno do caixão do sr. Brito, que tinha um crucifixo de prata à cabeça. Eu não conseguira ainda, até aquele instante, definir o meu estado de alma. Parecia-me, profanamente, que qualquer coisa de cômico se insinuava por tudo aquilo. Quem sabe, talvez fosse engano meu, ruindade minha, tendência cruel do meu temperamento.

No fundo, eu estava zonzo com o que me rodeava: o sr. Brito, a filha que voltava, as pessoas pobres e parvas da vizinhança, as oito velas, o cheiro de flores pisadas, a ideia do cavalheiro com quem Cotinha passara de automóvel, a ideia de Lalá, a ideia de Aristóteles furtando a mulher do Gomes, a lembrança do anúncio que saíra de manhã no Jornal do Brasil, o ridículo do Bloco das Mimosas Borboletas - tudo aquilo ainda não recebera uma forma definitiva no meu espírito.

Cotinha merecia umas bofetadas?

O problema de saber se Cotinha merecia ou não umas bofetadas me invadiu, súbito. Fiquei a remoer essa inspiração, como se ela encerrasse um alto valor poético ou filosófico. Eram quatro da madrugada. Uma mulher levantou-se, em bico de pés. Um mulato de cavanhaque, a seguir, levantou-se também. Daí a um quarto de hora, Cotinha e eu estávamos sós.

Ficamos nós dois, longo tempo, calados, olhando o sr. Brito.

Por duas vezes Cotinha soluçou:

- Coitado do meu paizinho!

Por outras duas vezes suspirou:

- E Lalá que não sabe de nada! Que horror!

Claridades pálidas do dia nascente entraram vagarosas pelas janelas. Um torpor me tomou. Cotinha chorava agora encostada a mim.

O barulho de um bonde, que vinha vindo longe, me ergueu na cadeira. Cotinha encostou a cabeça ao espaldar, fatigada, humilhada, amarrotada, sem valor e sem destino, como uma pobre coisa.

Para vencer o torpor, tomei a deliberação de sair, de andar. Fui olhar então, de perto, o meu defunto amigo, o meu campo de observações e de conquistas psicológicas, o meu infeliz Jocelino de Brito e Sousa. O rosto estava calmo, como a sorrir. As sobrancelhas peludas continuavam agressivas, enérgicas, na fisionomia doce para todo o sempre. Aquela massa humana estava agora liberta de pensar no Morais da Rua da Misericórdia.

- D. Cotinha, até logo, à hora do enterro.

Ela veio até a porta da sala, que dava para uma área. Levantei a gola do paletó por causa do frio da madrugada.

Estendi a mão para Cotinha. Encarei-a com piedade e revolta: gordinha, morenota, um leve buço enegrecendo-lhe o lábio superior. E irresponsável, camaradinha, fácil, derrotada nas suas vaidades de princesa de arrabalde por aquele complicado drama de fuga e morte.

Olhando-me a fito, vi nos olhos dela a recordação da vida já antiga: o lar do sr. Brito, os domingos de visita ou passeio com outras pessoas que frequentavam a casa, os projetos ambiciosos de bons casamentos, o luxo, a comodidade quotidiana de uma situação de respeito e prazer. Agora, tudo acabado, para nunca mais!

Desabou a chorar sobre o meu ombro: que era muito infeliz, que ia sofrer muito, que não sabia como perdera a cabeça, que agora não havia remédio, que queria morrer também...

Consolei-a, como pude, segurando-a pelos pulsos. Dei-lhe o conselho de mandar procurar Lalá (ela devia suspeitar, pelo menos suspeitar onde estava a irmã) e despedi-me rápido.

A rua! A rua deserta, vazia, livre, para os meus passos e para o meu rumo! Corri por ali afora, corri para alcançar o bonde e para desentorpecer. E enquanto corria, levava a sensação de fugir a uma coisa fascinante e ameaçadora de que eu me libertava enfim... uma coisa suave e horrenda que não poderia mais acontecer na madrugada pura do arrabalde...