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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-H)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 73 a 92:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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A Ponta de Cigarro

 

I

23 de fevereiro

 

Marcela, minha querida

Tua carta veio alegrar-me. Imagina: chovia desde manhã. Eu passara o dia inteiro a ler L"Uragano, um delicioso livro de Gino Rocca, um rapaz que deve ser mau e ser belo. Já disse, o livro é delicioso. Mas, não sei por que, estava enervada. Talvez mesmo por isso - e pela chuva. Eis que a campainha retine. Digo à criada: "Joana, vai ver quem bate. É estranho. Não espero visitas com essa chuva". Joana é portuguesa. Com aquele timbre adorável, aquele timbre cantante das portuguesas do Norte, disse esta coisa inteligente: "Deve ser o carteiro, minha senhora". Era o carteiro. Era a tua carta. Obrigada. Estava já sentindo uma tão grande falta de ti! Pensei que São Paulo te fizesse esquecer-me, pelo menos na primeira semana.

Pois novidades não tenho. Continuo entediada, vazia.

Mandei empapelar de vermelho a minha saleta. É uma novidade?

Li numa revista uma série de sonetos de uma poetisa sobre o seguinte programa: a rosa, o cravo, o jasmim, a camélia e o girassol. Como vês, nós, mulheres, aqui pelo Brasil, continuamos muito mal representadas na poesia. O costume é "fazer versos sobre isto", "fazer versos sobre aquilo", exatamente como acontece com os homens... Uma lástima. Será também uma novidade?

Álvaro passa bem. Deve passar bem. Deve passar mesmo admiravelmente bem. Sai pela manhã, não vem almoçar, janta friamente, torna a sair, vem à meia-noite para dormir. Sexto mês de casamento. Lindo, não?

Tu, que fazes coleção de tipos de marido - compreenda-se: fazer coleção nesse álbum de caricaturas que é a tua adorável conversa -, tens já o Álvaro anotado. Talvez te falte, porém, este pormenor no perfil: de uma semana para cá deixou de pedir-me as coisas com bons modos. Se quer um objeto, faz um sinal com a cabeça, como que jogando o nariz para o ar. E eu que adivinhe. Se lhe aparece um leve rasgão nas meias que estendo sobre a cômoda, no quarto de vestir, vem chamar-me e mostra aquilo com uma interrogação nas sobrancelhas franzidas. Não é igualmente lindo? Lindíssimo.

Está um pouco longa esta carta. Vês, no entanto, que ela não tem o desagradável tom da lamúria. Não me queixo. Apenas conto um caso. Não quero, porém, deixar de dizer-te ainda que esta vida seca, de má vontade, foi para mim uma desilusão bem dura. Quando daqui saíste, há oito dias, está visto que o Álvaro não era diferente. Mas eu nunca me quis queixar. O que sabes dele, do nosso modo de existência, é pelos teus próprios olhos - e pelo instinto que nós temos de perceber no ambiente, como um cheiro, a falsa felicidade das outras mulheres. Do que talvez não soubesses era daquele pormenor, que eu considero da máxima importância: a abolição das pequenas delicadezas. Significativo, hein? Bastante. Pois começou nesta última semana. Que me reservará a semana vindoura?

E seis meses de matrimônio...

Não te cases, pequena.

Tua

Carlota.

II

2 de março

 

Marcela

Tiveste uma percepção aguda do meu estado de alma. Eu te falava da minha saleta empapelada de vermelho, dos maus poetas de ambos os sexos... Curioso! Como é que se pode sorrir com lágrimas nos olhos? Porque, não tenhas dúvidas, eu chorava mesmo. Adivinhaste. Dou-te um beijo, minha amiga. Desculpa se a paga é mesquinha. os meus beijos não valem nada, de acordo com a cotação aqui da casa...

Os teus conselhos, Marcela, são inúteis. O que me mandas fazer, já fiz, sempre fiz. Queres uma esposa mais dedicada que eu? Sabes que dentro deste peito o coração bate há quatro anos pelo Álvaro! Ele nunca foi expansivo comigo. Mas nunca deixou de ser carinhoso. Eu esperava torná-lo melhor, mais amigo, mais íntimo, depois do casamento. Esperava. No entanto, assisto, espantada, a uma congelação diária daquele carinho de outrora. Se ele não gostava de mim, por que se casou? Não acredito que fosse pelo meu dinheiro. Ele está numa carreira de futuro. Ainda agora, soube, aliás pelos jornais, que vai entrar para a Academia de Medicina. imagina, pelos jornais! Não me disse nada. Ora, um médico com trinta anos, fazendo parte da Academia de Medicina, tem a sua carreira mais do que feita. Portanto, não foram os meus magros cobres que o tentaram. Havia outras mais ricas que o pretendiam.

O caso do Álvaro, minha querida, é muito mais simples. És uma menina solteira, mas não nenhuma tola com os teus vinte anos mais do que sabidões... Álvaro tem amante. Se tem! Não pode ser outro o motivo. Aos seis meses de casado, qual é o homem que se porta da maneira por que ele se porta comigo? Incrível! E o pior é que deve amar essa mulher, ela deve encher-lhe o pensamento, perturbá-lo, absorvê-lo a ponto de ele fazer-me sofrer até a humilhação de indelicadezas de trato. Eis-me, pois, numa invejável situação. Amo um bonito rapaz três anos  e meio. Caso-me com ele. Dentro de pouco tempo sinto que meu marido tem outra mulher. Ah! não sei o que faça! Não sei absolutamente o que faça! Segui-lo? Descobrir quem é ela e armar cenas teatrais em casa, depois da prova? De qualquer modo, minha felicidade está falhada.

Minha pobre Marcela, tão desesperada por não poderes consolar-me: minha felicidade está falhada. É horrível. A princípio a gente não crê: olha em torno, vê os objetos no lugar e não crê. Depois... olha... é isto... este inútil choro...

Carlota.

III

10 de março

 

Marcelinha, meu bem

Desculpa-me se sou breve. Recebi tua carta. Agradeço-te tudo, tudo, tudo. Pois pensa, meu benzinho, pensa num meio de me salvares. Em que poderás pensar, no entanto? Vinte anos, uma cabeça estouvada, uma alegria doida a encher as tuas horas... Olha, não sou mais longa porque já ouvi os passos de Álvaro que chegou. Hoje de manhã ele me deu um beijo quando saiu. Meu coração está pulando de esperança. Talvez voltasse carinhoso. Ouço os passos dele na direção da saleta.

..........................................................................................................

Dez horas da noite. Como sou infeliz! E não devia mandar-te o começo desta carta. Mas vai a título de documento. Imagina: o Álvaro veio interromper a carta, não para beijar-me, como pela manhã; não para dar-me um boa tarde amável, para fazer-me um carinho; mas apenas para dizer-me que devia embarcar às 9 horas para São Paulo. Não me levava por tratar-se de uma viagem curta: quatro dias... Ia ver um doente.

Marcela, estou tão desolada, tão lacrimosa, tão frouxa, tão pequena, tão infeliz, que gostaria de morrer. Parece que sou um grão de areia. Se um vento me soprasse, desapareceria, dispersa... Que fazer no meio da desgraça que vai crescendo à roda de mim? Ah! por que me daria Deus esta incapacidade de reação, esta calma resignada, diante do mal? Se eu fosse um pouco à Francisca Bertini... (N. E.: atriz italiana do cinema mudo, nasceu em 1888 ou 1892 e faleceu em 1985. Famosa pela personalidade elegante e de intenso charme) Aí seria fácil, talvez. Álvaro acabaria vencido pelo escandaloso, pelo dramático, pelo gritante das minhas atitudes. Mas, Deus me deu esta desgraçada doçura de pássaro ferido...

Carlota.

IV

14 de março

 

Meu bem

Joana veio acordar-me com a tua carta. Eram dez horas da manhã. Eu passara a noite chorando. Estava fatigada. Já o sol entrava pela janela, filtrado pela cortina. Faltava aquele raiozinho que ele me manda sempre via São Paulo...

Vês? Estou melhor. Tua carta, chegando assim depois de um repouso prolongado, tornou risonho o meu amanhecer.

Tolinha! Julgas ter encontrado o meio de me fazeres feliz. Já estás então de posse dele? Hum! Que coisa rara?

Álvaro chega hoje à noite. Faz quatro dias que partiu. Olhei-me agora no espelho. Estou bonita. Deixa lá que a minha rival não deve levar uma vantagem muito grande sobre mim...

Beijos da tua

Carlotinha.

V

15 de março

 

Marcela

Álvaro não chegou ontem à noite, como devia. Telegrafou-me. Demora-se mais três dias. O "doente" piorou. Vê como a tua Carlota sofre! Manda logo o remédio - o tal "remédio tiro e queda" para o meu grande desastre...

Não tenho com quem aconselhar-me. Deus me livre de certas amigas que intimamente desejam ver-me infeliz! Olha, meu anjo de vinte anos, talvez seja um santo qualquer que te haja inspirado...

Dizes, entretanto, que o teu "tiro e queda" pode ferir a minha sensibilidade... Por quê? Certa como estou de que não deve ser nenhuma barbaridade, como é que me vou ofender? Dize logo o que é! Talvez um santo te inspirasse mesmo...

Ansiosa, tua

Carlota.

VI

16 de março

 

Marcela

Tua carta chegou às quatro hras da tarde. Álvaro às sete.

Ainda estou sob o espanto do "remédio tiro e queda" que me aconselhas... Aonde foste buscar aquela ideia? Extraordinária!

Adeus. São oito. Joana vem dizer-me que o jantar está na mesa. O homenzinho chegou com a mesma simplicidade de quem foi ali a Cascadura e voltou dentro de duas horas.

Lolota.

VII

17 de março

 

Marcelinha

Minha vida não pode continuar assim. Ele sai de manhã e entra à noite sem dar-me a menor importância. Tens razão: é porque está certo do meu amor e da minha fidelidade. Arre! É demais. É mesmo demais!

Recebi ontem carta de mamãe, de Lausana. Mandou-me um retrato dela com papai. Diz que a minha lua de mel devia ter sido na Suíça. Que a Suíça está adorável. Pobre mamãe! Se ela soubesse do que vai por aqui...

Carlota.

VIII

22 de março

 

Meu amor

Simplesmente o divórcio. Estou à beira do divórcio. Imagina o cômico da situação!

A cena foi ontem à noite. Eu não tinha coragem. Mas o teu cartão, com aquele delicioso "Ou a comédia, ou a morte!", decidiu-me a tudo.

Era meia-noite quando Álvaro entrou. Entrou devagar, macio, como de costume. Despiu-se, senti que vestia o chambre e foi tomar um banho. "Talvez não veja nada!", pensei. Eu, muito encolhida nas cobertas, esperava o estalar da tormenta. A tormenta estalou quando ele foi buscar um livro na minha saleta. Da cama, parecia-me vê-lo: parou surpreso diante da mesa do centro, onde a ponta de cigarro, entre a cinza solta, dormia. Ficou uns dez minutos, mais ou menos, sem dar um passo, sem mexer numa coisa. Quanto eu daria para ver-lhe a cara! Depois, pôs-se a andar de um lado para outro. Andou, andou, andou. Meu coração batia. Eu suave. Afinal, ele caminhou para o quarto. O coração queria rebentar. Arrependi-me do que fizera. Tive a ideia de saltar da cama e ir ao encontro do pobre Álvaro a exclamar: "Perdoa! Foi tudo uma brincadeira!" Antes, porém, que eu me resolvesse, ele já estava no quarto, a trocar o chambre pelo pijama. Deitou-se. O seu contato quente deu-me a impressão de que ia estrangular-me. Ia... oh! ia estrangular-me. Passaram-se cinco, dez, quinze minutos. Nem uma palavra. Voltei-me na cama, pigarreando. Ele disse baixinho: - "Carlota?" Não respondi. Tornou: -" Estás dormindo?" Tive vontade de rir e de dizer-lhe com voz muito clara: - "Estou". Mas, tomara gosto pela comédia e murmurei um vago "Que é?", com essa voz grossa, embrulhada, de quem está meio no outro mundo, meio neste. Lentamente, abri os olhos. os dele estavam fixos em mim, menos com severidade que com espanto. Palavra, Marcela, era espanto. A mesma expressão de quem, por exemplo, visse um gato voando. Estranho! Não houvera aquela explosão tempestuosa, aquela tragédia que chamaste "o antídoto violento". Meu marido parecia curioso de mim, ao verificar que na minha saleta, durante a ausência, estivera um homem a fumar, sabendo perfeitamente que não recebo visitas. Passados uns momentos, diz-me ele, sempre com a expressão de surpresa no olhar, um olhar sem o menor ciúme:

- Lolota, quem é que esteve à noite aqui?

- Ninguém.

- Como ninguém?

- Ninguém.

- Faze o favor. Levanta-te.

Aí tomou-me pelo pulso, apertando-o, magoando-o. (Eu cantava dentro de mim, cantava!) Assim agarrada à bruta, fui até a saleta:

- Que ponta de cigarro é esta?

Sorri. Não pude representar a cena que me prescreveste: o enleio, a confusão... Nada. Não pude deixar de sorrir. Pois o tolo, ao invés de compreender o meu sorriso, o meu claro, nítido sorriso, perguntou, como começo da tormenta ansiosamente esperada:

- Ainda sorris/

Então, com uma tranquilidade perfeita, respondi:

- Tive vontade de fumar.

Aproximou-se do cinzeiro, curvou-se, examinou a marca do cigarro:

- Onde é que obtiveste este cigarro? Não são dos que eu fumo.

- Não.

- Onde os obtiveste?

- Mandei comprar.

- Onde estão os ouros?

- Pus fora. Tive enjoo.

Como vês, eu falava a pura, cristalina verdade. Comprara aquele maço de cigarros, fumara um, tivera enjoo, pusera os outros fora... Álvaro encarou-me de perto, com ódio - oh! aquela deliciosa expressão de ódio! - e reprimiu o gesto de agarrar-me ao pescoço.

- Desgraçada!

Aí, a minha pena dele foi tão grande que, para não gritar-lhe toda a verdade, caí numa cadeira chorando. Ele interpretou o choro como uma confissão e foi pior. Então, insultou-me. Insultou-me com baixezas gostosas, gostosas como beijos...

- ... e eis aí a que está reduzida aquela pureza antiga, aquela educação que recebeste, os compromissos que tomaste perante a lei, perante o altar e perante mim! Parece um sonho. Uma mulher como tu, Carlota! Não! Não! É um sonho! Se eu te matasse, hein?

Veio para mim com as lágrimas rolando-lhe pelo rosto e um ar horroroso de matador. A minha delícia era tanta que deixei cair a cabeça para um lado, como que oferecendo o pescoço... Ao mesmo tempo, defendia-me com a frouxidão de nervos que me dava o gozo:

- Mas estás louco, Álvaro. Juro-te que fui eu mesma que fumei. Juro-te por minha mãe.

Ele parou de golpe.

- Está acabado. Não sou idiota. Sou um homem de ciência, absorvido por estudos, de que nunca fizeste uma ideia, mas tenho os meus olhos abertos. Era preciso que eu fosse de fato idiota, muito idiota, para não ver aqui, em toda a sua brutalidade, a prova horrível, horrível, da traição.

Então, no calor da cena, aproveitei-me para aliviar o sentimento. Falei-lhe daquela frieza cada dia maior; da minha desilusão; da frustrada esperança de fazê-lo mais expansivo, de tornar o seu acanhado carinho de noivo mais íntimo, mais amigo; da tristeza em que eu passava os dias, só à mesa, só durante todas as horas e só, verdadeiramente só, à noite... Então essa era uma vida de casados com sete meses apenas? Desabafei, desabafei à vontade. Disse tudo que tinha aqui guardado. Só não toquei na amante, para ele não desconfiar de que aquilo era uma comédia inspirada pelo meu instinto de revanche...

- Então confessas que me traíste? - disse ele por fim.

- Já te jurei e torno a jurar diante de Deus que não.

E sorri...

Rangeu os dentes. Abriu a janela. Respirou com força o ar da praia. Ficou um momento olhando a noite. Depois, foi ao quarto de vestir e voltou daí a dez minutos, pronto para sair. Tinha as feições alteradas. Chorara mais lá dentro.

- Aonde vais?

- Desgraçada de ti... Desgraçadinha... E eu que sonhara tanta coisa... A trabalhar, a trabalhar, preocupado com os meus estudos, as minhas pesquisas, o meu laboratório...

- Aonde vais?

- Não sei. Amanhã conversaremos. Amanhã combinaremos o divórcio.

- Vem cá!

Não me atendeu. Estava no jardim. Tive outra vez o ímpeto de contar-lhe tudo... Fui à janela.

Ele atravessava o portão naquele instante. Senti um frio no peito: reparei então que estava em camisa de dormir, o peito exposto ao vento. Recuei, dominei o desejo de confissão e fechei a janela. Caí chorando de novo na cadeira. Chorando de pena e de alegria...

É horrível o que te vou confessar, mas é verdade: dormi bem.

Às sete horas da manhã a Joana veio bater à porta chamando-me par ao banho. Mandei que ela entrasse.

- Joana, vieram buscar o doutor á meia-noite para ver um doente. Você sabe se ele já entrou?

Joana ficou enleada, tímida, e respondeu baixinho, como se tivesse percebido tudo a contragosto:

- Senhora patroa, o senhor doutor eu senti quando entrou às duas horas da manhã. Está a dormir todo vestido no divã da sala.

Dormira na sala de visitas sem eu saber! Fui vê-lo, pé ante pé: ainda dormia. Custou-me não dar-lhe um beijo. Pobre! Estava pálido, desfeito. Enfim, Marcela, era preciso. O "tiro e queda " era forte, mas eu não podia dispensar o efeito, custasse o que custasse...

Bem. Às nove horas ele apareceu no jardim, já banhado, toalete feita. Eu cuidava das roseiras.

- Minha senhora, devo escrever hoje a seus pais comunicando-lhes os fatos.

Tive um assomo de energia sincera:

- Seu tolo, já jurei por tudo que era possível que estou inocente.

Teve uma contração de impaciência e acrescentou, dando meia volta:

- No almoço mostrar-lhe-ei a cara.

E aí está, Marcela, tintim por tintim, o que se passou ontem à noite e o que se passou esta manhã... Dizer-se que há uma chispa de gênio nessa tua cabecinha de vinte anos!

Sinto-me a caminho da felicidade... Em outras palavras, estou à beira do divórcio. Portanto, meu marido ama-me. Abençoada Marcelinha!

Olha, meu anjo, no almoço vou ouvir a carta fatal. Mandar-te-ei contar tudo.

Os teus vinte anos sabidões... Eu, mais velha, sou uma tola.

Minha rosa em botão, beija-te a

Lolota.

IX

23 de março

 

Marcela querida

Não era preciso que me telegrafasses ao receber a minha longa carta. E que telegrama complicado, feito à maneira de charada, para salvar a discrição do caso aos olhos dos funcionários dos Telégrafos! O que me admira é que tu, a cabecinha estouvada, além de teres aquela ideia maravilhosa, hajas tomado tal interesse pelo meu caso. Marcelinha, tu prometes, meu amor.

Vamos ao nosso caso: ontem, à hora do almoço, veio ele com a carta. Não se sentou.

- Não almoças?

- Não.

- Ora, Álvaro, deixa-te disso. Come. Passaste a noite mal. Enfraqueces...

Olhou-me com raiva. Ao mesmo tempo, o meu cinismo excitava-o...

Puxou do bolso a carta. Assim que principiou a ler, estendi a mão, impedindo:

- Não quero saber dessa bobagem. Estás doente.

Deu um soco na mesa, que me assustou.

- Agora pretendes quebrar os copos?

À proporção que o caso crescia, minha volúpia era mais felina e minha habilidade mais aguda e sinuosa...

- Pois bem, mandarei a carta sem lê-la. Era um gesto de lealdade de minha parte. Desde que não aceitas, pior.

Fui tranquila, forte, sublime:

- Álvaro, deixa-te de tolice. Não vás agora perturbar papai e mamãe na Europa. Seria horrível.

A minha calma era pavorosa. O homem ficou pálido como cera.

- Então, que queres que eu faça? Qual deve ser a minha atitude?

Evidentemente, eu vencera.

- Álvaro, estás alterado. Aliás, é de pasmar essa onda de ciúme em quem, com sete meses de matrimônio, não faz caso nenhum da mulher.

Gritou:

- Já não lhe expliquei que é a clínica e é o laboratório que me prendem?

Então julguei que naquele momento não era mais perigoso mostrar o ponto fraco da minha couraça, que eu na véspera mantivera rigorosamente coberto:

- Só o laboratório? Nenhuma mulher?

- Qual mulher!

- Juras?

Andou uns passos.

- É incrível! Se eu não penso nem na minha, quanto mais em outra!

Podia ser que fosse verdade. Mas, apesar da alegria da vitória, não me esqueci do abandono, das indelicadezas de trato, da abstração, da viagem a São Paulo prolongada... Ele tinha amante, sem dúvida. Mas o plano da ponta de cigarro ferira-o fundo... Era preciso continuar, Marcela!

- Portanto, meu caro doutor, já sabe: nada de incomodar papai e mamãe. Não faça asneiras. O senhor tem trinta anos. Crie juízo e saiba ser marido, já que sabe tão bem ser amante... da outra.

Olhou-me com aquela expressão de surpresa ingênua que eu lhe vira na véspera, na cama. Seria possível que fosse casado com uma mulher tão cínica?

- É o que estou dizendo - afirmei com um sorriso irônico.

Rasgou a carta em pedacinhos e disse secamente:

- Vou para um hotel. Esperarei que seus pais regressem. Adeus.

E saiu. Até agora.

Que devo fazer? Escrever-lhe uma carta dizendo mais uma vez que estou inocente? Esperar que volte? Contar-lhe o plano? Não sei, mas parece que o melhor é esperar que volte... Voltará.

Ao mesmo tempo, querida, tenho receio de que ele faça uma tolice. Não? Enfim, Álvaro não é lá um grande temperamento de suicida. Não obstante, num ímpeto...

O caso é que o remédio foi mesmo "tiro e queda". Vamos ver a continuação do efeito.

Abençoo-te.

Carlota.

X

6 de abril

 

Marcelinha do meu coração

Há quinze dias Álvaro está fora de casa. Começo a achar insuportável este isolamento. Ontem fiquei a tarde inteira numa confeitaria em frente ao consultório, para vê-lo sair. Só saiu às sete horas, com dois médicos conhecidos, um dos quais é o presidente da Academia de Medicina e o outro diretor do Hospital São Julião. Nem me viu. Estúpido! Parece que o homenzinho se acostuma às mil maravilhas com o regresso à vida de solteiro. Está hospedado no Hotel Botafogo. Estútpido! Estúpido!

Carlota.

XI

21 de abril

 

Adorada Marcela

Mandei ontem uma carta ao Álvaro. Não resisti e mandei. Ora, há um mês que isto dura! É esmagador. Mas, que carta pensas que lhe mandei? Um bilhete dizendo isto apenas: "Álvaro. Sei que estás passando mal no hotel. Deixa-te de tolices. Já te fiz todos os juramentos".

Ele deve ter alguém que me vigia os passos. Há duas semanas noto atrás de mim, na rua, nas poucas vezes que saio, um mulato magro, de chapéu de palha. Esse mulato passa todos os dias por aqui. Será mesmo um espião? É delicioso.

O velho Rufino jardineiro vai duas vezes por semana ao hotel buscar a roupa branca. Álvaro já se queixou a ele uma vez, rindo:

- Seu Rufino, esta vida de hotel é dura!

E acrescentou:

- Enfim...

Deu um charuto ao velho. Ele veio todo contente contar-me isso e cometeu o abuso de dizer:

- Patroa, não deixe o patrão lá...

Então mandei a carta. Virá? Não virá?

Carlota.

XII

24 de abril

 

Marcela

Há dois dias o homenzinho está aqui. Quando anteontem chegou, disse apenas:

- Obedeço à sua carta. Vim, porque era uma despesa inútil que eu fazia. Em nosso divórcio não quero nada do que é seu. Mas faço questão de dividir em dois o pouco que tenho. Portanto, evitando essa despesa, tratei apenas do seu interesse.

Pobre Álvaro! Que falta de espírito! Não pôde arranjar uma desculpa mais delicada...

Depois disso, não me deu uma palavra. Instalou-se na biblioteca. Dorme no divã, que arrastou da sala. Faz as refeições na rua. (Como dantes... Mas agora suponho que não será com o mesmo prazer). Só conversou com a Joana uma vez e outra com o Rufino. Com a Joana foi a propósito do banheiro:

- Este banheiro é uma preciosidade. O do hotel dava vontade de ficar sujo.

Com o Rufino foi hoje de manhã, no jardim:

- Os craveiros precisam de outra cerquinha de bambu. Estas não valem mais nada. Apodreceram com a chuva.

E só. Também, é o quanto basta para a alegria da tua venturosa

Lolota.

XIII

26 de abril

 

Marcela

Tens razão. Eu não havia pensado nisso.

É uma vergonha que os criados estejam na absoluta intimidade da minha vida privada. Mas, que culpa tenho eu? Era fatal. Não se pode fugir a isso, como não se pode igualmente impedir que as paredes ouçam o que a gente diz... Paredes e criados, em matéria de escutar e saber, são a mesma coisa. Em matéria de contar, sim, há uma pequena diferença... Pas d'importance.

Carlota.

XIV

12 de maio

 

Marcela, bom dia

Há uma novidade. Álvaro ontem à noite veio jantar, depois de vinte dias de vida completamente à parte. Com uma expressão severa, disse-me:

- Ando muito doente do estômago. Talvez seja mesmo um caso fatal. Não sei, depende do exame que vou fazer amanhã. Portanto, comer fora, em qualquer hipótese, é a morte para mim. Que prefere: ser viúva ou apenas divorciada?

Respondi com o meu sorriso invariável:

- Não sejas bobo, Álvaro. Tu mesmo estás convencido da minha inocência. Por que continuas a representar essa comédia?

Que cinismo o meu! Representando uma comédia, ele, Álvaro, a negação do teatro...

Disseste bem na tua última carta: agora, mais do que nunca, não devo confessar que foi tudo um plano. Deixo que as coisas vão correndo assim. Ganhar, já ganhei. Ele cedeu. O resto, é questão de tempo. Pelo menos assim espero.

Beija-te a

Carlotinha.

XV

27 de maio

 

Minha boa Marcela

Perdoa-me! Há quinze dias não te escrevo uma única linha! Não é falta de desejo. É que fui convidada para a Comissão Central da Liga Protetora dos Meninos Pobres e tenho muito que fazer. Andamos, eu e diversas senhoras, o dia inteiro percorrendo os bairros, inscrevendo crianças. Uma trabalheira sem fim. A Gazeta de Notícias trouxe um artigo a respeito. Até falava em mim, no meu zelo. Exagero, puro exagero.

Adeusinho.

Carlota.

XVI

5 de junho

 

Marcela

Nada de novidades por aqui. Apenas o Álvaro está mesmo meio adoentado. Coitado, trabalha demais. Agora, teve uma ideia esplêndida: mandou construir nos fundos do quintal uma casinha e vai instalar ali o laboratório. Está caseiro. Anda a estudar não sei quê.

Infelizmente, não conversa comigo. Continua afastado. Ao almoço, moita. Ao jantar, moita. Às vezes eu ensaio uma pilhéria, mas ele fica tão sério que eu encabulo.

Que raiva me dá! Ele é um bocadinho mais forte do que eu pensava.

Melancólica,

Carlota.

XVII

13 de junho

 

Marcela

Estou proibida de trabalhar para a Liga Protetora dos Meninos Pobres. A coisa estourou ontem. Há três dias que Álvaro não saía de casa, todo preocupado com os estudos do laboratório, o qual, segundo me disse o diretor do Hospital S. Julião, o dr. Moreira, que aqui esteve, é um laboratório muito bom. (Entendo pouco dessas coisas de ciência).

E eu, enquanto ele trabalhava nos tais estudos, trabalhava pelos meus pobres, aí pelos bairros. Pois, na noite de ontem, às 9 horas, o homem veio da biblioteca até a saleta, com um livro na mão, o dedo preso entre as páginas. Parou na minha frente. Eu também lia.

- Que é?

- Venho dizer-lhe que não vai mais à Liga. Tudo isso não passa de ociosidade mundana. Diletantismo da caridade. Não vai mais. Há muitos meios de proteger os pobres ficando-se em casa.

E voltou para a biblioteca.

O que ele não quer é que eu saia. Como está mudado! Graças a ti, meu amor. Mas olha, ando numa moleza... Há tanto tempo só!

Ah! Deus meu! Que loucura estou a dizer a uma menina de vinte anos, de uma ingenuidade sem par?

Carlota.

XVIII

15 de junho

Marcelinha! Marcelinha! Marcelinha! Vê se compreendes ................................ ...........................................................................................................

Ah! não... Mentira! Não há nada que compreender aí... Mentira! Mentira!

Carlota.

XIX

28 de junho

 

Marcela

Às pressas. Álvaro vai ser agora à noite recebido na Academia de Medicina. O Imparcial trouxe o retrato dele e entre ouros elogios disse que é "o mais moço dos sábios do Brasil". Bravos! Meu marido é um sábio.

Tenho um lindo vestido para a noite de hoje. Se tu me visses! Vou ficar deliciosa...

Lolota.

XX

9 de julho

 

Marcela, meu bem

Tive hoje uma cena violenta com o Álvaro. Está com ciúmes de um moço que mora aqui pegado, que tem uma baratinha (N. E.: apelido de um automóvel popular, por semelhança). O caso da ponta de cigarro voltou à baila. Que fazer? Não, nunca confessarei o plano. É a segurança da minha felicidade. não achas, cabecinha de vento?

Carlota.

XXI

22 de maio

 

Marcela

Há quanto tempo que não te escrevo!

Álvaro fez uma nova descoberta. Desta vez foi a cura da tísica na grande maioria dos casos. Dizem todos que é uma coisa notável. Os jornais também. O Governo quis há pouco que ele fizesse uma viagem nos Estados Unidos, mas ele não aceitou, por causa da Marcelinha. Pobre! Com dois meses de idade apenas! Não, seria uma barbaridade levá-la. Os avós estavam louquinhos por que nós a deixássemos aqui com eles. Pis sim! Não me separo desta bolinha de carne nem por obra do céu.

Antes que eu me esqueça: ontem o Álvaro, ao abrir uma gaveta da secretária, á procura de uma coisa que eu pedia, encontrou um rolinho de papel, amarelado, pequetitinho: - "Que é isto aqui?" Abriu: era uma ponta de cigarro, a famosa ponta de cigarro de um ano, que ele guardava para mostrar aos velhos como "prova irrecusável".

O interessante é que ele ficou pálido, pálido. Dei-lhe um beijo na testa e teve um leve movimento de recuo. Estranhei. Ele me olhou com os olhos cheios de lágrimas e caiu de bruços na mesa, soluçando.

- Seu tolo, por que esse choro? Vou jogar isto fora.

E joguei a ponta pela janela. A extremidade dos meus dedos ficou impregnada daquele cheiro... Horrível, o fumo!

- Mas que é isso, seu tolo? Por que esse choro?

Não me respondeu nada, a olhar-me, numa ansiedade, numa dor...

Então eu lhe disse tranquilamente:

- Se não fosse aquele plano que a Marcela me ensinou, até hoje eu estava casada e sem marido...

- Como?

- O plano da ponta de cigarro.

Nunca vi num rosto humano maior expressão de ventura. Levou ambas as mãos à cabeça, como que amparando-a... Agarrou-me pelos pulsos, nervosamente, os olhos fixos em mim, trêmulo.

- Então foi apenas um plano?

- Pois foi, tolo. Não sabias?

Porque até ontem, minha querida, o Álvaro estava convencido de ter "perdoado". Sofria terrivelmente em silêncio... Mas esse minuto de felicidade não valeu a tortura secreta de tanto tempo?

Escreve-me.

Beijos da afilhada Marcelinha e beijo da tua

Lolota.