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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-i)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 93 a 104:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Baianinha

Naquela pensão da Praia do Flamengo o aparecimento de Zezé Flores produziu sensação.

Moravam ali uns senhores ocupados e gordos que à noite, em cadeiras de vime, ao longo da calçada, tomavam o fresco olhando passar os bondes. Havia também duas moças feias, velhuscas, funcionárias de um Ministério, que comiam silenciosas. E um médico mocetão, vermelho, sardento, carrancudo, com um jeito impertinente de exibir a esmeralda. Estava sempre a fazer concurso para a Saúde Pública e era todas as vezes desclassificado. Tinha ódio ao ministro, que não sabia da sua existência. E havia eu.

Eu, os senhores sabem, sou uma pessoa insignificante. Nunca me fiz notar por outra coisa além de uma timidez deplorável. Estava seguindo um curso particular de química industrial, porque meu pai, tendo empregado capitais na fabricação da aguarrás, queria fazer de mim o cérebro técnico dessa e outras proezas.

Zezé Flores chegou à pensão numa segunda-feira. O marido fora nomeado engenheiro da Inspetoria de Portos. Vinham de São Salvador, de mudança, com três pesadas malas de roupa e um acento baiano horroroso, em que os rr eram aspirados como os hh ingleses.

Era morena, miúda e flexível. Ao rir-se, a boca pequena e fina descobria dentes alvos, que sugeriam mordidelas gostosas em nacos de carne polpuda. Tinha atitudes imperativas, um olhar vitorioso quando encarava as pessoas. Usava vestidos de cores berrantes, amarelos de oca, vermelhos sangrentos de urucum.

Nessa primeira noite, quando Zezé Flores entrou na sala de jantar, toda verde como uma lagarta - a lagarta do dr. Maurício Flores, espadaúdo, escuro, cara quadrada, sobrancelhas espessas de piche - senti que Zezé Flores, fixando os olhos em mim, me revelava de súbito o segredo das infinitas submissões do homem.

As moças feias e funcionárias, mastigando o pão com movimentos exagerados de maxilas magras, espicharam olhos despeitados para o escândalo daquele verde - pedaço petulante de bandeira brasileira vestindo o moreno saboroso de um corpo macio0, sazonado ao sol de São Salvador.

O médico sardento pareceu-me, desde aquele instante, inspirar uma antipatia reta a Zezé Flores. Talvez em poucos momentos, naquela mesma tarde da chegada, ela houvesse percebido já as atenções que d. Eulália, com os seus quarenta anos imponentes, concentrava no quarto do doutor. Porque a todas as horas do dia ou da noite ouvia-se d. Eulália no corredor a perguntar às criadas:

- Pôs água no jarro do dr. Esperidião?

- Você varreu bem o quarto do dr. Esperidião?

- Ó Emília, quem foi que derramou um pingo de tinta na mesa do dr. Esperidião?

Não sei se foi por sentir, instintivamente, que o dr. Esperidião se erguia diante de mim como um rival desventurado e vingativo, o caso é que tive a impressão de observar na baianinha, desde logo, uma aversão indisfarçável por ele.

Zezé Flores ficou sendo na pensão, para toda gente - a baianinha. As criadas mesmo diziam entre elas: a baianinha. E eu próprio, conversando comigo, nos solilóquios melancólicos do amor que nascia, não a tratava senão por baianinha.

O marido tinha uma voz grossa, atrovoada. No começo, pouco falava à mesa. Tornou-se verboso, depois. O seu assunto predileto era o Estado de São Paulo, que não conhecia. No seu entender, o Estado de São Paulo era o parasita da República. Tudo era para São Paulo! Leis, defesa, auxílio, só para São Paulo! E os Estados do Norte que morressem à míngua!

O dr. Esperidião, esse, raramente conversava. Era de Sergipe e não gostava dos baianos. Em todo caso, como nem eu, nem as moças funcionárias, nem os senhores gordos do comércio opuséssemos nada à argumentação do dr. Maurício Flores, Esperidião irritava-se, ia se enchendo de contestações tácitas e afinal saía do seu silêncio para dizer uma simples frase:

- São Paulo marcha à frente do Brasil.

E voltava à casmurrice.

Havia um sussurro de aprovação. D. Eulália, cujo falecido esposo era campineiro, tinha entusiasmo por tudo que fosse paulista, armando às vezes conflitos por causa do futebol de São Paulo, "infinitamente, mas infinitamente superior ao carioca". Então, quando o dr. Esperidião defendia a terra paulista daquele jeito, numa síntese que irradiava convicções, ela sacudia a cabeça, cutucando o peito com o queixo onde havia dois fios de barba.

Os solteirões obesos, entre os quais se contava também um professor de inglês, acompanhavam, então, o gesto de d. Eulália, para lhe serem amigáveis. E, com um sorriso de bonomia experiente, setavam olhares de encoberta sensualidade para Zezé Flores.

D. Eulália, no fim de algumas semanas, verificou que o dr. Esperidião estava apaixonado pela baianinha. Fora notando nele certos modos, gestos, alterações de hábitos, num inquérito silencioso e tenaz, até obter a certeza.

Uma noite, como fizesse muito calor, eu quis tomar um banho frio ao voltar da rua. Passando em chinelos de corda pelo quarto do dr. Esperidião, ouvi cicios de conversa e cometi esta odiosa e excitante ação: espiei pelo buraco da fechadura. É claro: d. Eulália estava lá dentro, sentada na cama, com o rosto transformado pela ira. Gesticulava. O dr. Esperidião, em mangas de camisa, estendido ao longo do colchão, procurava ler um jornal, que ela lhe arrancava das mãos. Feriu-me a vista este pormenor: ele usava suspensórios vermelhos. Escutei:

- Eu ponho essa mulher para fora!

***

A baianinha empolgou-me. A iniciação do nosso amor foi simples.

O quarto dela era nos fundos do edifício, cujos compartimentos davam para um pátio com jardim. O chuveiro era no extremo do pátio. Sempre que eu passava, enfiado no roupão de banho, via Zezé costurando, numa cadeira de braços, entre os tinhorões dos canteiros.

Acanhado, eu cumprimentava.

Às vezes, o chuveiro estava ocupado. O professor de Inglês cantarolava lá, com uma voz estertorante de barítono gasto.

A princípio timidamente, fui tomando o hábito de parar junto de Zezé Flores antes de ir para a ducha. Como sentisse nela uma ironia maliciosa que zombava do meu acanhamento, animei-me aos poucos. Passamos a conversar coisas picantes.

Ela gostava de frases:

- O déstino de uma molér bonita é o amorr. Não é nãão?

Essa literatura avançada ficava chocante na sua boca provinciana de baianinha. Em todo caso, que fazer? Um dia beijei-a.

Não teve o menos susto. Lambeu a boca, como que recolhendo o beijo e continuou a conversa, muito calma.

Olhei para trás, com o terror de que houvessem visto: à janela de um quarto havia o gato da casa, que dormia ao sol. Uma abelha zumbia em torno de uma flor, quase no meu nariz.

Corri ao chuveiro para isolar-me, para pôr de novo as ideias em ordem, porque o meu instintivo rompante me abalara as fibras, agora desmanchadas pela comoção.

***

Os hóspedes notaram em mim qualquer mudança. Evidentemente. Talvez eu andasse com um ar mais resoluto. Ou talvez mais tímido e desconfiado. Não sei.

O dr. Esperidião - atrapalhado com os pontos de um novo concurso na Saúde Pública - passou a odiar-me. Tive o pressentimento de que ia surgir uma denúncia anônima e comuniquei os meus receios a Zezé, uma tarde, num cinema da Rua da Carioca, que frequentávamos às escondidas.

- Tenha medo nãão.

O seu "nãão", obrigatório em quase todos os finais de frase, tinha uma sonoridade longa e profunda. Meu secreto encantamento embarcava naquele "nãão" como para um voo rápido ao infinito.

D. Eulália pôs-se a tratar Zezé Flores com desprezo. Deixava o quarto do casal por fazer, até tarde do dia. À mesa, esquecia-se de servir a baianinha.

Eu, humilde, fingia não perceber nada.

E um domingo, como pedisse canja e d. Eulália respondesse, com sequidão, que não havia mais, Zezé levantou-se da mesa:

- Maurício, eu não almoço nãão.

O dr. Flores, surpreso, olhou-a sem compreender.

- Levanta. Vamos a um réstaurante.

Atirou com o guardanapo e saiu.

No mesmo dia mudaram-se para um hotel. Na semana seguinte estavam instalados numa casa em Copacabana, junto do morro.

***

No Flamengo o ambiente continuou carregado por muitos dias. D. Eulália, por indiretas, atacava a baianinha.

- Ando muito cansada desta vida de pensão. Encontra-se gente boa, mas também se encontra muita gente ordinária.

Teve a audácia de perguntar-me, tempos depois:

- Tem visto a baianinha? Aquilo é coisa muito à toa, já me informaram. Enfim, eu não podia saber. Ela não trazia letreiro na testa.

Esperidião resistia aos projetos conjugais de d. Eulália. Isso a irritava contra Zezé, como se Zezé, ainda que ausente agora, tivesse culpa de acender os sentidos do sergipano. Eu sabia o que se passava entre os dois porque...

Há infâmias deliciosas. Sim, porque os espiava.

Espiava-os quase todas as noites. Vingava-me assim de terem humilhado a baianinha e privado a mim da sua encantadora presença, a sua presença absorvente.

À noite, quando eu enxergava luz no quarto de Esperidião, punha um olho na fechadura.

E assistia às brigas dos dois.

Às vezes d. Eulália parecia sossegada, conversava com calma. Esperidião estava sempre em mangas de camisa esticado na cama e tinha aqueles suspensórios vermelhos. (Eu jurava para mim, não sei por quê, serem presente de d. Eulália).

Colocando o ouvido na porta percebia tudo. Ela queria vender a pensão e montar uma casa em Santa Teresa, onde alugaria dois ou três quartos para estrangeiros de luxo. Viveriam como casados.

- E tua filha?

Era sempre a objeção dele.

A filha de d. Eulália era uma mocinha de quatorze anos, que vivia internada num colégio de Petrópolis. Aquela filha salvava-o.

- Você continuará um hóspede como os outros.

Ele insistia, suplicante:

- Dá na vista, Eulália...

Esperidião descobrira, ultimamente, numa festa a bordo do Minas Gerais, que o senador Joaquim da Rocha, de Sergipe, tinha uma filha soleira, enjoadinha e rica. A Providência Divina preparara este acaso maravilhoso: o professor de Inglês dava aulas a ela. E Esperidião, que dantes o tratava de carranca fechada, passara agora a convidá-lo a fazer o quilo pela praia, depois do jantar. Oferecia-lhe charutos.

O senador Joaquim da Rocha era íntimo do presidente da República.

Ele queria vencer. Havia de mostrar ao ministro!

***

Mudei-me. Santa Teresa acolheu no encanto discreto das suas ruas o passeante solitário das tardes de verão.

D. Serafina, minha nova dona de casa, respondera à consulta inicial, balbuciada e tímida:

- Sendo uma p'ssoa só, consinto. Escândalos não quero.

A Rua do Curvelo é própria para os amores furtivos. Passam alguns estrangeiros que por ali moram. Passam, raros, os vendedores de fruta. E apenas à tarde surge dos portões a garotada plebeia dos cortiços, em algazarra.

Nos nossos dias, a baianinha chegava logo depois do almoço, muito leve e flexível, a passo rápido. Antes de bater, já a porta se abria para ela. Em pijama, eu dava-lhe o beijo da chegada. E fechava a porta de novo.

Meu pai continuava acreditando nas minhas aptidões para a química industrial.

***

Os trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Engenharia Hidráulica eram à noite. Flores não faltava. Representava pontualmente o Estado da Bahia.

Por isso Zezé marcava agora encontros na Praia do Leblon. Ali, num recanto selvagem, diante do mar em fúria, ficávamos quartos de hora perfeitos, numa felicidade harmoniosa. Uma mulher tão pequena, mas tão forte! Seus braços me apertavam como cordas que me amarrassem.

- Espere, você queima o rosto - eu dizia - Não faça assim. Olhe o rosto, você se queima.

Tirava-me o cigarro, jogava-o longe. Queria-me completamente absorvido nela. Que fazer?

Uma vez meu susto foi enorme vendo aproximar-se um sujeito. Vinha devagar, como quem está na certeza calma de encontrar uma pessoa procurada. Meu coração batia forte. Por instinto, apalpei uma pedra que estava a meu lado: era a minha única arma de morte.

Se ele me desse um tiro?

Zezé Flores, adivinhando o meu terror, disse a sua frase predileta:

- Tenha medo nãão.

Bem. E agora? o sujeito vinha diretamente para nós: o dr. Esperidião.

Passou. Zezé abafou um risinho de escárnio. Tomou da minha mão a pedra e perguntou-me ao ouvido:

- Atiro?

***

Gelado, ouvi a chave girar na fechadura da porta da rua.

Zezé deu um salto na cama. Um pensamento fulminou-me:

- A viagem foi apenas um plano!

Zezé abriu depressa a janela, jogou-me nos braços a roupa e o chapéu e empurrou-me:

- Quando ele entrar, salte por aí.

A sacada podia ter uns dois metros. Embaixo um gramado estendia-se, ao luar. O pulo era fácil.

Sentindo os passos do marido dentro da casa, ela fechou a janela atrás de mim. Na vizinhança, as casas, a pequena distância, estavam escuras, adormecidas. Escutava-se apenas o barulho do mar.

Vi-me entregue ao acaso de uma cilada. Podia haver assassinos pagos pelo Flores, à minha espreita.

Fiquei espremido naquela sacada, a cavalo na grade. Um instinto de coragem agonizante levou-me a ficar à escuta, abaixado. Ela podia precisar do meu socorro. Pobre baianinha!

Que era aquilo?

Parecia uma invasão de soldados bêbedos num palácio inimigo, em praça vencida. Flores derrubava móveis, atirava cadeiras, cambalhotava as mesas, partia os espelhos. Tiniam louças estilhaçadas, garrafas, copos. Um estouro anunciou-me que a estatueta de bronze da étagère fora atirada ao chão. Nossa Senhora! Ele ia matar a baianinha.

Se eu entrasse de novo?

Seria a confissão irreparável: eu estava descomposto, com as roupas na mão. Não podia entrar. Ficaria. Ficando, Zezé seria capaz de convencer o marido. E banhou-me um fluído quente e confiança no talento daquela mulherzinha. Ela o convenceria!

Essa certeza fez-me perder o medo. Esqueci que podia haver assassinos de emboscada. O luar espalhava no mar as suas faiscações de prata.

- Está louco? Está louco?

A voz da baianinha vibrava.

- Canalha! Eu mato esse homem! Onde está? (A voz de trovoada).

- Que homem, seu idiota? - gritava ela mais forte, com uma energia aguda.

Uma chuva de sons cristalinos... O lustre da sala de jantar fora partido. Devia ter sido a golpes de bengala. Instintivamente, imaginei o que seria aquela bengala partindo-me a cabeça.

Ouvi então Zezé guinchar uma coisa suprema:

- Fique quieto!

A frase pareceu-me de um insondável prestígio na sua simplicidade imperativa.

- Eu mato!

- Pois mate! Matar a quem? Você ficou idiota? Que significa isto? Quebre à vontade, porque o prejuízo é seu.

E ele não vinha até o quarto!

Eu esperava o momento em que Flores fosse procurar-me atrás das cortinas, ou dentro dos armários. Como não parava de gritar, saberia da sua aproximação e podia pular no gramado. Entretanto, Flores se limitava aos berros e a quebrar tudo que havia na sala de jantar.

Senti-me cheio de uma ampla coragem.

- Eu sei que um homem entrou aqui!

Avançou, nesse instante, para o quarto de dormir. Dispus-me a dar o salto surdo. A voz da baianinha chumbou-me ao lugar:

- Veja aí! Procure embaixo da cama! Abra o guarda-roupa! Imbécil! Não está satisfeito nãão? Acordar-me com esse escândalo!

Zezé daquele vez não seria assassinada. Era evidente.

Escutei uma risadinha irônica:

- Bobo! Amanhã tem que comprar tudo novo.

Ele parara.

- Mas como se explica isso, Maurício?

Tive a impressão de que ela o estava enlaçando pelo pescoço. Senti um ciúme desesperado.

- Bobo! Só faltou abrir a janela e dar tiros. Ainda é tempo. Ande! Não espere não!

Aí, puf! caí na relva. Fugi pelo quintal com o chapéu e a roupa nos braços. Na disparada, dei com a testa num arame de varal. Ao choque, cambaleei. Continuei correndo e saltei o muro. Estava no morro.

Ofegando, parei.

Embaixo, na claridade da lua, a casa dormia quieta, com o ar feliz dos bangalôs de beira-mar.

- Baianinha dos diabos! - murmurei com ternura e alívio.

Entretanto, um ciúme, que eu procurava esconder a mim próprio, picava agora a minha gratidão.

Estariam reconciliados?

***

Foi a mania de meu pai que perdeu Zezé naquela noite. O dr. Flores sossegara, estava já convencido de que a carta anônima fora uma infâmia e que a velha, posta ali na praia para espiar se algum homem entrava, mentira e furtara-lhe o dinheiro. No entanto, a American Review of Chemistry, que eu esquecera no criado-mudo, denunciou irrecusavelmente a presença de um terceiro.

Então o espelho do guarda-casaca foi sacrificado.

Zezé ainda explicou: tivera curiosidade de ler aquela revista; passando à tarde pelo Boffoni para comprar uns figurinos, apetecera-lhe aquilo.

- Em inglês? Que é que você entende de inglês, infame?

O dr. Flores ficou convencido de que a mulher o traíra com um inglês, ou norte-americano. Um engenheiro norte-americano, talvez. Um colega! E a ideia de que esse colega estrangeiro o conhecia, zombava dele ao passar, ou lhe apertava a mão com ironia, desesperava-o.

Meu pai foi o culpado. Nas suas cartas - ainda na última, recebida naquela tarde - me recomendava que eu não deixasse de ler todos os números da American Review of Chemistry. Na sua opinião, "um químico-industrial que se preza e que pretende ser alguma coisa na sua carreira, não pode prescindir dessa excelente, substanciosa revista. Ali vem tudo, meu filho".

Eu comprara aquele número. Andara com ele pelos bondes, pelos cafés, como quem é portador de uma preciosidade. Apenas não conseguia ler dez linhas de artigo nenhum.

Como tirar a ilusão de meu pai?

***

Eu chegara em casa cerca de duas da manhã. Preparava-me para dormir, aliviado por me ver escapo daquela, ao mesmo tempo inquieto pelo rumo que tomara o meu caso de amor, quando bateram na janela. O coração pulsou-me violento. Seria o Flores? A baianinha teria confessado tudo? Espiei pelas frestas da veneziana: Zezé.

- Que é isso?

Eu estava aturdido. Que desgraça!

- Que significa isso?

- Filhinho, abre a porta. 'Ta esperando o quê?

Zonzo, fui abrir a porta.

A baianinha entrou, o cabelo coberto de um gorro de veludo, o corpo macio enrolado num mantô quente como um seio.

Beijou-me.

Apoderou-se do meu quarto, como nas tardes afetuosas. Foi para o espelho e, arrancando o gorro, apareceu linda no quadro iluminado: o cabelo um pouco desfeito, o rosto afogueado, mas o ar tranquilo de quem chega de um passeio.

Caí sobre a cama, num desânimo de homem castigado. Apoiei a cabeça no braço, escondendo o rosto. Muito bem... desta vez eu estava perdido...

Ela chegou-se a mim:

- Que é isso, filhinho?

Ergui uns olhos turvos de lágrimas.

Zezé soltou a sua risadinha voluptuosa e irônica:

- Tenha medo nãão...